Mestre de bateria Thaís Bezerra. Foto: Elisa Mendes/Gênero e Número

O Carnaval, brasileiro até na desigualdade de gênero

Presentes na nossa maior manifestação cultural desde sua gênese, as mulheres muito raramente ocupam os cargos de mando, mantendo-se em funções decorativas ou periféricas.

Por Aydano André Motta*

Natalia Mazotte

  • A Beija-flor de Dona Eulália

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Durante a apresentação do samba-enredo, os intérpretes saúdam figuras e segmentos importantes das escolas – o patrono, a bateria e o presidente são os mais frequentes. Muitas vezes aparece, entre os versos, outra evocação: “Alô, meu departamento feminino!” Os cantores referem-se ao setor específico das agremiações, responsável por cuidar da recepção aos convidados, da comida nos eventos, das crianças e da Velha Guarda. Todas as escolas têm – assim como nenhuma delas possui um “departamento masculino”.

Para ratificar que o Carnaval é tipicamente brasileiro também no machismo.

Presentes na nossa maior manifestação cultural desde sua gênese, as mulheres muito raramente ocupam os cargos de mando, mantendo-se em funções decorativas ou periféricas. A existência de um “departamento” atesta a desigualdade de gênero. Igualmente desde sempre, coube a elas o papel de anfitriãs e acolhedoras, “mães do samba”. Começou com Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida, 1854-1924), a mãe de santo baiana que recebia em sua casa, na Praça Onze, no Rio, os precursores do então proscrito samba. De lá e para sempre, as decisões ficaram com os homens, como se detentores de um direito divino.

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Em praticamente um século de escolas de samba, o panorama pouco se alterou. Hoje, nas duas divisões principais da folia, do Rio e de São Paulo, apenas 10% dos presidentes são mulheres. No Carnaval paulista, o pelotão de elite desfila com três, entre os 14 manda-chuvas; na terra carioca, apenas uma das 12 escolas do Grupo Especial está sob comando feminino.

O número de mulheres à frente da produção dos desfiles mantém o mesmo padrão. Nove entre 10 carnavalescos do Grupo Especial e do Grupo de Acesso no Rio e em São Paulo são homens. Em 48 escolas de samba, Rosa Magalhães, da São Clemente, é a única a ocupar sozinha a função. E justamente ela ostenta o maior número de títulos na história do Sambódromo carioca – oito conquistas.

Regina Celi Fernandes preside o Salgueiro, uma das mais tradicionais grifes do samba, desde 2009. Ex-primeira-dama, decidiu se candidatar após se separar do marido, e conquistou a comunidade com o estilo “mãe generosa” – tanto que costuma chamar a todos de “meu filho”, “minha filha”. Mais próspera escola entre as grandes do paticumbum, a vermelho e branco da Tijuca vive com a quadra lotada – além de alugá-la para eventos empresariais o ano inteiro – e se consolidou como a preferida dos turistas. Na Sapucaí, Regina conquistou apenas um título, logo no ano de estreia. Mas o Salgueiro está sempre entre as favoritas, e sua presidenta conta com o apoio entusiasmado dos poderosos chefões da festa para permanecer no cargo.

Do outro lado da Ponte Aérea, não muda muito. Das 14 escolas, três são comandadas por mulheres, entre elas Solange Cruz Bichara, da Mocidade Alegre, um raro de hegemonia feminina no samba. Filha do fundador, ex-passista, destaque e locutora oficial, a atual presidenta sucedeu a irmã, Elaine Cristina. No primeiro desfile, em 2004, sagrou-se campeã, encerrando jejum de 23 anos e iniciando odisseia de seis títulos em uma década.

O sucesso fez de Solange uma referência na folia paulistana, além de palestrante badalada. Costuma fazer duas apresentações por mês em empresas pelo Brasil, no estilo motivacional. “Com base na minha experiência, tento mostrar que é muito mais fácil fazer as coisas com amor”, recita.

Veja também: Base de dados – Cargos de destaque nas Escolas de Samba (Rio e São Paulo)

A Beija-flor de Dona Eulália

Escritora, jornalista e pesquisadora do mundo carnavalesco, Rachel Valença atesta a abissal desigualdade de gênero na folia. “As mulheres têm papeis predeterminados dos quais raramente conseguem escapar. O mundo do Carnaval acha que elas não vão dar conta das missões de um dirigente”, constata. “Isso leva a uma reserva de mercado para os homens. Eles sabem que abrir a guarda e permitir a chegada das mulheres ao poder será problemático”.

Ainda que, em momentos decisivos, elas tenham sido corajosas e determinantes. Como na tarde do dia 25 de dezembro de 1948, quando um grupo de bambas, diretores do extinto bloco Irineu Perna de Pau, reuniu-se num quintal no Centro da recém-emancipada Nilópolis, determinados a dar uma cara nova para o Carnaval na noviça cidade da Baixada Fluminense.

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As mulheres têm papeis predeterminados dos quais raramente conseguem escapar. O mundo do Carnaval acha que elas não vão dar conta das missões de um dirigente.

