Portugal, Espanha e Uruguai: o que aconteceu após a legalização do aborto?

A Gênero e Número analisou dados e conversou com ativistas pelos direitos das mulheres nos três países, que legalizaram a prática nos últimos 10 anos e viram queda acentuada da mortalidade por aborto e investiram na oferta de contraceptivos após procedimento legal

 

 

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Nos últimos 10 anos, Portugal, Espanha e Uruguai legalizaram a interrupção voluntária da gravidez depois de décadas de organização social, debates e negociações no Legislativo de cada país.

Enquanto a despenalização da prática ampliou a autonomia das espanholas, o Uruguai implementou uma política pública de saúde com foco na redução de riscos, que desde 2004 reduziu o número de mortes de mulheres por abortos clandestinos. Em Portugal, o movimento feminista se aliou aos profissionais de saúde para levar informação baseada em evidências à sociedade, que em 2007 disse sim à legalização do aborto em um referendo.

A Gênero e Número analisou dados e conversou com ativistas pelos direitos das mulheres para retratar o impacto da legalização do aborto nos três países. A existência desses dados e sua disponibilidade pública – o que permite avaliá-los e debater soluções para os problemas relacionados às políticas públicas de saúde reprodutiva – é uma das consequências de retirar a prática da clandestinidade.

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Manifestação pelo aborto legal no Uruguai, em 2012. | Foto: ericosmatos/ Flickr CC

Uruguai

Desde 1938, o aborto era despenalizado no Uruguai em três situações: quando a gestação era decorrente de estupro, por questões de “honra familiar” (quando a gravidez era produto de relação fora do casamento), por dificuldades econômicas ou risco de morte para a mulher. Em 2011, um grupo de senadores e senadoras da Frente Ampla, partido do ex-presidente José Mujica, apresentou um projeto de lei para legalizar a interrupção voluntária da gravidez.

Aprovado no Senado por 17 votos a favor e 14 contrários, o texto seguiu para a Câmara de Deputados. Em outubro de 2012, com uma votação apertada – 50 deputados a favor e 49 contra -, o Uruguai legalizou aborto nas 12 primeiras semanas de gestação. O prazo se estende às primeiras 14 semanas em casos de estupro e pode ser maior em caso de risco de morte para a gestante ou anomalias fetais incompatíveis com a vida.

“Foi necessário negociar uma lei de menor alcance, o que implicou a inclusão dos cinco dias de reflexão e a passagem por uma espécie de tribunal de médicos. O objetivo é colocar barreiras para que a mulher desista de abortar, mas com essa negociação foi possível conseguir um voto da oposição, que foi o que aprovou a lei vigente”, conta à Gênero e Número Soledad González, cientista política e integrante do coletivo feminista Cotidiano Mujer.

 

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Segundo dados do Ministério da Saúde Pública (MSP) uruguaio apresentados no International Journal of Gynecology and Obstetrics, durante os dois primeiros anos da lei, 98,8% dos abortos foram realizados com uma combinação de misoprostol e mifepristona, medicamentos sugeridos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como eficazes e seguros para a interrupção da gravidez. O aborto medicamentoso pode ser levado a cabo de forma caseira ou ambulatória e é o método privilegiado pelo sistema de saúde uruguaio.

Depois do aborto, a paciente retorna ao sistema de saúde para uma nova consulta, em que faz-se o seguimento do quadro para garantir que o procedimento tenha sido realizado com sucesso. Segundo o MSP, desde que a lei entrou em vigor, metade das 44.619 mulheres que foram orientadas sobre o método de interrupção voluntária da gravidez se apresentou para a consulta pós-aborto. Destas, 85% escolheram algum método anticoncepcional, que no Uruguai inclui colocação de DIU (dispositivo intrauterino), laqueadura tubária, vasectomia, preservativos masculinos e femininos, implantes anticoncepcionais subdérmicos e pílulas anticoncepcionais – todos gratuitos no sistema de saúde público.

Segundo dados divulgados pelo MSP em março de 2018, nos primeiros anos da lei houve um aumento acentuado no número de abortos, enquanto mais recentemente pode ser observada uma estabilização. Entre 2013, primeiro ano completo da lei em vigor, e 2014, o número de abortos por vontade da mulher cresceu 27%; entre 2016 e 2017 o aumento foi de 2%.

González afirma que esse aumento condiz com a etapa de implementação da lei. “A partir do momento em que a lei se consolida e as mulheres adquirem mais confiança no sistema de saúde, o sistema também vai gerando caminhos claros para o acesso ao direito. E aí as mulheres começam a utilizar com maior frequência o sistema de saúde e a lei.” De acordo com a cientista política, não se trata necessariamente de “um aumento real no número de abortos, mas um aumento no número de abortos legais: as mulheres deixam de fazê-lo de forma clandestina e passam a fazê-lo de maneira segura.”

