“Falsa praticidade” mantém ultraprocessados na casa dos brasileiros enquanto mortes por doenças relacionadas só aumentam
Brasil registra anualmente cerca de 300 mil mortes prematuras por doenças relacionadas ao consumo exagerado de açúcar, gordura e sódio; educação alimentar e políticas públicas são caminhos para mudança
Virou até meme nas redes sociais o prazer de beber um “refri gelado” num dia quente de verão ou só para desestressar. Outro refrigerante ganhou até apelido carinhoso dos consumidores no Twitter. Essa aproximação das marcas com o público tem um efeito positivo para o marketing, mas no país em que cerca de 12 mil pessoas adoecem gravemente anualmente por ingerirem, em excesso, bebidas açucaradas, o tema faz questionar até que ponto o lobby da indústria dos alimentos ultraprocessados pode chegar. Essa segunda reportagem sobre alimentação é um desdobramento das análises para o estudo “Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil”, realizado pela Gênero e Número em parceria com o Instituto Ibirapitanga.
Mas além dos refrigerantes e sucos prontos com excesso de açúcar, temos salgadinhos, biscoitos, macarrão instantâneo e toda a sorte de alimentos ultraprocessados entrando mais na casa dos brasileiros durante a pandemia de covid-19. Pesquisa do Datafolha encomendada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) mostra que, entre outubro de 2019 e junho de 2020, subiu de 9% para 16% o número de pessoas entre 45 e 55 anos que consomem esses alimentos.
“Tem toda a questão da facilidade do consumo: são produtos prontos para aquecer ou comer. E muitos são veiculados como saudáveis. Essas falsas facilidades interferem na vida das pessoas e nas escolhas alimentares. E são aspectos importantes que os consumidores consideram na hora de escolherem seus alimentos. E na pandemia tem um outro ponto, de ver esses alimentos como comida-conforto, porque são ultrapalatáveis, com sabor acentuado”, avalia Laís Amaral, nutricionista e especialista do programa de Alimentação Saudável do Idec.
Mas, afinal, qual o problema? O verdadeiro valor nutricional, porque esse tipo de alimento ultraprocessado não é comida de verdade. De maneira direta, são alimentos que não conseguiríamos reproduzir em casa, devido à alta quantidade de substâncias químicas e nutrientes críticos (açúcar, gordura e sódio) que há entre os ingredientes. Sem contar corantes, edulcorantes, emulsificantes, estabilizantes e muitos outros “antes” que permitem aumentar o prazo de validade — e deixá-los mais gostosos, claro.
E são esses tais nutrientes críticos (de novo: açúcar, gordura e sódio) que estão diretamente relacionados ao que a literatura médica chama de DCNT: doenças crônicas não-transmissíveis, entre elas, hipertensão, diabetes, problemas cardiovasculares e até alguns tipos de câncer. Somente em 2019, cerca de 300 mil pessoas morreram prematuramente no Brasil por conta de DCNTs, o maior índice em cinco anos. A maioria são homens e negros, e a solução para este problema não passa somente por saber dos riscos desses tipos de alimentos, mas envolve políticas públicas e lobby da indústria alimentícia.
Negros e homens são principais vítimas de mortes prematuras causadas por doenças crônicas não transmissíveis no Brasil
Hipertensão, diabetes, doenças renais e doenças cardíacas estão inclusas; alimentação inadequada contribui para ocorrências
Homens
Mulheres
ESCALA
!
0 – 100 mil
100 mil
brancos
negros
85.387
82.691
82.992
82.982
82.004
81.374
82.248
80.257
65.995
65.013
64.208
64.107
64.313
63.968
62.617
61.262
53.542
50 mil
49.605
40.932
38.905
0
2019
2020
2017
2018
2016
ESCALA
!
0 – 1.000
1.000
amarelos
780
758
753
692
564
566
537
529
500
483
indígenas
376
333
312
310
259
276
256
198
228
193
0
2016
2017
2018
2019
2020
fonte Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)
*dados de 2020 vão até julho
Negros e homens são principais vítimas de mortes prematuras causadas por doenças crônicas não transmissíveis no Brasil
Hipertensão, diabetes, doenças renais e doenças cardíacas estão inclusas; alimentação inadequada contribui para ocorrências
Homens
Mulheres
ESCALA
!
0 – 100 mil
negros
brancos
100 mil
50 mil
0
2019
2020
2017
2018
2016
ESCALA
!
