Número de casos cai, mas efeitos da Zika permanecem no Brasil

Pesquisadora da Fiocruz diz que epidemia foi vencida, mas alerta sobre consequências sociais e econômicas para as mulheres que precisam se dedicar exclusivamente aos filhos

Vitória Régia da Silva*

Vitória Régia da Silva

  • Vulnerabilidade familar

    ver mais
  • As mães no front

    ver mais

Em meio aos esforços para conter a pandemia de coronavírus, muitos brasileiros ainda sofrem com as sequelas da epidemia causada pelo vírus da Zika, que afeta principalmente mulheres e crianças desde 2015.  Embora em 2017 o Ministério da Saúde tenha declarado o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência do vírus e sua associação com a microcefalia e outras alterações neurológicas, foram registrados no país 1.770 casos confirmados de Síndrome Congênita associada à infecção por Zika e outras etiologias infecciosas de 2015 a fevereiro de 2020, segundo o órgão federal.

Os dados acessados pela Gênero e Número foram obtidos pela agência de dados independente Fiquem Sabendo, via Lei de Acesso à Informação. Em 2015, primeiro ano da epidemia, foram 1.366 casos confirmados no país; em 2019, o número caiu para 50. Nos dois primeiros meses de 2020, só um caso foi confirmado. 

Segundo Camila Pimentel, socióloga e pesquisadora da Fiocruz Pernambuco, a epidemia foi vencida, já que não há mais uma curva epidêmica, mas as consequências são sentidas até hoje. As crianças portadoras da Síndrome Congênita relacionada a Zika continuam demandando atendimento de forma integral, por exemplo. 

“A Zika tem um impacto na memória e no aprendizado na saúde pública, porque foi algo novo, tal qual estamos vivendo agora. Ela já era uma doença conhecida, como o coronavírus, mas, devido a mutações, teve um impacto diferente na epidemia que atingiu o Brasil. Os impactos sociais e na saúde são muito grandes”, destaca a pesquisadora em entrevista à Gênero e Número.

 

200319 newsletter 30 _nota

 

Os dados também revelam uma concentração geográfica da doença. Os estados mais afetados pelo vírus estão na região Nordeste, com exceção do Rio de Janeiro. A Bahia foi o que registrou mais casos, 538 no período, seguido de Pernambuco, o epicentro da epidemia, com 461. De acordo com a pesquisadora, o perfil regional da doença aponta para um impacto maior em mulheres negras e pobres. “No Brasil, a questão racial se mistura de uma forma muito imbricada à situação socioeconômica. Segundo as pesquisas, a maioria das mulheres que tiveram filhos com a Síndrome se declarava  parda ou preta, ou seja, negra. No Nordeste, em que a maioria da população se autodeclara negra, não é uma surpresa serem essas as mulheres mais afetadas”, explica.

A Síndrome Congênita da Zika é um padrão único de defeitos congênitos e deficiências encontrado em fetos infectados pelo vírus Zika durante a gravidez. A microcefalia, um problema congênito no qual a cabeça do bebê é menor do que o esperado quando comparado com bebês de mesmo gênero e idade, é uma de suas faces. Os bebês com microcefalia geralmente têm cérebros menores, que podem não ter se desenvolvido adequadamente.

Segundo o Boletim Epidemiológico da Síndrome congênita associada à infecção pelo vírus Zika de 2019, 2.659 (14,5%) casos suspeitos de alterações no crescimento e desenvolvimento possivelmente relacionadas à infecção pelo vírus Zika e outras etiologias infecciosas permaneciam em investigação até outubro de 2019. Entre os casos confirmados, 85,5% eram recém-nascidos ou crianças vivas e 14,5% eram fetos ou óbitos fetais, neonatais e infantis.

Vulnerabilidade familar

A baiana Joana Passos engravidou em 2016 e, quando completou seis meses, contraiu Zika. Depois de alguns meses, seu médico, que estava acompanhando o surgimento de casos de Síndrome Congênita da Zika, fez alguns exames e descobriu que sua filha estava com microcefalia.

“Eu comecei a investigar, mas não tínhamos muitos dados sobre isso ainda, então, não sabia como seria desenvolvido. Com o tempo, começaram a surgir mais casos e tudo ficou mais difícil. Gabriela, minha segunda filha, nasceu em dezembro de 2016 e começamos a nos deparar com uma nova rotina. Vivíamos na rua fazendo exames e indo ao médico”, conta Passos, que acabou tendo que abandonar o emprego para se dedicar à filha.

