Má execução do orçamento ameaça políticas de enfrentamento à violência contra mulheres para 2022

De acordo com levantamento da Gênero e Número, apenas 56,6% dos recursos disponíveis para as mulheres foram efetivamente gastos até novembro de 2021; estudo em parceria com a ActionAid revela como a pandemia de coronavírus escancarou a gestão ineficiente dos recursos públicos no Brasil, em especial para mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTs, quilombolas, crianças e adolescentes**

Por Vitória Régia da Silva*

  • Violência contra a mulher

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  • Pandemia e baixa execução do orçamento

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  • Outras prioridades

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Embora o Congresso ainda discuta a PEC dos Precatórios e o orçamento do ano que vem, já há recursos previstos no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para áreas sensíveis, entre elas, política para mulheres. Criticado por não ter usado toda a verba disponível para o enfrentamento à covid-19 e seus desdobramentos entre mulheres e populações mais vulneráveis, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDMFDH) deve receber em 2022 pelo menos R$ 39,6 milhões –  valor 56,8% maior do que constava no projeto de lei enviado para 2021 – para aplicar em políticas voltadas às mulheres. 

Apesar do aumento, esse valor é 33,3% menor do que o autorizado até setembro de 2021 (por meio de emendas parlamentares, a verba aumentou durante o ano), segundo Análise do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA 2022) do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que mostra como o governo diminui o aporte de recursos e ainda não executa o que tem disponível.

“O impacto disso para 2022 pode ser a redução do recurso: em tempos de escassez, a lógica dos planejadores do orçamento seria alocar em áreas com gestão mais efetiva”, explica Carmela Zigoni, assessora política do Inesc. Ela ainda afirma que o que pode justificar essa redução é a ineficiência na gestão, ou seja, o Ministério não elabora os editais para descentralizar o recurso por meio de convênios (com prefeituras, estados ou organizações da sociedade civil), não realiza planejamento, licitações, etc. 

Entre as organizações que monitoram o orçamento público, o Inesc se destaca pelo acompanhamento sistemático das contas públicas porque desenvolve não só estudos próprios com várias temáticas como realiza parcerias com outras organizações e órgãos da mídia, segundo o “Mapeamento de boas práticas de monitoramento do orçamento público com foco em gênero, raça e etnia, e juventude”, que analisa as organizações que acompanharam o orçamento público a partir destes três eixos durante os primeiros 18 meses da pandemia de covid-19. Este levantamento foi realizado pela ActionAid em parceria com a Gênero e Número.

 

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O estudo fornece uma visão geral do que tem sido feito em termos de acompanhamento e monitoramento do orçamento público no Brasil, sistematizando os principais achados recentes relativos a gênero, raça e etnia e juventude. A pandemia de coronavírus escancarou a má gestão dos recursos públicos no Brasil, que se reflete de forma ainda mais categórica nos grupos mais vulneráveis da população, como mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTs, quilombolas, crianças e adolescentes. Entre 2016 e 2019, por exemplo, o orçamento de promoção da igualdade racial caiu 71%. Pessoas negras e quilombolas foram excluídas do Plano Plurianual (PPA) de 2020-2023, que estabelece diretrizes orçamentárias; estes grupos e a palavra racismo sequer são mencionados no plano. O relatório mostra ainda que, apesar da importância do trabalho realizado pelas organizações que acompanharam o orçamento público, elas enfrentam grandes desafios no acesso aos dados, que muitas vezes são indisponíveis, falhos e não padronizados.

“Diante da forma como os recursos vêm sendo previstos e aplicados, faz-se ainda mais necessário e urgente esse papel da sociedade civil de monitorar e cobrar dos órgãos públicos medidas realmente eficazes e não somente paliativas. É importante que essas análises e monitoramento que os atores citados no estudo fazem cheguem cada vez mais a diversos públicos para que todas e todos possam cobrar políticas que realmente melhorem a vida em sociedade”, diz Renata Saavedra, especialista em Direitos das Mulheres na ActionAid.

Violência contra a mulher

A maior parte do orçamento para políticas voltadas às mulheres em 2022 está relacionada à violência de gênero. Do total, R$ 29,4 milhões (74%) serão alocados para pagamento do Disque 100 e do Ligue 180, serviços de atendimento a mulheres em situação de violência, e cerca de R$ 10 milhões serão para os demais programas de atendimento à mulher e apoio à implementação da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres. 

Para Priscilla Brito, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o alto investimento do Ministério no Ligue 180 reflete uma visão simplificada da política de enfrentamento à violência contra as mulheres ao achar que só se resolve através de ações na área de segurança pública ou justiça. “O enfrentamento à violência contra as mulheres é um tema complexo e precisa, como a próprio Lei Maria da Penha prevê, de um conjunto de ações articuladas para que funcione, inclusive garantindo que a mulher rompa com o cliclo de violência através de políticas de trabalho e acolhimento, apoio psicológico e toda uma rede de serviços que precisa existir”.

