Os 7 erros do debate público sobre aborto após declaração de Lula

O aborto é um tema das eleições 2022, fale Lula sobre ele ou não. Estará presente nas listas de distribuição do WhatsApp, será alvo de desinformação, estará nas redes sociais e em palanques. Não está sob tutela do campo progressista. Já é parte do jogo.

Por Giulliana Bianconi e Sonia Côrrea*

  • 1. Insistir no mito de que conservadores são sempre contra o aborto legal

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  • 2. Buscar a validação de partidos e líderes políticos sobre a declaração de Lula

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  • 3. Usar eleições anteriores como “lição” para evitar debate sobre aborto

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  • 4. Desconsiderar que a descriminalização nos países vizinhos pode impactar o debate eleitoral no Brasil

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  • 5. Ficar no senso comum que “falar sobre acesso ao aborto no Brasil em 2022 significa dar votos a Bolsonaro”

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  • 6. Argumentar a favor do direito ao aborto condenando o uso do Misoprostol

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  • 7. Insistir no debate sobre aborto sem usar dados públicos

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Ao defender que o aborto no Brasil deveria ser encarado como uma questão de saúde pública e um direito das mulheres, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sinalizou, na semana passada, que estava disposto a tratar do assunto na campanha eleitoral. A declaração está em sintonia com a movimentação política de países vizinhos e contribuiu para desobstruir o debate por aqui, sempre tratado como tabu em anos eleitorais. Mas provocou reações de imediato em todo o campo político. No momento em que o desafio é construir uma campanha capaz de derrotar nas urnas o projeto bolsonarista –  que faz do repúdio ao direito ao aborto uma de suas bandeiras – não faltaram análises como “Lula causou preocupação ao partido”, “Lula escorregou numa casca de banana”, “Lula cometeu um equívoco logo na largada”. Porém, a observação de décadas do debate sobre aborto no Brasil e na América Latina pelos movimentos de mulheres nos informa que essa relutância e advertências são ineficazes, pois não vão impedir a direita e o grupo antiaborto de tratarem desse tema de forma virulenta nas eleições. Listamos 7 erros observados nas conversações e análises que repercutiram na mídia e nas redes sociais na última semana.

1. Insistir no mito de que conservadores são sempre contra o aborto legal

Existe uma parcela da sociedade conservadora no Brasil que, no final de 2018, afirmava ser contra qualquer tipo de aborto, segundo pesquisa Datafolha publicada no início de 2019. Eram 4 a cada 10 brasileiros/as. Ou: 41% da população. A pesquisa entrevistou 2,7 mil pessoas. Naquele mesmo janeiro de 2019, Sonia Corrêa e Angela Freitas abordaram em artigo como a opinião pública sobre o direito ao aborto tem oscilado ao longo dos anos e deve, por isso, ser analisada sempre à luz do contexto político. Assim, vamos os dados da mais recente pesquisa sobre “aborto” no Brasil, publicada em março de 2022 pelo Instituto Patrícia Galvão/ Locomotiva. O tamanho da amostra  e a metodologia são equiparáveis ao Datafolha de 2018: 2 mil pessoas entrevistadas e aplicação em praça nacional. Seus resultados informam que 64% consideram que o aborto deve ser discutido como uma questão de saúde pública e de direitos e 87% concordam que é direito da vítima de estupro decidir se quer ou não interromper a gravidez. Nesse grupo dos 64%, 60% são evangélicos. Ou seja, em contraste com análises e opiniões dos últimos dias, esses números nos dizem que há hoje no país um amplo espaço para se debater aborto como uma questão de saúde pública.  Não apenas porque, como já havia mostrado o Datafolha de 2018, 6 a cada 10 brasileiros/as são a favor do aborto legal em pelo menos algum caso, mas também a maioria considera legítimo o aborto em caso de estupro. Mesmo entre evangélicos existe o reconhecimento de que se trata de uma questão que vai muito além do debate religioso.

