'Pañuelazo' na porta do Congresso argentino. Foto: MONK Fotografía

Debate inédito no Congresso argentino mostra força de ativismo pela legalização do aborto

Projeto de lei que legaliza a interrupção voluntária da gravidez é debatido pela primeira vez por parlamentares na Argentina, impulsionado por milhares de mulheres nas ruas; a Gênero e Número levantou os dados que baseiam o debate no país, onde maior parte das mulheres mortas por aborto no país tinha entre 25 e 29 anos e rede de ativistas acompanhou mais de 12 mil mulheres a abortar nos últimos quatro anos

*Por Aline Gatto Boueri

  • Números do aborto na Argentina

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  • Assim como no Brasil, aborto no Código Penal

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  • Misoprostol para abortos legais e ilegais

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Nesse mês, o Congresso argentino começou a debater pela primeira vez na história um projeto de lei para legalizar o aborto. A proposta de legalização da interrupção voluntária da gravidez chegou à Câmara de Deputados por iniciativa popular reunida na Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito.

Até o fechamento desta matéria, dos 257 deputados argentinos, 106 estão a favor da medida, 112 contra e dois declaram abstenção. Ainda há 37 legisladores da casa com posicionamento indefinido. O levantamento com as posições dos congressistas está sendo feito colaborativamente desde fevereiro, em uma planilha lançada pelo projeto Economia Femini(s)ta, que produz e difunde dados sobre desigualdade de gênero na Argentina.

A Frente de Esquerda dos Trabalhadores (FIT) é o único bloco da casa onde o projeto de lei tem 100% de apoio. Na Frente para a Vitória (FpV), força liderada pela ex-presidente e hoje senadora Cristina Kirchner, 81% dos seus membros na Câmara se declaram favoráveis à aprovação da lei. No bloco da aliança Cambiemos, do atual presidente Mauricio Macri, 30% dos deputados se posicionam a favor da legalização do aborto, enquanto 52% são contrários e 18% estão indecisos.

No Senado, o quadro ainda está pouco claro. Dos 72 membros, 16 são favoráveis, 27 contrários, 10 não confirmaram seu posicionamento e falta informação sobre outros 19.

Lenços verdes são símbolo da luta pelo direito ao aborto na Argentina. (MONK Fotografía)

“Não existe uma posição consolidada hoje, é um tema transversal a todos os espaços políticos. O trabalho legislativo da Campanha passa então por conversar com cada legislador”, explica Lucila Szwarc, integrante da Campanha Nacional, socióloga e pesquisadora em saúde pública, a Gênero e Número. “Levamos critérios científicos sólidos. Nossa postura é demonstrar que quem é contrário à legalização do aborto baseia sua opinião em critérios morais, não em evidências científicas ou em evidências sobre a discussão do direito. E que essa posição surge do olhar das igrejas e da construção do feto como pessoa por essas igrejas.”

A Campanha articula movimentos feministas, organizações políticas, movimentos sociais, profissionais da saúde, artistas, políticos, profissionais de comunicação, sindicatos e agrupações de defesa dos direitos humanos. É a sétima vez que essa frente nacional apresenta o projeto – com modificações em relação ao original de 2007 – e pela primeira vez conseguiu apoio parlamentar para que fosse tratado em comissões.

“O projeto da Campanha foi atualizado, então tivemos que voltar a reunir o mínimo de 70 assinaturas de deputados, necessárias para que fosse aceito pelo Câmara. Neste ano, pelo efeito que a instalação do debate teve na sociedade civil e nos meios de comunicação, também pela projeção do movimento Ni Una Menos e pela luta dos movimentos de mulheres nas ruas, conseguimos reunir essas assinaturas em menos de uma semana”, relata Szwarc.

Nessa etapa, oradores indicados por deputados expõem argumentos a favor e contra a iniciativa, em jornadas transmitidas ao vivo todas as terças e quintas, acompanhadas de manifestações – os chamados pañuelazos, com os lenços verdes que simbolizam a luta pelo direito ao aborto – na porta do Congresso. A previsão é de que as audiências públicas terminem em meados de maio, quando será possível definir uma data para a votação do projeto pelo plenário da Câmara.