0 – 1.000
indígenas
amarelos
1.000
500
0
2019
2020
2017
2018
2016
fonte Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)
*dados de 2020 vão até julho
Lobby
Saber a influência dos alimentos ultraprocessados em DCNTs e nas mortes decorrentes delas não faz com que o governo brasileiro e as agências reguladoras deixem de se curvar à indústria alimentícia. Pesquisadores, nutricionistas e ativistas pelo direito à alimentação saudável ouvidos pela Gênero e Número são taxativos: a publicidade e o lobby da indústria são determinantes para que o consumo seja tão alto num país com tantas mortes . E a publicidade não é só a propaganda na TV. Rótulos, consumo por celebridades, uso de personagens infantis nas embalagens, etc, contribuem para que esses alimentos dominem as prateleiras e geladeiras dos lares brasileiros
Em 23 de julho de 2020, a titular do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Tereza Cristina, fez uma videoconferência com a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia). A pauta era “Revisão do Guia Alimentar da População Brasileira“. Menos de dois meses depois, o Mapa enviou ao Ministério da Saúde (MS) uma nota técnica pedindo a revisão do Guia.
Atualizado em 2014 pelo MS, o documento orienta as melhores formas de alimentação saudável, prioriza comidas naturais e aponta os riscos dos ultraprocessados e as relações com as DCNT. O Mapa, depois dessa reunião com a Abia, afirmou que o texto é incoerente, confunde a população e “um dos piores do mundo”, sem nenhuma prova.
Este sinal da força do lobby da indústria alimentícia foi tão forte que gerou reação internacional. Cientistas estrangeiros enviaram uma carta ao Mapa reforçando a falta de argumentos científicos embasados e muitas críticas infundadas direcionadas ao Guia. Houve também ofensiva das organizações da sociedade civil que discutem alimentação saudável, com mais cartas enviadas ao ministério rechaçando o ataque ao Guia. Desde então, a discussão está parada no MS.
Depois disso, a última batalha entre a alimentação saudável e a indústria alimentícia foi sobre a nova rotulagem de alimentos. O modelo baseado em evidências científicas e proposto pela sociedade civil era o de rotulagem triangular na frente das embalagens, com informação explícita do excesso de nutrientes críticos. Mas depois de muitas conversas, com lobby forte da indústria dentro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foi aprovado o modelo de “lupa”: um retângulo que avisa a quantidade excessiva dos nutrientes críticos. Mas não há evidência científica que seja o ideal, e há problemas com a fonte pequena e pouco espaço ocupado.
Possibilidade de mudanças
Essa resistência do Brasil em expor o que realmente há por trás dos alimentos ultraprocessados vai na contramão de alguns países da América Latina. No Chile, por exemplo, houve uma redução de cerca de 24% no consumo de bebidas açucaradas nas casas após o país adotar um pacote de medidas que inclui aumento de tributação, rotulagem adequada e restrição à publicidade. Os dados foram divulgados também pelo Idec a partir de um estudo coordenado pelo Instituto de Nutrição e Tecnologia de Alimentos da Universidade do Chile.
Paula Johns, diretora geral da ACT – Promoção da Saúde, ONG que integra a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, explica que o lobby da indústria alimentícia é forte porque tem muito dinheiro envolvido. De fato: em 2020, por exemplo, o setor de alimentos e bebidas aumentou em 3,3% suas vendas reais.
“O poder econômico é muito grande, até porque o preço desses produtos é artificialmente barato. Não incorporam no preço final os reais custos desse consumo. Um biscoito você compra por R$ 1,50, que é um preço superbarato e atinge os grupos populacionais mais vulneráveis: aquela pessoa que fica horas no transporte público, cercada da facilidade de aquisição desse produto, seja por preço ou disponibilidade. O preço não paga o preço final para a sociedade, que são as doenças. É o barato que sai caro”, afirma Johns.
O preço não paga o preço final para a sociedade, que são as doenças. É o barato que sai caro.
Uma outra forma da indústria se fazer presente, de acordo com Johns, é por ações de filantropia altamente divulgadas. O que se intensificou no período de pandemia. O Congresso, inclusive, aprovou a lei 14.016/2020, que fala sobre “o combate ao desperdício de alimentos e a doação de excedentes de alimentos para o consumo humano”. Mas o debate sobre o texto do projeto não ouviu a sociedade civil. Em um dos artigos, o texto traz que as empresas ou estabelecimentos que doarem os alimentos só serão processados na esfera penal “se comprovado, no momento da primeira entrega, ainda que esta não seja feita ao consumidor final, o dolo específico de causar danos à saúde de outrem”. Nenhuma linha sobre insatisfação com o produto ou a qualidade (ainda que dentro da data de validade).
