As barreiras ao aborto medicamentoso no Brasil

Ao lado do Vietnã, país tem uma das legislações mais restritivas do mundo sobre uso do Cytotec

 

Por Soledad Dominguez, Natalia Veras, Mariana Oliveira

Conhecido no Brasil pela marca Cytotec, o misoprostol  é registrado para uso hospitalar pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como medicamento para indução do parto e interrupção da gravidez. O misoprostol também auxilia no tratamento de hemorragia pós-parto e no tratamento de aborto incompleto, seja provocado ou espontâneo. Ao longo dos anos, se tornou a droga mais utilizada para abortos no Brasil.

O medicamento foi introduzido no Brasil para tratamento de úlcera gástrica e era comercializado em farmácias sem exigência de receita médica. Diversos estudos apontam que foram as mulheres do Nordeste que descobriram o uso abortivo do medicamento, com a ajuda de farmacêuticos. Apesar de ter sido comercializado em 72 países no final dos anos 1980, foi somente no Brasil que a utilização do Cytotec como método abortivo ganhou visibilidade. 

Segundo o estudo “20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil”, entre as mulheres que declararam ter induzido o aborto nos anos 1990, entre 50,4% e 84,6% utilizaram o misoprostol como abortivo, um aumento significativo, se comparado com seu uso  nos anos  1980, de 10% a 15%. 

A entrada do misoprostol no cenário das práticas abortivas provocou uma mudança na saúde das mulheres, que costumavam utilizar objetos perfurantes, chás e ervas e mesmo líquidos cáusticos como abortivo, que aumentavam o risco de complicações e morte. Em 1998, a Anvisa publicou uma resolução que controla o misoprostol até hoje. 

Um estudo publicado no Journal of Public Health Policy (EUA) em 2012 analisou países da África, Ásia e América Latina e colocou o Brasil ao lado apenas do Vietnã entre os que possuem maior restrição ao acesso ao aborto farmacológico no mundo. A diferença é que, no Vietnã, há registro para a mifepristona, tornando a regulação brasileira ainda mais restritiva que a do país asiático.

Restrições da Anvisa

A Portaria 344/1998 da Anvisa classifica o misoprostol como medicamento sujeito a controle especial, ou seja, deve ser prescrito com receita de controle especial, em duas vias. No entanto, de todas as substâncias constantes na lista, apenas o misoprostol sofre restrições de comercialização e uso, este último limitado ao ambiente hospitalar. Cada hospital público deve fazer um cadastro na Secretaria de Vigilância Sanitária do seu estado para receber o medicamento do Ministério da Saúde.

Mais de 20 anos se passaram e a resolução da Anvisa mantém essa posição, mesmo com evidências científicas recentes que constatam a segurança e a eficácia do misoprostol para o aborto induzido em ambiente ambulatorial ou domiciliar. Se utilizado principalmente nas nove primeiras semanas de gravidez, o medicamento apresenta efeitos adversos mínimos, como diarreia, vômitos, náusea e febre, que podem ser facilmente tratados por profissionais dos serviços de atenção primária. Além disso, o uso ambulatorial do misoprostol pode diminuir os custos para o sistema de saúde, já que não há necessidade de internação ou envolvimento de outros profissionais.

Em 2019, a Defensoria Pública da União (DPU), realizou uma audiência pública para propor novas resoluções à Anvisa, alegando que a proibição da venda de misoprostol em farmácias do Brasil não seguia justificativas médicas ou legais. O argumento da DPU era de que a restrição violava o direito à saúde de mulheres que querem interromper gestações em casos já previstos por lei. A audiência também abordou o direito à informação sobre misoprostol, vetado pela Anvisa.

Como resposta, a Anvisa alegou que “não pode realizar alterações de bula sem que haja uma solicitação formal da empresa detentora do registro do medicamento”, a Hebron. O medicamento à base de misoprostol produzido pela Hebron, com o nome Prostokos, reforça em letras maiúsculas na bula: “ESTE MEDICAMENTO É DE USO RESTRITO A HOSPITAIS”. Como não houve manifestação da empresa para incluir a possibilidade de administração domiciliar ou ambulatorial, a Anvisa diz que não há nada a fazer. 

Em abril de 2021, a Anvisa fez uma Consulta Pública sobre a portaria que regula disponibilização e o comércio do misoprostol e outros medicamentos. Foram ao todo 307 respondentes, sendo 214 pessoas físicas e 93 pessoas jurídicas; 180 dos 214 respondentes eram profissionais de saúde. 

Cerca de 30% dos respondentes enviaram argumentos contra a proposta, 27%, parcialmente a favor e 25%, a favor. Entre as organizações que enviaram pareceres em prol da redução das restrições sobre o medicamento, estão a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Defensoria Pública da União (DPU). Apesar da consulta pública, o parágrafo sobre misoprostol da Portaria segue inalterado.

Sobre os resultados da consulta pública, Anvisa informou à reportagem: “As contribuições recebidas no processo de revisão da Portaria SVS / MS 344 de 1998, ainda estão em fase de consolidação. O resultado da avaliação sobre as contribuições relacionadas a qualquer tema do texto será apresentado ao final do processo regulatório”. 

Confira 4 evidências científicas sobre o misoprostol e a mifepristona

Um ensaio clínico duplo-cego com 441 mulheres grávidas da Tunísia e Vietnã avaliou a combinação mifepristona + misoprostol e o uso do misoprostol em regime domiciliar. Das 220 que tomaram a combinação, 92,9% concluíram o aborto; das 221 que tomaram o misoprostol, 78% interromperam a gestação A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda duas possibilidades para o aborto com medicamentos: na combinação misoprostol + mifepristona, a chance de aborto completo é de 95% a 98%. No uso solo do misoprostol, a chance é de 75% a 90%

A OMS estima que, a cada ano, entre 4,7% e 13,2% das mortes maternas ocorram por complicações de aborto inseguro. 



O maior acesso a medicamentos à base de misoprostol, incluindo em farmácias, garante mais segurança na indução de abortos. Um estudo de 2017, realizado em 6 países da América do Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Peru e Uruguai), pelo Consórcio Latinoamericano contra o Aborto Inseguro (Clacai), concluiu que o Brasil é o que tem a legislação mais restritiva e o único que não disponibiliza o misoprostol para venda em farmácias ou nos serviços de saúde. ←

A mudança de métodos mais arriscados — como o uso de agulhas — para menos arriscados — como o uso de medicamentos — está relacionada à diminuição nos casos de complicações por aborto.

Em um estudo de 2015, 154 participantes com abortos incompletos foram randomizadas para receber 3 doses de misoprostol no hospital ou para receber a primeira dose na clínica e autoadministrar as duas doses seguintes em casa. Os autores não encontraram diferença na eficácia do tratamento (acima de 85%), tampouco nos eventos adversos entre os grupos.

Uso domiciliar do misoprostol é opção segura e eficaz para as mulheres



Em um
estudo de 2017, foi avaliada a eficácia do uso do misoprostol em gestações inviáveis no primeiro trimestre, com o uso do remédio em casa. A experiência de 4 anos demonstrou que a administração do misoprostol em casa é uma opção eficaz e segura: mais de 90% das mulheres tiveram o tratamento completo e não precisaram de intervenção cirúrgica; a taxa de complicação foi de apenas 0,61%.

 



Apoio
Instituto Serrapilheira — projeto contemplado na chamada “O papel da ciência no Brasil de amanhã”

Realização Genêro e Número e GHS América Latina
Pesquisa e Reportagem Soledad Dominguez, Natalia Veras, Mariana Oliveira
Edição Maria Martha Bruno
Design Marilia Ferrari

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