Hall de entrada do Hospital Evita, em Lanús, área metropolitana de Buenos Aires / Foto: Ana Rezende

O aborto legal no SUS da Argentina

Consulta gratuita em um dos maiores hospitais públicos de Buenos Aires, onde nasceu Maradona, demora menos de 10 minutos; moradora de São Paulo foi atendida em junho 

  • Aborto legalizado desde 2020

    ver mais
  • 1.100 abortos em um ano

    ver mais

O diálogo inicial dura menos de 60 segundos:

— Oi, Yamilla. Por que você veio aqui?

— Pela interrupção voluntária da gravidez.

— Quando foi sua última menstruação?

— 7 de maio.

— Você estava usando algo para não engravidar?

— Sim, preservativo e pílula. 

— E o que houve?

— Naquele dia eu não tinha tomado. Esqueci. 

— Ok. E você tomou a pílula do dia seguinte?  

— Não. 

— Você fez algum teste para confirmar a gravidez?

— Sim

— Você fez alguma ultrassonografia?                             

— Não. 

— Te explico então: agora vamos fazer uma ultrassonografia para ver de quantas semanas você está. E vou te pedir um exame de sangue para fazer sua interrupção de uma forma segura. 

Chefe do Serviço de Obstetrícia do Hospital Evita, no município de Lanús, na Grande Buenos Aires, Osvaldo Santiago preenche, então, a ficha de Yamilla Gomez, de 19 anos. Mãe de um menino, ela mora na cidade, no bairro de Villa Fiorito, a meia quadra da casa onde viveu Diego Maradona na infância, e trabalha em uma fábrica, colocando selos em brinquedos.

Santiago diz à Yamilla que, ao sair do consultório, ela deve falar com uma médica que fará a ultrassonografia, e em seguida será encaminhada para fazer exames de sangue. Dois dias depois, ela buscará os resultados e voltará ao setor de obstetrícia. 

Em julho de 2022, a Gênero e Número acompanhou dois atendimentos no Hospital Evita, conversou com funcionários e pacientes do hospital. A viagem fez parte das filmagens para o documentário “Verde-Esperanza: Aborto Legal na América Latina”, que, além de Argentina, visitou Bogotá (Colômbia), Rio, São Paulo e Brasília para discutir direitos das mulheres para além de dogmas. As filmagens também deram origem ao vídeo abaixo, publicado no UOL no Dia International da Luta pela Descriminalização do Aborto. 

ler Assine a nossa newsletter semanal

Aborto legalizado desde 2020

A ala comandada por Santiago divide o segundo andar do Hospital Evita com uma imensa capela. Diante da imagem de Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, mulheres esperam para serem atendidas.

O médico explica a Yamilla que, ao voltar ao hospital, ela terá duas opções: tomar o medicamento misoprostol, indicado pela Organização Mundial da Saúde para realização de aborto seguro, ou a aspiração manual endouterina. O misoprostol é oferecido gratuitamente pelo hospital, que indica instruções para seu uso em casa. Já a aspiração é realizada na própria unidade de saúde.

ler SUS atende 9 de cada 10 internações por aborto no Brasil

“Se optar pela aspiração, você tem que marcar hora. Vamos te dar uma medicação antes para você tomar em casa e preparar o cólon do útero. No dia da aspiração, vamos usar um espéculo, como se fosse para fazer um papanicolau. Vamos colocar anestesia na vagina, no cólon do útero e no útero. Em seguida, inserimos uma cânula, como se fosse a ponta de uma caneta com uma seringa grande na ponta. Ela vai aspirar todo o conteúdo. O procedimento demora uns dez minutos e você estará acordada. Você vai sentir um pouco de cólica menstrual, que fica um pouco mais forte no final. Depois você fica em observação e antes de meio-dia volta para casa. Quando você voltar, tem que sair daqui com um bom método anticoncepcional. Você sabe qual você quer?”

Yamilla diz que quer um chip anticoncepcional, que libera progesterona regularmente na corrente sanguínea. Ela se encaminha para a porta e vai fazer os exames. Toda a consulta demorou sete minutos. 

Na Argentina, a lei da interrupção voluntária da gravidez, aprovada em dezembro de 2020, autoriza mulheres e quaisquer pessoas gestantes a abortarem até a 14a semana de gestação. Elas não precisam explicar o motivo. 

A partir deste prazo, se quiserem abortar, elas são autorizadas por outra lei: a interrupção legal da gravidez. Esta legislação vale para casos de estupro ou em que a vida e a saúde (mental e física) da gestante estejam em risco. Nenhuma das leis determina que as pacientes façam boletim de ocorrência ou necessitem de autorização judicial.   

