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O muro permanece alto para mulheres negras

Elas são 21% dos estudantes que concluem o ensino superior, o segundo maior grupo do país, mas ainda enfrentam barreiras para se manter na universidade e entrar no mercado de trabalho

Por Gabriele Roza*

  • Desigualdade de gênero e raça começam na escola

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  • Desemprego afeta mais mulheres negras do que os outros grupos

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  • Pandemia aprofundou as desigualdades

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Em 2012, Paloma Calado tinha 17 anos e decidiu que queria fazer faculdade de ciência da computação. Ela bolou um plano: cursar o último ano do ensino médio de manhã, dois cursos profissionalizantes à tarde e fazer o pré-vestibular à noite, no Centro de Educação do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, onde mora. A ideia era passar na faculdade, mas, caso não conseguisse, entraria no mercado de trabalho.‘‘Graças a Deus deu certo, fui aprovada em três universidades’’, conta. 

Decidiu pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e foi aí que ela deu de cara com um outro universo, mais desigual do que qualquer outro espaço que ocupava. ‘‘Foi um choque de realidade. Eu não sabia dessa discrepância de mulheres e homens na computação. Para mim era normal, mas quando eu cheguei lá não era assim: 10% da turma eram mulheres, e mulheres negras tinham duas, contando comigo, em uma turma de 60’’.

Paloma estudou em escolas públicas municipais e estaduais. Ela explica que, por isso, sempre teve contato com pessoas próximas a sua realidade. ‘‘Na faculdade, eu vi de cara a diferença. Foi mais gritante a questão de gênero e depois veio a questão de raça porque, mesmo entre os homens, pouquíssimos eram negros. Mas eu fico feliz porque nessa minha trajetória dentro da universidade, eu vi esse quadro mudando’’.

Quando Paloma entrou na universidade, em 2013, excluindo os casos sem informação ou que não responderam, mulheres negras eram 22% das pessoas que haviam ingressado nas Instituições de Ensino Superior (IES), mulheres brancas 32%, homens brancos 26% e homens negros 18%. Em 2019, considerando os que declararam cor ou raça, houve um salto entre alunos negros que ingressaram no ensino superior: mulheres negras passaram para 27% do total, e homens negros, para 20%. Já a proporção entre os brancos caiu para 29% entre as mulheres e para 22% entre os homens. A política de cotas nas universidades federais foi instituída em 2012, logo o aumento em 2019 demonstra ser um possível reflexo da medida.  

Neste domingo (25) em que se celebra o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, é importante olhar para avanços, mas sem deixar de reconhecer que são as mulheres negras que ainda enfrentam mais barreiras para se manter na universidade e entrar no mercado de trabalho. Elas seguem sub-representadas nas instituições públicas do país. Do total de mulheres negras que entraram em uma universidade, 16% ingressaram em instituições públicas e 84% em instituições privadas. Os dados são do Censo Escolar mais recente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão vinculado ao Ministério da Educação. Já de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos  (Dieese), com base nos dados da Pnad Contínua, a taxa de desocupação das mulheres negras atingiu 19,8% no terceiro trimestre de 2020.

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Dados do Censo do Ensino Superior analisados pelo data_labe mostram que a porcentagem de mulheres matriculadas nos cursos de tecnologia é bem menor. Em 2016, em engenharia da computação, 10% das pessoas matriculadas eram mulheres e, destas,  62% eram brancas. Ou seja, mesmo as mulheres negras sendo 28% da população brasileira, o maior grupo demográfico do país, menos da metade de mulheres ingressantes em engenharia da computação era negra.

‘‘A gente tinha uma ilusão de que as questões de gênero já estavam resolvidas na educação porque as mulheres eram maioria tanto na conclusão da educação básica quanto na participação no ensino superior. Mas a pergunta é: de quais mulheres estamos falando? O que elas escolhem e quem pode escolher?’’, questiona Suelaine Carneiro, coordenadora do Programa de Educação e Pesquisa do Geledés – Instituto da Mulher Negra. Para sua pesquisa de mestrado, Suelaine entrevistou estudantes de ensino médio e percebeu que, já dentro da universidade, muitas escolhas profissionais são possibilitadas ou impossibilitadas pela questão de gênero, de raça e pelas condições socioeconômicas. Ou seja, passar não basta. Concluir a graduação é outro desafio significativo para essas mulheres. 

Paloma Calado conseguiu ultrapassar essa primeira barreira, mas teve que aprender a lidar com várias dificuldades. Na faculdade, ela viveu situações em que professores desacreditaram do seu potencial: ‘‘O maior desafio é o contato com os professores. As questões se cruzam, eu sou uma mulher negra em computação’’. Por conta do ensino básico não ter sido ideal, ela também teve dificuldade em algumas disciplinas de matemática. ‘‘Estou até hoje lutando para concluir a faculdade. É um ambiente de pressão, tanto de pressão externa da sociedade quanto de mim mesma, por pensar que o tempo está passando e eu não me formo. Eu lutei tanto para estar ali, por que não tá dando certo? Será que não sou capaz?’’.  