Dados do MSP, também apresentados no International Journal of Gynecology and Obstetrics, dão conta de que entre 2001 e 2005 o país registrou 67 mortes maternas, 25 delas em consequência de abortos inseguros. Entre 2006 e 2010, das 51 mortes maternas, quatro foram consequência de abortos em situações de risco. Essa queda se relaciona à implementação em todo o país, em 2004, das “Medidas de proteção materna diante do aborto provocado em condições de risco”. A normativa estabeleceu uma estratégia de atenção integral em saúde como resposta às complicações e à mortalidade em consequência do aborto inseguro e preparou o terreno para a legalização.

Em agosto de 2017, o MSP divulgou dados sobre o avanço da política pública de saúde sexual e reprodutiva, que dão conta de que entre 2013 e 2016 o Uruguai registrou três mortes por aborto, nenhum deles realizado no sistema de saúde.

Para Soledad González, aumento no número de abortos no Uruguai é, na verdade, aumento no número de abortos legais. Foto: Reprodução
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Espanha

Em março de 2010, passou a valer na Espanha a lei de Saúde Sexual e Reprodutiva e da Interrupção Voluntária da Gravidez, também chamada “lei de prazos”, porque não observa causas e sim limites de tempo para a prática legal do aborto. Por livre decisão da mulher, até a 14ª semana de gestação, e até a 22ª de gestação em casos de risco de morte para a gestante ou anomalias fetais incompatíveis com a vida. Segundo dados do Ministério da Saúde, Consumo e Bem-estar social, cerca de 70% dos abortos legais praticados no país em 2016 aconteceram até as oito primeiras semanas de gestação. Em 62% dos casos, essa foi a primeira interrupção legal da gravidez da mulher que a realizou.

Na avaliação de Lola Liceras, da Anistia Internacional Espanha, a lei de 2010 trouxe maior transparência para uma prática que já era realizada a partir de manobras interpretativas da lei anterior, que legalizava o aborto em casos de estupro, risco para a vida ou saúde física e psíquica da gestante ou anomalias fetais incompatíveis com a vida.

“Nos países onde o aborto é permitido em determinados casos sempre existe uma causa que abre a porta para que as mulheres possam decidir. Portanto, as leis de prazos são mais claras, não obrigam as mulheres a argumentar de maneira fictícia ou os médicos a fazer o mesmo”, aponta.

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Segundo dados do Ministério de Saúde da Espanha, entre 2001 e 2009, último ano antes da entrada em vigor da nova norma, os abortos por motivos de saúde da gestante superaram 95% em todos os anos da década. Em 2010, quando o país legalizou a prática, os abortos por motivo de saúde corresponderam a 50% dos procedimentos, enquanto 42,9% das interrupções da gravidez foram realizadas por decisão da gestante.

Nos três primeiros anos da legalização, a Espanha registrou um leve aumento no número absoluto de abortos legais em relação ao último ano da proibição. A partir de 2013, a tendência foi de redução, o que se manteve até 2016, último ano com dados disponíveis do Ministério de Saúde. Em 2009, o país registrou 111.482 interrupções voluntárias de gravidez, enquanto em 2016 houve 93.131 abortos legais. Destes, 90% foram motivados por decisão da mulher.

A legalização veio acompanhada também da redução de abortos em todas as faixas etárias, mas especialmente entre adolescentes com até 19 anos. Enquanto em 2010 a taxa para esse grupo era de 13 abortos por cada mil adolescentes, em 2016 não chegou a 9.

Em dezembro de 2013, o Conselho de Ministros do governo do ex-presidente Mariano Rajoy (PP) apresentou um projeto de lei ainda mais restritivo do que a norma vigente entre 1985 e 2010. Na proposta, o aborto seguiria legal até a 12ª semana de gestação em casos de estupro e até a 22ª em casos de risco de morte para a gestante, mas eliminava a possibilidade de abortar legalmente em caso de anomalias fetais incompatíveis com a vida.

Sem consenso para aprovação, o projeto de lei foi retirado pelo próprio governo. No entanto, em 2015 o governo conseguiu incluir a obrigatoriedade de acompanhamento de responsáveis ou tutores para menores de 18 anos que desejem realizar um aborto legal. Na lei de 2010, esse requisito era exigido apenas para adolescentes de 15 anos ou menos.

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Peça de campanha pelo "sim" no referendo que legalizou aborto em Portugal, em 2007. | Foto: j-cornelius / Flickr CC

Portugal

Em 1998, o Parlamento português aprovou uma lei de interrupção voluntária da gravidez, para substituir a lei que desde 1984 despenalizava o aborto em casos de risco de morte ou à saúde da gestante, anomalia fetal incompatível com a vida e gestação decorrente de estupro. A punição de até três anos de prisão para mulheres que abortavam fora desses casos foi mantida.

