Foto: Pillar Pedreira/Agência Senado

Nome social é ‘ponta do iceberg’ na vivência escolar de pessoas trans

Regulamentado pelo MEC em janeiro, uso do nome social no registro escolar é uma entre várias reivindicações da comunidade trans nas escolas, como garantia do uso de banheiro e formação de professores; São Paulo se destaca com salto de 235% em matrículas com nome social nos últimos dois anos

Por Lola Ferreira*

  • Um direito básico

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  • Banheiros, a próxima fronteira

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  • Formar docentes para a questão

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  • Escola laica

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Em janeiro, o Ministério da Educação (MEC) autorizou que alunos transgênero usem o nome social nos registros escolares em todas as unidades de ensino básico do país. Antes mesmo dessa conquista, São Paulo viu triplicar o número de matrículas de estudantes com nome social na rede estadual nos últimos dois anos, segundo dados obtidos pela Gênero e Número junto à Secretaria de Educação do Estado. Concentrando 20% dos alunos do ensino básico em todo o Brasil, segundo o Censo Escolar de 2017, São Paulo tinha 609 estudantes registrados com nome social em março de 2018 – um salto diante dos 182 que se registraram em 2015.

O Estado é um dos 23 – mais o Distrito Federal – que nos últimos 11 anos passaram resoluções locais para permitir o uso do nome social no registro escolar. Em cinco desses Estados mais o DF e o Rio de Janeiro (que não tinha resolução própria), quase 1.000 estudantes trans da rede estadual solicitaram em 2017 o uso do nome social nas escolas, de acordo com levantamento da Gênero e Número junto às Secretarias estaduais de Educação.

O nome social é aquele escolhido por pessoas trans – travestis e homens e mulheres transgênero – de acordo com sua identidade de gênero. Elas passam a usá-lo no lugar do nome civil, aquele registrado em seus documentos. Yuri Cantizano, de 25 anos, é homem transgênero e em sua vida escolar usava seu nome de batismo, feminino. Hoje na universidade, ele lembra que o respeito ao nome social é apenas “a ponta do iceberg” da vivência de pessoas trans na escola.

“Papel assinado a gente tem um monte, na prática o buraco é bem mais embaixo”, disse Cantizano a Gênero e Número.

 

Um direito básico

A portaria n. 33 do MEC, publicada no Diário Oficial da União em 17 de janeiro de 2018, tornou obrigatória para todas as escolas de ensino básico do país, públicas ou privadas, o uso do nome social de alunos trans nos registros escolares. A medida entrou em vigor quase dez anos após a Secretaria de Educação do Pará ser a primeira no país a estabelecer que alunos trans poderiam registrar seu nome social no ato da matrícula na rede pública do Estado. Depois do Pará em 2009, outros 23 Estados e o Distrito Federal publicaram resoluções similares.

Fora do ambiente escolar, em 1º de março deste ano o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou que pessoas transgênero alterem seu registro civil em cartórios sem a necessidade de cirurgia de redesignação genital ou de laudo psicológico. Mas mesmo com a decisão do Supremo, as medidas exclusivas para o ambiente escolar são vistas como necessárias por alunos e profissionais da educação.

 

 

A pesquisadora Crishna Correa, professora de Ciência Política na Universidade Estadual de Maringá (UEM), analisou em sua pesquisa de doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) o uso do nome social em universidades públicas da região sul do Brasil. Integrante do Núcleo de Estudos em Gênero e Subjetividades (NIGS/UFSC), ela avalia que a regulamentação do uso do nome social no ambiente acadêmico é fundamental, por mais que haja medidas externas.

“Não é todo mundo que quer mudar o nome oficialmente”, disse Correa a Gênero e Número. “Encontrei pessoas que não queriam mudar de imediato [o registro civil], porque a família sofria com a situação e seria muito difícil ela já mudar o nome. Um dos meus personagens da pesquisa ficou um tempo usando o nome social só na universidade, porque não suportava ficar sem nome social na universidade, mas também não queria o nome civil retificado logo. O nome social no ambiente acadêmico tem essa função das pessoas que estão transicionando e não querem mudar o nome, apesar de serem minoria. É um lugar de transição, onde você está um pouco mais livre para transitar com esse nome e a sua identidade”, explicou a pesquisadora.

Yuri acredita que pessoas trans têm muito mais a conquistar, além do nome social. Foto: Arquivo pessoal

Banheiros, a próxima fronteira

Para estudantes e professores ouvidos pela Gênero e Número, o próximo passo fundamental para o respeito a pessoas transgênero dentro das escolas é o uso do banheiro. Em 2015, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), criou a resolução 12/2015, que estabelece parâmetros para garantir o acesso e a permanência de pessoas trans nas instituições de ensino. A resolução orienta que o uso do banheiro se dê conforme a identidade de gênero de cada aluna ou aluno, mas não tem sido acatada por escolas e universidades.

Para Sayonara Nogueira, professora da rede estadual de ensino de Minas Gerais e vice-presidente do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), este é o principal problema para alunos transgênero. Ela defende a aprovação do projeto de lei 5002/2013, a chamada Lei João W. Nery, para garantir que a pessoa trans seja tratada de acordo com a sua identidade de gênero em todos os espaços, não só para uso do nome social.

“Já tive problemas com alunas trans, para que depois de uma negociação a aluna pudesse usar o banheiro dos professores”, conta Nogueira. “Você tem que fazer acordos e negociações dentro da escola, porque ela [a aluna] corre o risco de frequentar o banheiro masculino e sofrer uma violência, mas também tem o problema de frequentar o banheiro feminino e pais conservadores irem à escola reclamar. Isso cria uma complicação com a qual nem nós, profissionais ali dentro, sabemos lidar”, afirma. “Quando eu faço a aluna frequentar o banheiro do professor, eu começo a sentir que estou criando uma política de exclusão.”