Segundo Brito, análises do Cfemea mostram que o foco no enfrentamento à violência contra a mulher não só está presente no Ministério, mas no próprio parlamento. De acordo com o relatório “Mulheres e Resistência no Congresso Nacional”, a violência contra a mulher foi o tema com maior número de projetos de lei apresentados no 1º semestre de 2021. Foram 45 novos (30 na Câmara e 15 no Senado), sendo que a maioria trata da violência doméstica e familiar, objeto da Lei Maria da Penha, que completou 15 anos em agosto deste ano. 

“Deputadas e senadoras apresentam a maior parte dos projetos de lei com esse foco, tentando garantir recursos na segurança pública, alterações nos mecanismos de punição e  apoio ao judiciário, esquecendo que existe toda uma rede de assistência que precisa ser acionada e que também precisa estar fortalecida para garantir que as mulheres tenham condições melhores”, diz a assessora técnica do Cfemea.

Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos prioriza recursos para o Ligue 180/100 em 2022

Em 2021, o governo pagou 56,6% dos recursos disponíveis de janeiro até 15 de novembro

2021

2022

dotação atual

projeto de lei

pago

projeto de lei

valor inicial acrescido

ou reduzido

estimativa do valor da receita

e despesa

pagamento

das despesas

Ligue 180/100

12.75m

24.73m

17.45m

29.5m

Apoio à implementação

da Casa da Mulher

Brasileira e de Centros

de Atendimento

às Mulheres

nenhum valor foi

destinado ou pago em 2021

6m

6m

Atendimento às mulheres

em situação de violência

2.56m

5.12m

200mil

1.5m

Promoção de políticas

de igualdade e de direitos

das mulheres

484mil

977mil

140mil

1.5m

Incentivo a políticas

de autonomia das mulheres

nenhum valor

foi pago em 2021

1.1m

314mil

587mil

fonte SIOP (Extração dos dados em 15 de novembro de 2021)

Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos prioriza recursos para o Ligue 180/100 em 2022

Em 2021, o governo pagou 56,6% dos recursos disponíveis de janeiro até 15 de novembro

2022

2021

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valor inicial acrescido ou reduzido

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Ligue 180/100

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24.73m

17.45m

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Apoio à implementação da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres

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nenhum valor

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ou pago em 2021

Atendimento às mulheres em situação de violência

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Promoção de políticas de igualdade e de direitos

das mulheres

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484mil

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Incentivo a políticas de autonomia das mulheres

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em 2021

314mil

587mil

1.1m

fonte SIOP (Extração dos dados em 15 de novembro de 2021)

LEIA TAMBÉM: Mais de 250 mulheres foram vítimas de violência por dia durante a pandemia no Rio de Janeiro em 2020

 

Carmela Zigoni lembra ainda que o Ligue 180 é feito por meio de uma empresa de call center privada, que presta serviços ao governo. “Não saberia dizer se é um montante suficiente ou insuficiente. O problema é que este é um serviço ‘porta de entrada’ da política pública, ou seja, as mulheres recorrem ao disque e precisam ser encaminhadas para outros serviços da rede de enfrentamento à violência, como assistência social, jurídica, saúde, proteção, empregabilidade, que estão cada vez mais sem recursos”, afirma a assessora política do Inesc.

Exemplos desses outros serviços a que Zigoni se refere são a Casa da Mulher Brasileira e os  Centros de Atendimento às Mulheres. Apesar de o MDMFDH ter alocado R$ 6,04 milhões para apoio a sua implantação, não foi empenhado e nem gasto nenhum real nestes espaços até 15 de novembro, segundo levantamento da Gênero e Número a partir de dados extraídos do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP). Em 2020, o ministério gastou somente R$ 66 mil, sendo que foram empenhados cerca de R$ 61 milhões.

O texto da PEC 23/2021, também conhecida como PEC dos Precatórios, que ainda vai ser votado no Senado, abre espaço de R$ 91,6 bilhões no Orçamento de 2022, mas ainda não se sabe para onde vão os recursos liberados caso a proposta seja aprovada. “É um cheque em branco para o governo Bolsonaro. Até agora, a expectativa é que seja utilizado para o Auxílio Brasil e emendas de relator e para ajudar no reajuste do salário mínimo, mas ainda não sabemos de fato o que será feito. Pode haver espaço de manobra para brigarmos por estes recursos”, pontua Zigoni.

A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher  (CMulher) aprovou, na última semana, 15 sugestões de emendas à Lei Orçamentária Anual – LOA 2022, sendo que 8 são relacionadas à violência contra a mulher. Recursos de R$ 700 milhões de reais seriam destinados para “Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres” (SOR 1/2021, SOR 6/2021 e SOR 7/2021); já R$ 673 milhões iriam para “Apoio à implementação da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres” (SOR 2/2021, SOR 5/2021, SOR 10/2021, SOR 16/2021 e SOR 14/2021), de acordo com mapeamento do Cfemea.