Na ocasião, em meio a uma forte pressão da Igreja Católica, então primeiro-ministro António Guterres, hoje Secretário-Geral da ONU, anunciou um acordo com a oposição para que o direito ao aborto fosse submetido a um referendo popular.

Em uma votação que contou com 68% de abstenção, 50% dos votantes responderam não à pergunta: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” Pelo resultado apertado da votação, o pleito não teve efeito vinculante, mas a falta de acordo político impediu o Parlamento de avançar na matéria.

Alexandra Alves Luis, pesquisadora e presidente da Associação Mulheres sem Fronteiras, conta que, naquele momento, os argumentos com foco na saúde das mulheres ganharam força e se uniram aos dos movimentos feministas, que defendem a autonomia da mulher e seu direito a decidir sobre o próprio corpo. “Começou-se a debater sobre o impacto em mulheres pobres e de classe baixa, que morriam, que chegavam ao hospital em condições muito difíceis. Os profissionais de saúde foram muito importantes, porque trouxeram casos muito práticos”.

 

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Em 2007, um segundo referendo repetiu a mesma pergunta feita nove anos antes à população portuguesa. Dessa vez, com uma abstenção de 56%, ganhou o sim, escolhido por quase 60% dos eleitores.

O aborto passou a ser legal dentro das 10 primeiras semanas de gestação por opção da mulher e mantiveram-se os prazos vigentes para os casos já previstos pela lei anterior. A mulher precisa passar por um período de reflexão de, no mínimo, três dias a partir da primeira consulta, durante os quais pode acudir a atenção psicológica ou assistência social.

Assim como na Espanha e no Uruguai, em Portugal, nos primeiros anos da nova lei, o número de abortos legais aumentou. Em 2008, foram realizados 18.607 procedimentos, com pico de 20.480 em 2011, ano em que o país aprofundou medidas de austeridade em obediência ao programa da troika – uma comissão formada por integrantes do Fundo Monetário Internacional (FMI), Comissão Europeia (CE) e Banco Central Europeu (BCE).

“Em Portugal, mulheres e homens têm direito a anticoncepcionais gratuitos oferecidos pelos serviços de saúde pública. Porém, durante 2011 nós tivemos um grave problema a partir do momento em que o país adotou medidas de austeridade. Não deixou de haver distribuição, mas o acesso ficou mais restrito”, explicou Alves Luis.

Já em 2012, o número de interrupções voluntárias da gravidez iniciou uma tendência de queda. Segundo a Direção Geral da Saúde (DGS), em 2016, último ano com dados disponíveis, houve 15.959 procedimentos, uma queda de 22% em cinco anos.

“Quando é atendida, a mulher tem apoio e aconselhamento – não vou dizer em todos os lugares, mas na maioria – que não a culpabilizam. Ela recebe informação e é acompanhada. Os números mostram que a não culpabilização tem resultados positivos”, avalia a pesquisadora. “E nós sabemos hoje que nunca mais morreu uma mulher em Portugal por tentar fazer um aborto.”

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"Números mostram que a não culpabilização tem resultados positivos.” Alexandra Alves Luis, Associação Mulheres sem Fronteiras de Portugal. Foto: Reprodução

Entre 2001 e 2007, antes da legalização, Portugal registrou 14 mortes maternas relacionadas a complicações pós-aborto, segundo um relatório da DGS publicado em dezembro de 2009. Entre 2011 e 2014, último ano com dados oficiais, o país não registrou nenhuma morte materna vinculada à interrupção legal ou ilegal da gravidez.

Ao longo dos anos em que o aborto passou a ser legal em Portugal, entre 94% e 97% das mulheres que interromperam a gravidez no sistema de saúde escolheram um método anticoncepcional após o procedimento.

O sistema público de saúde é responsável por cerca de 75% das práticas de aborto legal em Portugal. Dentro dele, o método farmacológico é utilizado em cerca de 98% dos casos. Já no sistema de saúde privado, cerca de 93% dos procedimentos são realizados por método cirúrgico, com anestesia geral.

Segundo a DGS, cerca de 70% das mulheres que acudiram ao sistema de saúde para realizar um aborto legal em 2016 nunca haviam realizado o procedimento antes e 50% delas já tinham um ou dois filhos. Naquele ano, 379 brasileiras abortaram em Portugal.

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Aline Gatto Boueri

Jornalista formada pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECo-UFRJ), colabora com a Gênero e Número desde 2017. Metade tijucana e metade porteña, cobre política latino-americana desde 2013, com foco em direitos humanos, feminismos, gênero e raça. Também cuida de criança todos os dias.

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