“Ele chega representando um projeto de destruição”

Apresentada como “anticandidata” à vaga no STF ocupada pelo ministro terrivelmente evangélico indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, Soraia Mendes destaca também que não podemos interpretar a Constituição a partir de lentes lgbtfóbicas, sexistas ou patriarcais

No mês de dezembro, a nomeação do novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), André Mendonça, foi oficializada após semanas marcadas por tensionamentos entre a candidatura do presidente e organizações jurídicas, movimentos sociais e outras entidades, preocupadas com o ultraconservadorismo por trás de sua indicação – o presidente Jair Bolsonaro se refere ao novo ministro como “terrivelmente evangélico”.

Em 2022, a atuação de Mendonça será crucial em temas emblemáticos, considerados como um termômetro sobre a possível influência do seu discurso religioso na prática. Entre as discussões que devem ser retomadas nos próximos meses no STF, está o julgamento que analisa se pessoas trans em situação de cárcere poderão optar para serem detentas em presídios masculinos ou femininos – o voto de desempate está com o novo ministro.

“O fato é que ele vem representando um projeto de destruição. Não só das pautas de grupos específicos, e sem dúvida o grupo LGBT+ tem tudo para temer”, alerta Soraia Mendes, advogada entrevistada pela Gênero e Número e que, durante a indicação de Mendonça, representou uma “anticandidatura” ao novo ministro, fruto da articulação entre a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), a Associação de Juízes para a Democracia (AJD), a Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC), o Coletivo por um Ministério Público Transformador (Coletivo Transforma MP), o Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia, o Instituto de Pesquisa e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA) e o Movimento Policiais Antifascismo. Além dessas organizações, 130 entidades da sociedade civil, formada por organizações não-governamentais, institutos de pesquisa e movimentos sociais, assinaram uma carta de apoio à Soraia, que foi entregue ao Senado Federal antes da aprovação de Mendonça.

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Mendes é pós-doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora pela Universidade de Brasília e atualmente é professora associada do Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Unificado de Brasília (UniCeub) e da Faculdade de Direito Presbiteriana Mackenzie. É autora de obras de referência na área, como “Criminologia Feminista: novos paradigmas”, “Processo Penal Feminista”, “Pacote Anticrime: comentários críticos à Lei 13.964/2019” e “Feminicídio de Estado: a misoginia bolsonarista e as mortes de mulheres por Covid-19”. Com uma ampla atuação junto a movimentos de direitos humanos, é também consultora da Comissão Nacional de Direitos Humanos e da Comissão Especial de Proteção dos Povos Indígenas, ambas do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Confira a entrevista completa:

Houve muitos comentários a respeito do conservadorismo de André Mendonça e a possível ameaça a algumas pautas, como a descriminalização do aborto. O que de fato está em jogo?

Em primeiro lugar, precisamos destacar duas premissas: ninguém manifestou-se de forma ofensiva ou direta ao André Mendonça enquanto pessoa. É um ponto importante que temos que destacar. A segunda é que não há um ataque à fé de Mendonça. Ser evangélico, católico ou candomblecista não estava em jogo. O fato é que foi uma indicação que o presidente da República sinalizou como sendo terrivelmente evangélica. Quando alguém diz que é terrivelmente evangélico, utilizando a Bíblia, ou outros mecanismos dados por uma estrutura antidemocrática, não vislumbramos só uma candidatura conservadora, porque já tivemos, temos ministros conservadores na Corte. Mas ele chega representando um projeto de destruição. Não só das pautas de grupos específicos – e sem dúvida o grupo LGBT+ tem tudo para temer, porque tem muitas questões que estarão em jogo nos próximos meses, em especial em relação a pessoas trans.

A pauta LGBT+ conquistou muita coisa nos últimos anos, mas agora enfrenta ameaças. A feminista teve pouco avanço nos últimos anos, embora tenha havido no âmbito legislativo, e não podemos fechar os olhos para isso. Ainda que com muita dificuldade, a pauta do movimento negro andou, a indigena também andou. Agora, a pauta LGBT+ é renegada pelo Congresso Nacional neste governo. E nesse contexto, toda a aversão à forma como são compreendidas as pessoas LGBT+ por setores neoconservadores, ultrarreacionarios, que se vestem de uma suposta religiosidade, é preocupante. Não acredito que vamos ter um retrocesso, porque temos magistrados que conseguem dialogar, mas temos essa ala de ultraconservadores que quer frear as ações. Não estamos falando de André Mendonça ou de evangélicos, mas sim de ultraconservadores que chegaram com esse projeto à Corte.

Esse foi um dos processos em que esteve mais evidente a relação do STF com a conjuntura política do país. Sua própria anticandidatura foi o resultado de um movimento que envolveu entidades inclusive da sociedade civil. Apesar da vitória de Mendonça, podemos olhar para esse movimento com algum otimismo?