Nogueira afirma que professores trans também sofrem com este problema em seu próprio local de trabalho. “Esse acesso ao banheiro enquanto profissional já me foi negado também. Um grupo de professoras já reclamou com a direção que eu não deveria usar o banheiro, e não houve conversa. Foi há muito tempo, e não existia a discussão: ou eu segurava, ou eu tinha que usar o banheiro masculino”, conta.

Cristiane Cerdera, professora de inglês do Colégio Pedro II há dez anos, é coordenadora do Laboratório de Estudos em Educação e Diversidade (LEDi) da instituição. Ela também acredita que a garantia do uso do banheiro por alunos trans de acordo com sua identidade de gênero é o direito mais urgente. “A resolução desse problema é local, e hoje cada diretor tem que encontrar a forma de lidar. É fundamental uma lei que garanta o uso do banheiro, porque é uma coisa muito primária”, afirma.

Sayonara Nogueira é vice-presidente do IBTE e professora. “Esse acesso ao banheiro enquanto profissional já me foi negado também."

Formar docentes para a questão

Grande parte dos alunos transgênero não se sentem seguros no espaço escolar, apontou a última Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, publicada em 2016 pela Secretaria de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Segundo o estudo, 43% dos estudantes de 13 a 21 anos se sentem inseguros no ambiente escolar por causa da sua identidade de gênero. Agressões verbais e físicas por conta de sua identidade de gênero foram sofridas por 68% e 25% dos estudantes.

A violência transfóbica tem impacto direto na presença dos alunos na escola. Aqueles que sofreram com mais agressões devido à sua expressão de gênero tinham 59% de probabilidade de faltas no mês anterior à pesquisa, enquanto aqueles que sofreram menos agressões tinham 24% de chances de ter faltado.

A professora Cristiane Cerdera aponta a formação profissional dos docentes sobre identidade de gênero como um fator que pode ajudar a melhorar a experiência de pessoas trans na escola. Para ela, a falta de compreensão das questões enfrentadas por estudantes trans resulta em episódios de transfobia no ambiente escolar.

“Essa deveria ser uma questão pautada nas universidades, nos cursos de formação de professores”, afirma Cerdera. “Atualmente, os cursos não contemplam essas questões, estão super defasados. Você forma um profissional que sai da universidade sem ter contato com o debate, e quando tem é uma disciplina eletiva, no máximo, mas nada na grade obrigatória. Teria que ter essa formação inicial, e depois uma formação em serviço, que depende mais das secretarias locais. Essas questões precisam ser abordadas no dia a dia”, aponta ela, que destaca a necessidade da formação sobre o tema também ser direcionada a outros profissionais que lidam com os alunos, não só os professores.

Sayonara Nogueira concorda que a qualificação do debate sobre identidade de gênero é fundamental, mas diz perceber um desinteresse da maioria dos professores, que conecta também às condições precárias de trabalho. “O professor não quer ser capacitado [sobre identidade de gênero]. É uma questão social, mas também devido à carga horária extensa. E também é uma profissão extremamente desvalorizada”, diz a professora da rede pública de Minas Gerais.

Escola laica

A garantia da laicidade das escolas públicas também favoreceria o debate sobre identidade de gênero dentro do ambiente escolar, evitando casos de transfobia. Para as professoras ouvidas pela Gênero e Número, a interferência de interesses religiosos é um dos empecilhos para o avanço de políticas e ações importantes para alunos trans dentro e fora da escola.

]“Lutar para que a escola seja laica de verdade é um princípio fundamental, porque a partir dele a gente pode trabalhar a questão dos direitos humanos como um grande guarda-chuva, e trabalhar a questão das mulheres, LGBTs, pessoas trans sem que isso seja taxado como ‘algo que está indo contra a Bíblia’”, diz Cerdera. “A gente não segue a Bíblia, segue a Constituição e os documentos oficiais que norteiam a educação brasileira.”

Alvo de transfobia no ambiente escolar e testemunha de casos envolvendo seus alunos, Nogueira aponta a manutenção de estereótipos, ligados também a concepções religiosas, como fator que contribui para a violência contra pessoas trans. “Não conseguimos separar Estado e religião. Vivemos em um país que não separa. Os ritos [religiosos] estão muito enraizados dentro da instituição [de ensino]. E cria-se mitos e estereótipos em torno dessa população, que leva ao processo de discriminação”, afirma.

O IBTE criou a Plataforma T, para recolher denúncias de violação de direitos das pessoas trans no ambiente escolar e acadêmico. A plataforma disponibiliza um formulário que pessoas trans podem preencher e enviar caso seu direito ao nome social ou sua identidade de gênero sejam desrespeitadas.

“Criamos o observatório para fazer a quantificação de violação de direitos humanos contra pessoas trans: assassinatos, tentativas de homicídio e a transfobia institucional”, explica Nogueira. No entanto, passaram também a chegar relatos de desrespeito à portaria 33 do MEC. “Começamos a receber denúncias de alunos de escolas públicas e privadas que estavam se negando à adoção do nome social nos documentos”, conta.

Após receber a denúncia, os membros do IBTE entram em contato com o autor do relato e encaminham o caso para a ouvidoria da instituição em que o aluno estuda. Caso não haja resolução ou explicação plausível sobre o fato relatado, o caso é encaminhado para a ouvidoria do Ministério da Educação. Em dois meses de criação, já foram enviadas sete denúncias de transfobia em ambiente escolar. O grupo pretende, em breve, criar um aplicativo para que os alunos trans tenham contato direto com o MEC.

 

*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Mais sobre Educação: https://www.generonumero.media/edicao-09/

Contato: https://www.generonumero.media/contato

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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