A mudança radical na vida de Joana não é exceção. A pesquisa “Impactos Sociais e Econômicos da Infecção pelo Vírus Zika”, da qual a pesquisadora Camila Pimentel fez parte, mostra que as mães e outras mulheres envolvidas nos cuidados diários das crianças nascidas com microcefalia em decorrência da Zika são tão vulneráveis quanto elas. O estudo foi desenvolvido em conjunto pela Fiocruz Pernambuco, Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e London School of Hygiene and Tropical Medicine.

Com dados coletados de maio de 2017 a janeiro de 2018 em Recife, Jaboatão dos Guararapes (PE) e Rio de Janeiro ( RJ), a pesquisa descreve o impacto da Síndrome Congênita da Zika nas famílias e estima o custo da assistência à saúde dessas crianças para suas famílias e para o Sistema Único de Saúde (SUS), além de identificar os impactos nas ações e serviços de saúde e na saúde reprodutiva.

A baiana Joana Passos, mãe de Gabriela, que tem Síndrome Congênita da Zika, reúne mulheres em ONG sobre microcefalia| Foto: Arquivo Pessoal

“No Brasil existe uma feminização do cuidado, por isso, o impacto na vida laboral é muito maior para a mulher, seja ela mãe, avó ou tia. Existe um impacto diferenciado na vida das mulheres, que mudaram o curso da vida com a chegada da criança, também no âmbito profissional e econômico. Os planos de trabalho e estudos dessas mulheres sofrem uma mudança brusca, porque muitas delas deixaram de trabalhar para cuidar dos seus filhos, o que significa uma renda a menos”, pontua Pimentel.

De acordo com o artigo “A vida das mulheres na era do Zika: vidas controladas por mosquitos?”, publicado em 2018 pelo Cadernos de Saúde Pública, da Fiocruz, a infecção pelo vírus da Zika é um fardo silencioso e pesado nos ombros das mulheres. O estudo, realizado pelos pesquisadores Ana Rosa Linde e Carlos Eduardo Siqueira, da Universidade de Massachusetts (EUA), entrevistou mulheres no Brasil, Porto Rico e Estados Unidos para avaliar o impacto social da epidemia de Zika na sua vida familiar.

O artigo revela que a epidemia impactou nas decisões sobre comportamentos sexuais e reprodução, além da vida pessoal e familiar. As entrevistadas relataram perturbações na vida social e nas rotinas diárias, e disseram que se sentiam isoladas de seus parceiros, filhos, pais, parentes e amigos.

As mães no front

Durante sua gestação, Passos conheceu um médico que a convidou para um grupo no Whatsapp que reunia vários pais de crianças com Síndrome Congênita da Zika. Nesse grupo, era possível ver o desespero, a felicidade e o turbilhão de emoções e impactos a que os pais eram submetidos. Com o tempo, surgiu a necessidade de se encontrarem pessoalmente e, dessa necessidade, nasceu a ONG Abraço a Microcefalia. Joana Passos é a atual presidente da organização.

Hoje, a ONG atende a 245 famílias em Salvador e cidades próximas, e oferece atendimento multidisciplinar, atuando na área de reabilitação para as crianças e de acolhimento para os pais. Além disso, participam de movimentos para lutar por políticas públicas. “Vimos a necessidade de fortalecer a rede de apoio, que é algo que precisamos muito. Por isso, em 2016 fundamos a ONG oficialmente. O nome Abraço é porque no meu momento de maior vulnerabilidade, esse simples gesto era o que eu precisava, e é o que queremos oferecer às pessoas que estão passando pelo mesmo”, pontua. 

Para a pesquisadora Camila Pimentel, o trabalho dessas organizações é essencial para que a Zika não caia no esquecimento: “A maioria dessas instituições não só funciona como uma rede de apoio — inclusive para saúde mental das mulheres que sofrem com isolamento social — mas também como sujeito político na luta pelos direitos dessas crianças”.  Ela também destaca como o trabalho dessas organizações para fortalecer o debate sobre deficiência.

*Vitória Régia é repórter da Gênero e Numero

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.

Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.

Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.

A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.

Quero apoiar ver mais