Números do aborto na Argentina

Em seu discurso de abertura do ano parlamentar de 2018, o presidente Mauricio Macri abriu caminho para que a legalização do aborto fosse debatida no Congresso. Em pronunciamento à nação, declarou estar “a favor da vida”, mas também “a favor dos debates maduros e responsáveis”, e disse ver “com agrado que o Congresso inclua esse tema em sua agenda para este ano.” Apesar da posição majoritariamente contrária dentro de sua força política, o mandatário argentino se diferenciou de sua antecessora e primeira mulher eleita presidente no país, Cristina Kirchner, que durante seus dois mandatos não colocou o aborto como parte da agenda legislativa na Argentina.

“É a primeira vez que uma pessoa à frente do país coloca esse tema no centro da cena política, e o valor disso é inegável. Mas esse valor é sustentado em uma demanda do movimento de mulheres e de direitos humanos na Argentina. Uma demanda que ganhou as ruas, que tem história. O debate ganhou espaço na agenda pública também por seu próprio peso”, enfatiza Edurne Cárdenas, advogada do Centro de Estudos Sociais e Legais (CELS).

Entre 2006 e 2016 – ano com os últimos dados disponíveis -, a Argentina registrou 3.314 mortes maternas. Destas, 681 mulheres morreram em decorrência de abortos – uma em cada quatro tinha entre 25 e 29 anos. Os dados são dos Anuários de Estatísticas Vitais do Ministério da Saúde, documentos que reúnem informações sobre “nascimentos, mortes, mortes fetais e casamentos”. Os anuários não diferenciam casos de abortos espontâneos e interrupções voluntárias de gestação.

Lucila Szwarc, da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto (MONK Fotografía)

Dados sobre atendimentos hospitalares na rede pública revelam que 48.949 mulheres procuraram o sistema de saúde por causa de um aborto no ano de 2013, o último cujos dados foram disponibilizados. Um terço das mulheres hospitalizadas por complicações pós-aborto tinha entre 20 e 24 anos, enquanto 462 eram meninas entre 10 e 14 anos.

A falta de estatísticas oficiais atualizadas sobre o aborto na Argentina leva a que redes de profissionais da saúde ou movimentos feministas que acompanham a prática de abortos sejam a fonte mais procurada na hora de sistematizar informações sobre o tema, inclusive em casos de interrupção legal da gravidez (ILE) pelos termos previstos na lei.

As Socorristas en Red, ativistas que acompanham e brindam informação sobre como realizar um aborto seguro com medicamento, atuam desde 2013 e sistematizam dados de seus atendimentos desde 2014. Nos últimos quatro anos, 12.590 mulheres recorreram aos coletivos da organização – presentes em 20 das 24 unidades federativas da Argentina – para receber acompanhamento na interrupção da gestação. As militantes também acompanharam 379 casos de acesso à interrupção legal da gravidez no sistema público de saúde, 315 deles entre 2016 e 2017.

Assim como no Brasil, aborto no Código Penal

Desde 1921, o aborto na Argentina não é punível em casos previstos pelo artigo 86 do Código Penal: quando a gravidez representa “um perigo de vida para a mãe e esse perigo não pode ser evitado por outros meios” e quando é resultado de “estupro ou atentado ao pudor cometido contra uma mulher idiota ou demente”. No último caso, a mulher precisa do consentimento de seu representante legal para realizar o procedimento, segundo o texto original da norma quase centenária.

Entre o ano de começo de vigência do Código Penal e o retorno à democracia, em 1983, o artigo que tratava da não punibilidade do aborto foi modificado quatro vezes, em duas delas foi alterado por normas mais restritivas – a última em 1976, ano do último golpe militar no país. Em 1984, o artigo voltou à sua redação original, que foi objeto de debate jurídico até 2012, quando a Corte Suprema do país emitiu parecer sobre o assunto.