— Rachel Valença, pesquisadora de Carnaval

Exatas 26 pessoas participaram do convescote. Decidiram que a agremiação seria azul e branco, sairia pela Avenida Mirandela (a principal do lugar) no Sábado de Carnaval e a bateria ficaria sob comando de Milton Negão, que o talento reapelidou de Milton da Cuíca, filho de Dona Eulália, a anfitriã (o papel de sempre).

A conversa travou no nome. Dezenas de sugestões surgiram, sem sinal de consenso. Até que a proprietária da casa, percebendo o impasse, emergiu da cozinha, lembrando seus tempos de moça, quando desfilava num rancho em Marquês de Valença, a cidade do Sul Fluminense, chamado… Beija-Flor.

Conta a lenda que, ao terminar a narrativa, um beija-flor cruzou o quintal, parou no ar, numa árvore do quintal e, no seu voo característico, seguiu viagem. Não havia mais o que discutir. Nascia a Beija-Flor de Nilópolis, presidida por Milton Negão – e com Dona Eulália incluída entre os fundadores. Quase 80 anos depois, a escola multicampeã jamais teve uma presidenta.

Apaixonada pelo Império Serrano (tradicional ninho de bambas, hoje na Série A, a segunda divisão da festa carioca), Rachel Valença participou de várias diretorias da verde e branco de Madureira e chegou a ser vice-presidenta de Humberto Soares Carneiro (2006-2010). Hoje, integra a Velha Guarda e está lançando uma edição atualizada do seu livro “Serra, Serrinha, Serrano”, obra magistral escrita originalmente em parceria com Suetônio Valença, seu marido, morto em 2012.

O Império guarda um paradoxo. Nasceu como um matriarcado, sob a decisiva influência de dona Eulália de Oliveira, irmã de Sebastião Molequinho, um dos fundadores oficiais. Ele assina a ata inaugural com outros 28 homens, entre eles o cunhado, José Nascimento, que não tinha qualquer envolvimento com samba.

Mas a escola de Madureira teve duas presidentas, incluída a atual, Vera Lúcia Corrêa de Souza. Dos 17 mandatários da história do Salgueiro, além de Regina, consta Elizabeth Nunes, comandante de 1986 a 1988. Na Mangueira, Dona Zica e Dona Neuma, grandes damas do samba, jamais foram cogitadas para o cargo máximo. A única mulher a chegar lá foi Eli Gonçalves, a Chininha, filha de Neuma, no biênio 2008-9. Nas grandes escolas do Rio, a recordista é a Vila Isabel, com três presidentaes em 46 anos de história – Esclepíldes Maria Cordeiro (1972-4), Lícia Maria Caniné, a Ruça (1987-90), e Elizabeth Aquino, a Beta (2014-15).

Pouco para alterar uma lógica ancestral. “Nenhuma das que chegou ao poder serviu para mudar o padrão de gênero do setor”, pontua Rachel. “O mundo do Carnaval não gosta de mulheres com opinião”, encerra.

Mais Brasil, impossível.

Em qualquer antologia de sambas-enredo, a presença de “Cinco bailes da história do Rio”, do Império Serrano vice-campeão em 1965, é obrigatória. Naquele, o do quarto centenário da cidade, a escola uniu em poesia cinco eventos do passado carioca, como num grande baile. Um trecho:

No esplendor da alegria
A burguesia
Fez sua aclamação
Vibrando de emoção
Que luxo, a riqueza
Imperou com imponência
A beleza fez presença
Condecorando a independência
Ao erguer a minha taça
Com euforia
Brindei aquela linda valsa
Já no amanhecer do dia
A suntuosidade me acenava
E alegremente sorria
Algo acontecia
Era o fim da monarquia

Como pendor extra, a composição é um raro caso de invasão feminina num feudo masculino. Tem, como autora (ao lado de Silas de Oliveira e Bacalhau), Dona Ivone Lara, dama lendária da cultura popular e uma das raras mulheres a assinar sambas-enredo no Carnaval carioca. Filha de um violonista e de uma cantora de rancho, ela teve aulas de canto com Lucília Villa-Lobos, chamando a atenção, pelo talento, do marido da professora, o maestro Heitor Villa-Lobos.

Mas seu destino era o samba. Aos 25 anos, casou-se com Oscar Costa, filho do presidente da escola Prazer da Serrinha, embrião do Império. Lá, virou parceira de compositores como Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira – este o maior autor de sambas-enredo de todos os tempos.

Ao participar da criação de “Cinco bailes”, tornou-se a primeira mulher a desfilar na ala de compositores de uma escola de samba. Ela venceu ainda a oposição do marido, que não gostava de vê-la nas rodas no morro. O talento levou Dona Ivone a ser um dos grandes nomes da música popular – e até hoje, aos 95 anos, enfeitiçar multidões com seus sucessos, gravados também por gravados por estrelas como Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Mariene de Castro e Marisa Monte.

Aydano André Motta é jornalista e colaborador da Gênero e Número.

Colaborou Natália Mazotte, jornalista e codiretora da Gênero e Número

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