“Claro que quem tem fome tem que comer. Mas as políticas de acesso à alimentação deveriam ser, como vinham sendo construídas nos últimos anos, com base na produção local, uma nutrição com qualidade. Não é qualquer coisa para encher barriga”, avalia Paula Johns.
Gênero, raça e classe
A professora Luciane Bresciani Salaroli é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Nutrição e Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo e responsável pelo Grupo de Pesquisa em Epidemiologia, Saúde e Nutrição (GEMNUT/Ufes). Na pesquisa, Salaroli e colegas focam em epidemiologia nutricional e como os consumos alimentares se refletem na vida dos grupos pesquisados.
Ela avalia que, além de políticas públicas, as famílias brasileiras precisam de uma reestruturação, uma aproximação com os alimentos de verdade e o hábito de cozinhar. Considerando os determinantes sociais, como passar muitas horas em função do trabalho, e econômicos, como pouco poder de compra, a organização é o melhor caminho individual para tirar os ultraprocessados da vida.
“Quando a mulher vai para o mercado de trabalho e volta para casa, se a família não tiver dividido essa função, ela vai escolher preparar comida mais rápida, porque já tem um acúmulo de funções. A família deveria se reestruturar para todo mundo cozinhar e melhorar os hábitos alimentares: saber se organizar em casa, ir a feiras… Isso mudaria um pouco esse cenário”, avalia Salaroli.
Monica Cattafesta, doutoranda em Saúde Coletiva na Ufes, faz parte também do GEMNUT. Para ela, as habilidades culinárias são importantes para fugir dos ultraprocessados e melhorar a qualidade da alimentação, mas não podem ser o único caminho.
“Habilidade culinária é saber fazer arroz, usar panela de pressão, saber preparar um molho, grelhar uma carne, higienizar uma salada. São habilidades para autonomia e fundamental para todos. Mas isso não pode ser responsabilidade individual, querer que todos tenham o mesmo acesso”, analisa Cattafesta. E completa: “Ir a uma feira orgânica tem a ver com deslocamento, dinheiro, tempo gasto. O ambiente e a política têm de tratar dessas questões também.”
Paula Johns, da ACT, avalia que uma das formas de tornar esse acesso a produtos naturais mais justo, considerando as desigualdades do Brasil, é tornar a concorrência mais leal.
“Por mais que o orgânico tenha mais valor agregado, acaba tendo menor escala, cadeias de distribuição mais curtas. O produtor capina na mão, não usa veneno, tem mais tempo de mão de obra. Como concorre em relação a preço, se em vez de capinar o outro pode jogar veneno?”
A mudança do consumo não depende só da vontade do consumidor final, mas do ambiente alimentar em que ele está inserido: se não é favorável a uma alimentação saudável, por vários determinantes, não é saber que o orgânico é bom ou saber fazer arroz que vai mudar o cenário.
A comida no futuro
Uma das organizações da sociedade civil que busca fazer a diferença nas políticas públicas no nível municipal é a Comida do Amanhã. A organização luta por uma “transição para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis”, para mudar o entendimento atual que temos sobre comida e também atuar em prol de mudanças estruturais.
Entre os próximos projetos do Comida do Amanhã estão uma articulação com prefeituras e uma ação direcionada a crianças, para valorizarem a comida de verdade.
“Nosso trabalho é trazer o máximo de informações para mudar o pensamento, mas não glamourizar: comida de verdade é arroz com feijão. Mas a gente também sabe que nesse momento está caro, sabemos que comer macarrão instantâneo é mais barato. Por que isso acontece? Por que não garantimos estoque de alimentos? Não pode colocar a responsabilidade no indivíduo e tirar do Estado”, avalia Monica Guerra, fundadora e diretora da organização.
Para Guerra, a mudança estrutural e sistêmica necessária para mudar os hábitos alimentares e torná-los mais sustentáveis começa a nível local, principalmente em uma época em que o diálogo com o governo federal está difícil: “A alimentação é um direito constitucional. E se é constitucional, é papel do Estado garantir essa alimentação”.
A diretora do Comida do Amanhã faz coro com outros pesquisadores e ativistas do tema.
“Não podemos individualizar o vilão. A pessoa não é culpada de estar comendo errado, de não ter três horas por dia para cozinhar quinoa para a família. É um desafio sistêmico e estruturante. A nossa narrativa é trazer os benefícios da alimentação local, e fazemos de várias formas. Trazemos histórias para mostrar o quanto é diversa, rica e preciosa a biodiversidade que pode ter no no prato. Quanto mais biodiverso, mais nutritivo e resiliente para a natureza.”
Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.
Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.
Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.
Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.
A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.