1.100 abortos em um ano

“Vim porque não estou mais com o cara com quem eu estava me relacionando e já tenho um filho. Não tenho condições econômicas de criar outro”, conta Yamilla. Ela foi ao hospital acompanhada da mãe. A família não apoia a decisão.  

Carregado de simbolismos, o hospital público foi idealizado por Eva Perón e fundado dez dias após sua morte, em 1952. Oito anos depois, lá nasceu Maradona. Imagens de ambos estão espalhadas pela entrada e corredores. No portão principal, uma camisa puída da seleção argentina traz os dizeres, em alusão à mãe do craque:  “Aqui nasceu o D10s. Obrigada, Dona Tota. O bairro agradece.”

O serviço comandado por Osvaldo Santiago atende de 12 a 18 mulheres por dia, de segunda a sexta, entre 8h e 11h. Somente em 2021, foram 1.100 procedimentos realizados. Uma brasileira de São Paulo buscou a unidade para fazer o aborto em junho de 2022. 

“Ela fez uma consulta no Brasil e, como viu que havia muita dificuldade, resolveu vir para cá. Ela voltou para casa com um método contraceptivo de longa duração. Pelo contato que temos com o Ministério da Saúde, sabemos que há pacientes que saem do Brasil para serem atendidas na Argentina, por causa da situação que existe no Brasil”, conta Santiago. 

Várias mulheres são encaminhadas ao Hospital Evita após ligarem para o telefone 0800 do Ministério da Saúde. O serviço oferece informações sobre assuntos relacionados à saúde reprodutiva, como assistência em casos de violência sexual, câncer de cólon de útero e de mama, métodos contraceptivos e interrupção legal da gravidez.

Em 2021, primeiro ano com a lei em vigor, foram quase 18 mil atendimentos relacionados ao aborto legal em todo o país, um salto de 66 pontos percentuais na comparação com todo o ano de 2020 e um total superior ao registrado em toda a década anterior. 

Ligações para o 0800 da Argentina

Linha sobre direitos reprodutivos encaminha pacientes para aborto legal e fornece informações

17,9 mil

2021

30 dez 2020

Legalização do aborto

2020

10,8 mil

3,7 mil

2019

1,9 mil

2018

2017

2016

2015

2014

280

2017

2013

2016

178

2012

177

2015

2011

116

2014

2010

2013

18

21

2012

13

2011

De 2010 a 2017, foram

apenas 811 ligações

8

2010

fonte Ministério da Saúde da Argentina

Ligações para o 0800 da Argentina

Linha sobre direitos reprodutivos encaminha pacientes para aborto legal e fornece informações

17,9 mil

2021

30 dez 2020

Legalização do aborto

10,8 mil

2020

3,7 mil

2019

1,9 mil

2018

2017

2016

2015

2014

2013

280

2017

2012

178

2016

177

2015

2011

116

2014

2010

18

2013

21

2012

13

2011

8

2010

De 2010 a 2017, foram

apenas 811 ligações

fonte Ministério da Saúde da Argentina

Consulta gratuita em um dos maiores hospitais públicos de Buenos Aires, onde nasceu Maradona, demora menos de 10 minutos; moradora de São Paulo foi atendida em junho
ler O que você precisa saber sobre a ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto no Brasil

Yrina Berrueta, estudante nutrição de 24 anos e mãe de uma menina de dois anos e meio, chegou ao Hospital Evita depois de ligar para o 0800. Moradora de Lobos, cidade de 30 mil habitantes, a duas horas de Buenos Aires, ela conta por que buscou a unidade ao engravidar novamente: 

“Fiquei grávida no meio da faculdade. Naquele momento, o aborto voluntário não era legalizado e eu tinha medo de morrer. Tive minha filha e não me arrependo. Mas naquela época eu não podia ter acesso ao direito que tenho agora”. 

Acompanhada pelo companheiro no hospital, ela explica que os motivos da decisão: “Ele não tem um emprego estável. Agora está trabalhando como pintor. Moramos em uma casa emprestada, muito pequena, que seria ainda menor com outro integrante e com tudo o que implica ser mãe. É uma atividade de tempo integral. Resolvi priorizar meus estudos desta vez”.  

Quem leu essa Reportagem também viu:

Maria Martha Bruno

Jornalista multimídia, com experiência na cobertura de política e cultura, integra a equipe da Gênero e Número desde 2018. Durante três anos, foi produtora da NBC News, onde trabalhou majoritariamente para o principal noticiário da emissora, o “NBC Nightly News”. Entre 2016 e 2020, colaborou com a Al Jazeera English, como produtora de TV. Foi repórter e editora da Rádio CBN e correspondente do UOL em Buenos Aires. Jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição, e atualmente cursa o programa de Doutorado em Comunicação na Texas A&M University, nos EUA.

Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.

Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.

Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.

A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.

Quero apoiar ver mais