Cientistas negras tiveram mais dificuldades para submeter trabalhos na quarentena | Foto: Gian Cornachini/Fiocruz

Pandemia acentua dificuldades para acadêmicas negras e mães

Pesquisa com mais de 14 mil acadêmicos mostra como crise reduziu submissão de artigos e dificultou trabalho remoto de maneira desigual segundo gênero, raça e parentalidade

Por Maria Martha Bruno*

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Durante a pandemia, mulheres negras (com ou sem filhos) e mulheres brancas com filhos (principalmente até 12 anos) foram os grupos cuja produtividade acadêmica sofreu maior impacto. Já a produtividade de homens, sobretudo sem filhos, foi a menos afetada. As conclusões são da pesquisa “Produtividade acadêmica durante a pandemia: Efeitos de gênero, raça e parentalidade”, coordenada por Fernanda Staniscuaski, professora do Departamento de Biologia Molecular e Biotecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

O levantamento foi realizado nos meses de abril e maio e consultou pouco mais de 14 mil membros da comunidade acadêmica, entre alunos de pós-graduação, pós-doutorandos e docentes. Os questionários seguiram o padrão do IBGE como referência para a questão de raça ou cor, sendo que, para a análise dos dados, pretos e pardos foram reunidos como negros. O estudo questionou se essas pessoas estão conseguindo trabalhar remotamente, cumprir prazos (solicitações de fomento, prestação de contas, etc.) e submeter artigos. Docentes e alunos de pós-graduação formam os maiores grupos: 3.629 e 9.970 pessoas, respectivamente.

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Metade das professoras consultadas informou que conseguiu submeter artigos durante a pandemia. Entre homens, a proporção chega a 68%. Quando a pesquisa cruza gênero, raça e parentalidade, as diferenças são gritantes. Enquanto 46% das docentes negras com filhos conseguiram submeter seus trabalhos durante o período, entre homens brancos sem filhos a proporção chega a 77%. Vale apontar que a diferença entre mulheres negras com e sem filhos é de apenas dois pontos percentuais, enquanto entre mulheres brancas ela chega a onze pontos.

 

 

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“Uma maior porcentagem de mulheres brancas sem filhos conseguiu submeter artigos durante a pandemia, quando comparadas às brancas com filhos. No entanto, para mulheres negras não há esta diferença entre quem é mãe e quem não é. Isto mostra que o racismo é um problema central na academia, com um peso muito grande para as mulheres. Nossa hipótese é que o resultado que vemos nas mulheres negras, em relação à submissão, é consequência de uma menor rede de colaboração na academia. No cenário da pandemia, isso ficou exacerbado. Sozinha com certeza é muito mais difícil manter as submissões neste período”, comenta Fernanda Staniscuaski. 

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Em maio, a revista Dados, do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), já havia mostrado uma variação relevante entre artigos submetidos que contavam com mulheres na autoria. Na comparação entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020, houve queda de 40% para 28% na participação de pesquisadoras.

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Lattes ainda não inclui licenças

O trabalho remoto também é uma realidade heterogênea entre os acadêmicos. Entre os pós-graduandos, grupo mais numeroso consultado, apenas 11% das mulheres com filhos  disseram que conseguem trabalhar deste jeito. Homens com filhos chegam a 21%, ao passo que 41% daqueles que não têm filhos dizem conseguir trabalhar de casa. Novamente, é no cruzamento entre gênero, raça e parentalidade onde aparecem as maiores discrepâncias: somente 10% das mulheres negras com filhos estão fazendo o trabalho acadêmico remoto; entre brancas com filhos a proporção sobe para 12%, e chega a 44% entre homens brancos sem filhos. 

 

 

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Embora tenha se comprometido a destinar uma aba com os períodos de licença maternidade e paternidade no currículo Lattes, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ainda não providenciou a inclusão na plataforma. Staniscuaski espera que a pesquisa funcione como mais um instrumento de pressão em instâncias de fomento à ciência para considerar questões de gênero e parentalidade na carreira acadêmica. 

“A questão de gênero, mais especificamente da maternidade, não é algo novo. Mas pouco foi feito a respeito, muito porque se assume que é algo individual, como se a cientista é que não estivesse dando conta da carreira e da maternidade. Mas, ao colocarmos números neste cenário, não dá mais para negar que é algo difundido. E apontamos como pode ser melhorada esta situação. Infelizmente, mesmo assim, será um caminho longo”.

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*Maria Martha Bruno é diretora de conteúdo da Gênero e Número

Maria Martha Bruno

Jornalista multimídia, com experiência na cobertura de política e cultura, integra a equipe da Gênero e Número desde 2018. Durante três anos, foi produtora da NBC News, onde trabalhou majoritariamente para o principal noticiário da emissora, o “NBC Nightly News”. Entre 2016 e 2020, colaborou com a Al Jazeera English, como produtora de TV. Foi repórter e editora da Rádio CBN e correspondente do UOL em Buenos Aires. Jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição, e atualmente cursa o programa de Doutorado em Comunicação na Texas A&M University, nos EUA.

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