2. Buscar a validação de partidos e líderes políticos sobre a declaração de Lula

Assim que a declaração dada pelo ex-presidente Lula começou a repercutir durante evento presencial em São Paulo, na semana passada, a grande imprensa foi buscar declarações de líderes políticos e religiosos contrários ao direito ao aborto. Essa opção, como se sabe, é como uma profecia auto-cumprida e essas vozes disseram o que já se sabia que iam dizer. A opção de ouvir líderes partidários do campo de esquerda, como outras vozes que poderiam validar ou não a declaração de Lula, também pode ser lida como um equívoco, pois como se sabe as cúpulas partidárias, mesmo à esquerda, são ainda pouco comprometidas com as pautas da igualdade de gênero. Se não há empenho dessas lideranças em defender nem mesmo a ampliação do número mulheres no exercício da política, exigindo que o TSE ainda investigue fraude e o descumprimento de leis criadas com esse propósito, o que leva a crer que tratariam com conhecimento e a urgência necessária a questão do direito ao aborto? A tentativa de parlamentares e partidos de invalidar neste momento o debate puxado por Lula é um reflexo não da opinião da sociedade, necessariamente, mas dos próprios partidos, que operam numa lógica estritamente instrumental: importa menos o projeto e mais a quantidade de votos que avaliam que discursos e pautas podem mobilizar de imediato. Esquecem de um ponto fundamental: o assunto aborto não está sob a tutela da esquerda ou do campo progressista e poderá irromper a qualquer momento no debate eleitoral, sob qualquer viés, em tom de ataque, estando validado ou não. 

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3. Usar eleições anteriores como “lição” para evitar debate sobre aborto

Na primeira eleição direta pós-ditadura militar, em 1989, o Conselho dos Direitos da Mulher, então presidido por Jacqueline Pitanguy, convocou os presidenciáveis para um debate no qual  foram inquiridos quanto a suas posições sobre o aborto, que oscilaram do repúdio à defesa da legalização. A pergunta nem causou escândalo nem foi recusada por ninguém. Esse debate razoável não impediu, contudo, que a “maldição do aborto” fosse usada por Fernando Collor contra Lula no famoso debate da Globo. O ataque, por sua vez, também não impediu que Lula, quando eleito presidente, criasse, no seu primeiro mandato, uma comissão para discutir a descriminalização do aborto no Brasil. O debate sobre aborto, mesmo que interditado ao longo dos anos, está presente nas disputas políticas desde a redemocratização, mas já há anos muito se fala sobre 2010, como um momento emblemático da disputa de narrativa.

É verdade que na reta final das eleições de 2010 a então candidata Dilma Rousseff precisou fazer um corpo a corpo junto a igrejas e a evangélicos após José Serra usar durante a campanha declarações dela sobre o direito ao aborto. O contexto político era bem diferente de hoje e não havia uma base governista e um presidente se opondo abertamente aos direitos reprodutivos das mulheres no Planalto, mas naquele ano Dilma Rousseff venceu as eleições mesmo que a maioria de suas declarações sobre aborto, desde 2007, tenha sido no sentido da descriminalização. “Abortar não é fácil para mulher alguma. Duvido que alguém se sinta confortável em fazer um aborto. Agora, isso não pode ser justificativa para que não haja a legalização. O aborto é uma questão de saúde pública. Há uma quantidade enorme de mulheres brasileiras que morre porque tenta abortar em condições precárias”. Era esse o discurso de Rousseff em 2009. Não foi esse tipo de declaração que a impediu de se viabilizar candidata no ano seguinte, o que mostra que antes de ser antagonizado na campanha pelo opositor José Serra, o tema não foi posto como crítico pelos partidos, pelo eleitorado. Como não houve um debate amplo no país naquele momento, Serra passou a tratar do assunto sistematicamente para inflar bases religiosas. A mídia seguiu tratando como “questão polêmica” e se limitou a isso. Essa é a maior lição sobre 2010. A de que o debate público amplo é imprescindível, na mídia e além dela, para que o tema não seja capturado por um discurso doutrinário desconectado da realidade das mulheres no Brasil, onde 1 a cada 5 já realizou um aborto até os 40 anos. Naquele ano, Dilma recuou no tom, mas seguiu afirmando durante a campanha que o assunto era questão de saúde pública.  O ex-presidente Lula sinalizou à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que aquele próximo governo seguiria sendo de abertura à Igreja Católica, em carta. José Serra, que afirmava ser contra o direito ao aborto, não foi eleito. A pauta não definiu as eleições, portanto.