Pandemia e baixa execução do orçamento

Apesar de as mulheres estarem mais vulneráveis, sofrendo com altos índices de violência, o MMFDH executou em 2021 apenas 56,6% dos recursos disponíveis de janeiro até 15 de novembro, faltando pouco mais de um mês para o fim do ano. Dos R$ 31,4 milhões disponíveis, foram empenhados R$ 21,4 milhões e efetivamente pagos R$ 17,7 milhões, segundo levantamento da Gênero e Número.

Os registros de violência contra mulheres e os casos de violência de gênero aumentaram no último ano. Com a pandemia, esse tipo de violência, que já é subnotificado em situações de normalidade, tornou-se ainda mais presente e invisível, como já mostramos em reportagem.  Em 2020, 1 em cada 4 mulheres brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirmaram ter sofrido algum tipo de violência ou agressão durante a pandemia de covid-19, segundo a  terceira edição da pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil” do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Além disso, a cada minuto, 8 mulheres foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes no Brasil. Ainda de acordo com a pesquisa, as mulheres negras são as mais vulneráveis, principalmente ao assédio sexual e à violência sexual; a incidência desses casos foi maior entre as mulheres pretas (52,2%), seguidas pelas pardas (40,6%) e brancas (30%). 

 

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A baixa execução de políticas voltadas para as mulheres do Ministério não é de agora. Em 2020, o MMFDH deixou de executar 70% do recurso autorizado para a realização de políticas para as mulheres no ano. Dos R$ 120,4 milhões disponíveis, foram efetivamente pagos R$ 35,4 milhões, embora tenham sido empenhados R$ 117,4 milhões, recursos que seriam de fato pagos somente durante 2021, de acordo com o relatório do Inesc. 

Houve também uma queda brusca da execução financeira nos últimos cinco anos do Programa 2016 – Políticas para as Mulheres: Promoção da Autonomia e Enfrentamento à Violência. Em 2014, a execução financeira foi da ordem de R$ 185 milhões, e em 2019, esse valor caiu para apenas R$ 46 milhões, uma redução de 75% em termos reais, segundo o documento “Os efeitos da EC 95 nos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais e a pandemia de covid-19”, da Coalizão Direitos Valem Mais.

Para Priscilla Brito, essa redução reflete a forma com que o Ministério da Mulher, da  Família e dos Direitos Humanos lida com os recursos de políticas voltadas para mulheres, sem muita transparência e com uma redução significativa no número de ações orçamentárias, principalmente na área de enfrentamento à violência contra as mulheres, e com um esforço bem menor do que em outros anos (e em outros governos) para firmar parcerias com estados e municípios e garantir a execução da política na ponta: 

“Há alguns anos políticas para as mulheres se tornaram importantes na gestão do governo federal, mas o fato de não serem ainda bem desenvolvidas faz com que haja um desafio grande de estruturá-las pensando em mais equidade entre os estados, para garantir uma uniformidade na prestação de serviços. E essa não parece ter sido a prioridade do governo este ano, então temos uma execução ruim no geral, mesmo com o aumento dos recursos”, destaca Brito, lembrando que parte desse aumento é justificado pelo trabalho de deputadas e senadoras para garantir emendas orçamentárias nessa área.

Outras prioridades

Enquanto o enfrentamento à violência contra a mulher é carro-chefe das políticas voltadas à mulher do ministério, outras demandas ficam escanteadas. Em 2021, dos R$ 587 mil disponíveis para incentivo a Políticas de Autonomia das Mulheres, nada foi empenhado ou gasto até 15 de novembro. 

“É uma redução da política nacional para as mulheres considerar como única prioridade a violência. Essa é uma crítica que as organizações de mulheres fazem há muitos anos ao governo federal, porque apesar do tema da violência contra a mulher ser um tema fundamental e importante, outros temas também exigem prioridade, investimento e pacto nacional”, pontua Brito. 

O Ministério, lembra Carmela Zigoni, trabalha com muitos públicos, todos igualmente importantes: idosos, pessoas com deficiência, quilombolas, indígenas, crianças e adolescentes. Falta, ela diz, também um olhar que conecte todos estes grupos: “Em todos eles há mulheres. Então, o fundamental é olhar com interseccionalidade para dar conta das vulnerabilidades. O recurso para mulheres não é o maior do ministério, e sim o para idosos”, finaliza. 

Em 2020, a proteção a idosos foi a área que mais recebeu dinheiro do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: R$ 160 milhões. De acordo com o site da pasta, o investimento em políticas para mulheres foi de R$ 106 milhões. No entanto, o dinheiro efetivamente gasto foi muito menor: R$ 2 milhões, como mostram os dados do  Portal da Transparência do Governo Federal revelados na reportagem

Acesse a base de dados da reportagem aqui

*Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

**Este conteúdo foi produzido com o apoio da ActionAid

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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