Primeiros oito meses de 2020 têm mais assassinato de mulheres trans do que todo o ano de 2019
Segundo levantamento bimestral da Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra), todas as 129 vítimas mapeadas tinham expressão de gênero feminina; Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio não dão conta das especificidades dessa população, diz especialista da Antra
Márcia Shokenna Bastos da Silva, uma mulher trans de 28 anos, foi encontrada morta em um terreno na cidade de Maricá, na Região Metropolitana do Rio, em uma tarde de domingo (14/06). Uma travesti identificada como Branca, de 37 anos, foi morta a tiros próximo à BR-116, em Itatinga, na Região Metropolitana de Fortaleza. A jovem mulher trans Daniele Rodrigues, de 21 anos, foi encontrada morta, em 19/08, com lesões decorrentes de arma de fogo em um matagal em Crateús, município no interior do Ceará. De janeiro a 31 de agosto, foram assassinadas 129 pessoas trans no país, um aumento de 70% em relação a 2019, segundo Boletim nº 4 de Assassinatos contra travestis e transexuais em 2020 da Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra).
Em oito meses, foram registrados mais assassinatos do que em 2019 inteiro (124). Além disso, houve um aumento em todos os bimestres comparado ao último ano. No primeiro bimestre, o aumento foi de 90%, no segundo, de 48%, o terceiro apresentou aumento de 39% e o quarto bimestre, de 70%, conforme publicado em boletins anteriores.
“É muito preocupante quando nos deparamos com esses aumentos consecutivos, que são aumentos que passariam despercebidos por conta da pandemia, e foi um ponto positivo ter mudado a estratégia e passarmos a lançar boletins bimestrais. Quando adentramos na pandemia, esses dados nos revela quem são as pessoas que puderam parar. Podemos afirmar que as mulheres trans e travestis que atuam ou têm a prostituição como fonte primária de renda não pararam em nenhum momento”, destaca Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra.
O inicio do período eleitoral também poderia justificar esse aumento em julho e agosto, segundo Benevides. “Temos observado que em períodos pré e eleitorais tem um aumento dos casos de violência. O aumento desproporcional em julho e agosto vem ao encontro de pesquisas anteriores que apontaram esse dado. Estamos vivendo exatamente o que a eleição de um governo autoritário e que tem dificuldade de dialogar com a sociedade civil tem para mostrar ao Brasil, e especificamente à população trans”. Essa perspectiva ratifica a pesquisa Violência contra LGBTs+ no contexto eleitoral e pós eleitoral da Gênero e Número, em que mais de 50% dos LGBT+s entrevistados afirmaram ter sofrido pelo menos uma agressão no contexto político eleitoral em 2018.
No Ceará, uma um onda de assassinatos aconteceu nos últimos dois meses analisados. Apenas em julho e agosto, o estado teve mais casos de assassinatos que o primeiro semestre de 2020 inteiro. Enquanto no primeiro semestre de 2020 foram registrados 7 casos, entre julho e agosto esse número chegou a 15, sendo 5 destes apenas em agosto deste ano. Ceará foi o quarto estado que mais registrou homicídios de pessoas trans este ano, só ficando atrás de São Paulo (19), Minas Gerais (16) e Bahia (16).
É importante lembrar que o Ceará ficou conhecido nacionalmente pela morte de Dandara dos Santos, de 42 anos, uma travesti que foi apedrejada e morta a tiros em 2017. A polícia prendeu dois homens e apreendeu três jovens. “Quando Dandara foi assassinada, foi feita uma grande movimentação junto ao governo do Estado, mas que até hoje não reverberou em ações concretas e acabou perdendo força com o passar do tempo. Esperamos que com os dados mais atuais possamos dar algum tipo de encaminhamento”, destaca Benevides.
Estados com mais casos de assasinato de pessoas trans em 2020
Minas Gerais registrou cinco vezes mais ocorrências do que em 2019
2020
2019
3
4
5
7
7
Rio de
Janeiro
12
15
16
16
Ceará
Bahia
Minas
Gerais
19
São Paulo
fonte Antra
Estados com mais casos de assasinato de pessoas trans em 2020
Minas Gerais registrou cinco vezes mais ocorrências do que em 2019
2020
19
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São
Paulo
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Minas
Gerais
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Ceará
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Rio de
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fonte Antra
Estados com mais casos de assasinato de pessoas trans em 2020
Minas Gerais registrou cinco vezes mais ocorrências do que em 2019
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São
Paulo
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3
Minas
Gerais
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Bahia
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Ceará
7
Rio de
Janeiro
5
fonte Antra
Gênero como um fator de violência
Todas as 129 pessoas assassinadas em 2020 até 31/08 eram travestis ou mulheres trans. Essa tendência já era apontada nos boletins anteriores da Antra, assim como o fato de a maioria das vítimas serem negras. Porém, como este ano todas as vítimas mapeadas pela organização tem uma expressão de gênero feminina, isso se conecta com o debate de gênero como um fator de violência. Em uma reportagem em novembro de 2019, tratamos como a violência contra mulheres trans e travestis começa em casa e continua do lado de fora, já que 49% das agressões ocorrem dentro da residência das vítimas, segundo dados do Ministério da Saúde.
“A Antra mapeia todas as identidades trans, mas para nossa surpresa 100% são, não por acaso, de mulheres trans e travestis. É preocupante porque vemos que a questão de gênero é diretamente colocada no primeiro plano, e nesse momento que identificamos que essa violência direcionada a certos grupos tem aumentado e faz parte de uma política do governo atual”, pontua Benevides.
No Brasil, legislações como a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) e a Lei do Feminicídio (Lei nº13.104) podem atender a mulheres trans e travestis. Segundo a secretária de articulação política da Antra, essas legislações têm um papel fundamental e cumprem um dos pilares importantes das políticas públicas, que é o fator educativo, e pautam discussões no campo social para que a sociedade entenda o que é violência doméstica e transfobia.
“São importantes, mas não dão conta, dada a dificuldade das próprias pessoas acessarem esses espaços. Quando falamos de segurança pública, a população trans padece de um estigma que fica desde a época da ditadura em que somos vistas como inimigas dos estados. Então as pessoas trans, muitas vezes, não se sentem seguras em efetivar denúncias ou entregar a sua proteção ao Estado, que muitas vezes é quem nos viola quando não implementa políticas públicas, quando não reconhece nossa identidade de gênero ou não garante acesso a políticas que já estão instituídas”, disse.
Ela ainda destaca que essas estruturas de opressão e preconceito como o racismo e a transfobia se dinamizam e mudam sua forma de operar com o tempo para manutenção do poder. Por isso, é necessário sempre revisitar as políticas públicas, investir em campanhas de incentivos a denúncias e realizar cursos de formação e treinamento com os profissionais de segurança e de justiça, por exemplo.
É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.
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