4. Desconsiderar que a descriminalização nos países vizinhos pode impactar o debate eleitoral no Brasil

Nos últimos cinco anos, a chamada Maré Verde se tornou a marca do debate sobre direito ao aborto na América Latina. O movimento puxado pelas feministas argentinas, principalmente pela Campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, criada em 2005, se espraiou pela região. Os processos recentes são interessantes para olhar a correlação entre direito ao aborto e eleições. Na Argentina, em 2018, durante o governo de Mauricio Macri – alinhado à direita –  uma proposta de reforma legal foi aprovada pela Câmara, mas derrotada pelo Senado. Em 2019, a proposta alcançou pela segunda vez o Congresso. Era ano de eleições. A dois meses do pleito, o peronista Alberto Fernández declarou: “Eu tenho a decisão política [de descriminalizar o aborto]. Eu tenho a decisão política porque não quero mais que nenhuma mulher morra”. Foi um dia de pânico no mercado financeiro, com dólar nas alturas. Fernández venceu as eleições, mostrando que o pânico não era exatamente do eleitorado. Era, mais uma vez, uma reação orquestrada em torno da “maldição do aborto” por estruturas e atores conservadores. Em dezembro de 2020, a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez foi aprovada na Argentina.

Já no Chile, onde qualquer tipo de aborto era proibido até 2017, a então presidente Michelle Bachelet foi pessoalmente ao Congresso apresentar o projeto de Lei que deixou para trás a criminalização absoluta, herdada da Era Pinochet, para fazer uma reforma parcial da lei naquele ano. Desde então, o debate avançou e em março deste ano foi inserida no texto da nova Constituição chilena a descriminalização total do aborto. O artigo que será votado com toda a Constituição em plebiscito no país em 04 de setembro vai além, inclusive, dos argumentos da saúde pública: “Todas as pessoas são titulares de direitos sexuais e direitos reprodutivos. Estes incluem, entre outros, o direito de decidir livremente, de forma autônoma e informada sobre o próprio corpo, sobre o exercício da sexualidade, reprodução, prazer e contracepção”. Até agora, o país conta com “as três causales”, ou as três situações, como no Brasil, em que a lei prevê o direito de a mulher interromper a gravidez. Na Colômbia, o aborto foi descriminalizado até a 24ª semana, neste 2022, também ano eleitoral. Todos esses exemplos indicam um caminho possível para a política latino-americana e seus líderes democráticos. É argumento para o Brasil de 2022.

5. Ficar no senso comum que “falar sobre acesso ao aborto no Brasil em 2022 significa dar votos a Bolsonaro”

Esse senso comum pode ser substituído pela seguinte afirmação: falar sobre aborto de forma rasa e superficial pode beneficiar o grupo antiaborto, portanto, o grupo bolsonarista.

O debate sobre aborto não é um tiro no pé. A decisão de ignorar a pauta e, dessa forma, permitir que seja utilizado pela direita quando for conveniente atribuir aos seus oponentes a imagem de “abortistas” e “genocidas de inocentes” é que se trata de um grande erro. O aborto é um tema das eleições 2022, fale Lula sobre ele ou não –  e se a mídia e outros atores da sociedade assumirem o compromisso de fazer esse debate com seriedade desde agora estarão contribuindo para que o eleitorado esteja mais informado e inserido na pauta quando surgirem os argumentos e ataques que têm a religião como pano de fundo.

Além disso, a leitura de que “falar em aborto no debate eleitoral significa dar votos a Bolsonaro” é reducionista no contexto em que o Brasil tem algumas outras urgências além de garantir vida digna às mulheres: durante o Governo Bolsonaro o Amazonas atingiu dois dos piores picos de queimadas desde que foi iniciada a medição, refletindo a política de desmatamento em curso no país. A pandemia, e sua ineficiente gestão federal no Brasil, agravou também a crise econômica e o Brasil voltou ao mapa da fome. Em 2021, eram pelo menos 19 milhões em situação de insegurança alimentar grave. O agravamento da fome não é apenas no Brasil, como mostrou a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mas no Brasil a insegurança alimentar e a fome são resultados também da falta de investimento na agricultura em oposição às políticas que beneficiam agronegócio, como vêm apontando especialistas e pesquisas sobre segurança alimentar. A inflação nos alimentos fez o tomate aumentar 94,5% em 12 meses e o café, 65%. Mesmo quem não está passando fome está sentindo fortemente a crise. Por que os/as brasileiras/as escolheriam seu próximo presidente apenas pelo debate sobre direitos reprodutivos?