A campanha foi impulsionada por um grande coletivo de organizações jurídicas democráticas. Depois foi ampliada para a sociedade como um todo, para mais de 130 entidades representativas da luta democrática de ontem e de hoje, como a Associação Brasileira de Imprensa que, durante o período mais violento da ditadura militar, fez a defesa democrática. Nós também tivemos aquelas que estão levando adiante as ditas (mas que não são só isso) pautas identitárias, como entidades LGBTs, a Coalizão Negra por Direitos. Então, quando acontece a ampliação para a sociedade como um todo, isso ocorre de forma proposital, para dizer que a escolha do ministro ou ministra do STF precisa ser um debate da sociedade. Ele não vai ser uma coisa distante, de abrir o jornal e ler que “ah, agora foi escolhido fulano ou beltrano, de tal notoriedade jurídica”. Isso não diz muita coisa.

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Nós temos um Supremo Tribunal Federal conservador e liberal em certos aspectos. Para algumas pautas de gênero e LGBT+ , ele se inclina para uma parte liberal. Só que, agora, há uma parte dele, que não é pequena, que é ultrarreacionária, e como essa ala vai agir para que suas perspectivas tenham alguma ressonância, ainda não sabemos

O que importa é o compromisso que se tem com a Carta Constitucional, que não pode ser interpretada de forma inconstitucional, ou seja: não podemos interpretar a Constituição federal a partir de lentes lgbtfóbicas, sexistas, do patriarcado. Isso não é constitucional. O que a campanha veio mostrar é que precisamos impulsionar momentos de participação e de transparência nesses momentos de efeméride de nomeação de ministros e ministras. Ou seja, quando esses grandes momentos chegarem, a sociedade precisa tomar parte. E isso não quer dizer que temos que deixar para a sociedade eleger; há caminhos, e a democracia é muito representativa e tem caminhos por si só. Mas a gente precisa de um debate na sociedade, para que ela possa conhecer quem está sendo eleito. Eu tenho muita esperança que em 2022 vamos ter outro mundo, que outro Brasil é possível, então, acho que a partir de 2023 a gente tem uma possibilidade de ter um outro parâmetro, construções nesse sentido.

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E como foi a articulação política com essas entidades de frentes tão diversas para sua anticandidatura? Quais aprendizados podemos tirar dela para um próximo momento de escolha no STF e até pensando para as construções políticas que deverão ser necessárias para o ano eleitoral de 2022?

Acredito que o principal aprendizado é que precisamos de participação e transparência, que não se resume a entidades jurídicas. É algo que se amplia para a sociedade como um todo, a ideia de dar voz a quem nunca teve voz nesses espaços. A primeira reunião direta que eu tive quando saiu a carta da defesa da minha anticandidatura pelas entidades civis foi com as organizações quilombolas, articulada pela Conaq ( Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas). Aquilo foi tão significativo… O que as mulheres, principalmente, me disseram foi: “a gente não tinha parado para pensar que isso é importante para nós. E isso é”.

Então, a gente tem que discutir na esfera jurídica para além de corporativos que possam vir da OAB, do Ministério Público e da magistratura. Temos uma esfera jurídica que é muito maior do que isso, que inclui a ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia), a AJD (Associação de Juízes para a Democracia), a ADJC (Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania), ou seja, as organizações jurídicas democráticas. Temos que discutir na sociedade como um todo e ter, sim, a preocupação de debater com quem antes não teve voz aqui. Eu quero discutir com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), com a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros), com a Conaq, com a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), eu quero conversar com as organizações feministas de modo geral. Porque essas são as demandas que estão chegando ao Supremo Tribunal Federal.

Há uma relação muito conflituosa hoje do Judiciário com os demais poderes, o Executivo e o Legislativo. Como a eleição do Mendonça pode afetar esse relacionamento?

Estamos vivendo um momento de grande tensionamento, e não vislumbro que isso deixe de existir ou que não seja intensificado, principalmente ano que vem, que é ano eleitoral. Muitas demandas vão chegar, e algumas delas vão desaguar no STF, afetando sua relação com os outros poderes e até mesmo com o Ministério Público. Estamos vendo nos últimos anos que as nossas instituições estão sendo testadas, e eu não diria que elas sobreviveram e provaram sua força. Mas eu acho que a prova de fogo é ano que vem. Principalmente agora com essa configuração [do STF], que tem ali um setor ultrarreacionário.

Nós temos um Supremo Tribunal Federal conservador e liberal em certos aspectos. No campo do trabalho, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal tem posições ultraneoliberais, já para decisões da esfera criminal, temos um posicionamento conservador e punitivista. Mas para algumas pautas de gênero e LGBT+ , temos um Supremo Tribunal Federal que se inclina para uma parte liberal. Só que, agora, há uma parte dele, que não é pequena, que é ultrarreacionária, e como essa ala vai agir para que suas perspectivas tenham alguma ressonância, ainda não sabemos.

*Agnes Sofia Guimarães e Vitória Régia da Silva são repórteres da Gênero e Número

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

Agnes Sofia Guimarães Cruz

Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Segurança Pública. Já publicou em sites como Agência Pública, Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e também atua como consultora de projetos de pesquisa e orientados por dados. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.

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