Como não estava claro se o aborto em casos de estupro estava isento de punição somente para mulheres com alguma deficiência mental, a última instância da Justiça argentina pôs fim às diferenças de interpretação e determinou que o aborto em casos de estupro não deve ser penalizado “em atenção aos princípios de igualdade, dignidade das pessoas e legalidade”. A Corte também definiu que os médicos não devem pedir autorização judicial para praticar abortos nos casos previstos pelo Código Penal, e que para o procedimento basta uma declaração jurada da vítima ou de seu representante legal.

Além disso, a Corte também determinou o fim da judicialização dos casos de aborto previstos por lei, o que muitas vezes prolongava o tempo de espera para o acesso ao direito ou mesmo terminava em uma sentença que impedia a mulher de exercê-lo. Na decisão, o tribunal de última instância ponderou que “os juízes têm obrigação de garantir direitos e sua intervenção não pode se transformar em um obstáculo para exercê-los” e que “o acesso a essas intervenções fica exclusivamente reservado à decisão da paciente e de seu médico.”

“Na prática, infelizmente não acontece assim. Existe tanto estigma ao redor do aborto, que mulheres grávidas que se enquadram dentro das causas que dão direito ao aborto legal não recorrem ao sistema de saúde por medo a ser criminalizadas ou penalizadas”, disse Cárdenas.

Misoprostol para abortos legais e ilegais

O Ministério da Saúde argentino indica procedimento medicamentoso ou instrumental para a realização do aborto legal. O primeiro pode ser feito de forma ambulatória e não requer internação em todos os casos.

Segundo dados das Socorristas, em 2017 5.873 mulheres procuraram a rede. Dessas, 4.781 realizaram aborto com misoprostol, medicamento que provoca contrações uterinas e é sugerido, acompanhado de mifepristone, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como método eficaz e seguro para a interrupção da gravidez, preferencialmente dentro das 12 primeiras semanas de gestação.

Hoje, o misoprostol encontrado na Argentina não é fabricado com o fim de interromper uma gestação e tem acesso controlado. Vendido como Oxaprost pelo laboratório Beta, o remédio contém também diclofenaco e é oferecido como anti-inflamatório, analgésico e antipirético.

Médica de família em um Centro de Saúde e Ação Comunitária (CeSAC) de uma favela de Buenos Aires, Clara Noceti integra uma equipe de atenção primária à saúde que atende uma população de 17 mil pessoas, segundo o último censo (2010). Ela relata que o procedimento é receber a pessoa que solicita a interrupção legal da gravidez, fazer os exames de acompanhamento da gestação e entregar o medicamento, com orientações sobre seu uso e possíveis situações de alarme.

Mulheres se manifestam diante do Congresso argentino pelo direito ao aborto. (MONK Fotografía)

Depois de realizado o aborto, a mulher segue o atendimento no centro de saúde e, em alguns casos, se solicita acompanhamento de assistentes sociais. “A diferença com outras práticas de saúde que eu realizo no dia a dia é que, no caso do aborto, eu costumo explicar o marco legal do acesso a esse direito na Argentina.”

Noceti é integrante da Rede de Profissionais de Saúde pelo Direito a Decidir.  Ela relata que em instituições de maior porte, como hospitais, muitas vezes a falta de formação em garantia de direitos produz situações de assédio moral por parte de médicos de maior hierarquia contrários ao aborto, que coagem equipes inteiras a assinar um termo de objeção de consciência – uma justificativa íntima para não seguir uma norma – ou promovem um atendimento que não segue os parâmetros estabelecidos pelo protocolo. “Nosso papel político é visibilizar a prática do aborto e deixar em evidência os obstáculos que existem em um contexto em que a legalidade dessa prática está em constante discussão.”

O projeto de lei debatido hoje na Câmara de Deputados da Argentina tem como um de seus fundamentos que a objeção de consciência não pode impedir o acesso ao atendimento adequado e que o Estado deve garantir que haja equipes de saúde preparadas e permanentemente disponíveis para prestar o serviço, tanto na rede privada quanto na pública.

*Aline Gatto Boueri é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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