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6. Argumentar a favor do direito ao aborto condenando o uso do Misoprostol

Mesmo entre as analistas, jornalistas e formadores/as de opinião que concordavam ser importante o ex-presidente Lula abordar publicamente a importância do acesso ao aborto legal na rede pública pelas brasileiras, houve argumentos que precisam ser revistos e analisados à luz da realidade da saúde pública. A condenação do uso de fármacos como o Misoprostol vai na contramão das recomendações e métodos já validados pela Organização Mundial da Saúde. Há pelo menos 10 anos a ciência já repercute que o uso do misoprostol reduz em até ⅓ complicações de cirurgias abortivas. As versões falsificadas vendidas em camelôs no Brasil colocam as mulheres em risco, não há dúvida, assim como o uso do medicamento sem a garantia de assistência médica, o que em caso de qualquer complicação pode ser fatal. Mas o uso do Misoprostol que segue os protocolos já estabelecidos pela OMS seguido da garantia de assistência médica é procedimento já da saúde pública. O aborto farmacológico, na fórmula que combina Misprostol e Mifepristona, é hoje o método oferecido pelos sistemas de saúde na maioria dos países em que o aborto é legal, como é o caso do Uruguai, México [Cidade do México], EUA e França, entre outros. Na Argentina, o governo adquiriu, em 2021, primeiro ano pós-descriminalização, 110.550 tratamentos de Misoprostol. Lá o Ministério da Saúde comunica sem tabus como o aborto com comprimidos  deve ser realizado e já solicitou a aprovação do uso da Mifespristona.

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7. Insistir no debate sobre aborto sem usar dados públicos

Se há algum consenso relacionado ao aborto no Brasil é que esse debate nunca se massificou ou foi tratado como questão de saúde pública de forma contínua. Porém, todos os dias mulheres abortam clandestinamente no país, a despeito do que pensam e falam líderes religiosos e políticos antiaborto. A afirmação do ex-presidente Lula sobre mulheres pobres estarem mais vulneráveis às complicações do aborto e correrem risco de vida já foi provada em pesquisas qualitativas e quantitativas. Não que precisasse, por ser óbvio. Mas os dados públicos vão além disso. Mostram que mulheres de todas as religiões abortam. Mostram que muitas vezes elas já são mães e querem interromper uma segunda, terceira ou quarta gravidez indesejada. Mostram que o aborto seguro pode reduzir custos para o sistema público de saúde. Ao olhar para os dados relacionados ao aborto no país – e na América Latina e em países desenvolvidos – se torna evidente que existe produção suficiente para se realizar um debate contínuo e embasado que possa evidenciar que insistir na criminalização não faz nenhum sentido do ponto de vista da gestão da saúde pública, da gestão de recursos, além de ir na contramão das políticas de equidade de gênero. Neste momento o debate não é necessariamente sobre a descriminalização total do aborto no Brasil em 2022, mas sobre a urgência de desobstruir essa conversa a partir do acúmulo existente nos bancos de dados e nas avaliações feitas das políticas de saúde da mulher. E uma vez que o assunto estiver na mesa, nos holofotes, e não engavetado, qualquer candidato/a pode falar sobre o acesso ao aborto, sobre a diferença entre o acesso das mulheres ricas e pobres, sem que isso gere comoção ou seja entendido como munição para os que se opõem ao direito de as mulheres viverem dignamente.

* Giulliana Bianconi é codiretora da Gênero e Número.
* Sonia Corrêa é co-coordenadora da Sexuality Policy Watch.

Giulliana Bianconi

É jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco, cofundadora e diretora da Gênero e Número. Atualmente também se dedica a pesquisar e a escrever sobre movimentos de mulheres e sobre desigualdades de gênero e raça na América Latina. Possui especialização em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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