Em 2019, entre as pessoas que concluíram o ensino superior, 27% eram mulheres brancas, 21% mulheres negras, 18% homens brancos e 14% homens negros. Ou seja, a porcentagem de mulheres negras que concluíram o ensino superior é apenas um ponto percentual menor do que as que ingressaram naquele ano. Isto indica que, apesar dos percalços e do tempo às vezes maior que o inicialmente planejado, elas conseguem concluir o curso. Mas ao observar a proporção apenas entre mulheres, a desigualdade racial se revela de forma mais clara: mulheres negras representaram 35% das que se formaram, enquanto mulheres brancas eram 45%. ‘‘Eu decidi fazer uma mudança bem drástica. Minha ideia era trancar o curso de ciência da computação, mas optei por um processo de transição e estou fazendo disciplinas do curso de marketing’’, diz Paloma.

Desigualdade de gênero e raça começam na escola

Mestre em gênero e desenvolvimento pela Universidade de Sussex, no Reino Unido, Bárbara Paes (28) fez sua pesquisa de pós-graduação sobre uma experiência que é comum para ela: o racismo na escola. ‘‘Crescendo como uma menina negra e com uma irmã negra, eu percebia que a escola era um espaço ruim. Aconteceram vários episódios de racismo comigo, com a minha irmã, com outras mulheres que a gente conhecia. O que me chamou atenção é que não era uma coisa individual, era uma coisa muito comum nas trajetórias escolares de quase todas as mulheres negras que eu conheço’’, recorda. 

Na pesquisa, ela analisou dois casos de crianças negras que sofreram racismo na escola. Ela explica que as escolas costumam minimizar a violência sofrida e apontar a situação como uma ocorrência normal. Se as mães das alunas não tivessem se posicionado, as situações passariam despercebidas. ‘‘Nos dois casos, os órgãos de educação falharam de maneira direta em reconhecer o racismo e a gravidade dos casos. O que se tornou mais grave é não prestar atendimento às crianças que sofreram a violência. O impacto psicológico foi ignorado. Essa experiência da escola pode ser tão traumática a ponto de você não querer fazer uma faculdade depois ou não querer seguir no espaço de educação”. 

Para Bárbara, as ocorrências de racismo costumam ser encaradas pelas instituições de ensino de forma isolada, como se não fossem um problema estrutural presente em todos os espaços: ‘‘Se a gente olhasse isso de uma forma estrutural, poderia pensar em estratégias de prevenção’’. A pesquisadora também é uma das fundadoras e coordenadoras do Minas Programam, que ajuda a criar espaços seguros para que mulheres negras possam aprender sobre tecnologia. ‘‘As mulheres crescem escutando na escola que não vão ser boas nisso. Nossas alunas do Minas Programam sempre escutaram isso, os pais achavam, os professores e as pessoas em volta não necessariamente acreditavam que essas meninas poderiam ser cientistas, tecnologistas, médicas’’. 

 

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O racismo no ambiente escolar marca durante muito tempo pessoas negras. A estudante de Relações Internacionais do Centro Universitário IBMR, no Rio de Janeiro, Milena Santos Francisco (26), lembra com tristeza a fala da professora na escola: ‘‘Quando a professora brigava, ela falava: ‘você está conversando demais, como é que vai ser atendente do McDonald’s assim?’ Na época, eu falei ‘quem disse para você que eu quero ser atendente do McDonald’s?’ Mas depois eu percebi o quanto de racismo e de preconceito aquela frase carregava’’. 

O incômodo com o ambiente educacional e com professores não parou por aí. Já no início da faculdade, Milena sentiu a pressão de tentar ser uma mulher negra fora do lugar que a sociedade impõe: ‘‘Sou bolsista, desde o primeiro dia já foi aquele choque porque só tinha branco, classe média, morador da Zona Sul [área de maior poder aquisitivo no Rio de Janeiro], realidade completamente diferente da minha. No primeiro dia de aula, o professor já vem com texto inglês, diz ‘se virem, que aqui todo mundo tem que falar inglês’. Você já fica chocada, pedindo socorro. É desesperador e cansativo também’’.  

Desemprego afeta mais mulheres negras do que os outros grupos

A estudante está desempregada desde 2017, quando trabalhava em uma ONG no Morro do Borel, na Tijuca, Zona Norte do Rio, onde também mora. Em 2019, ela fez um curso para aprender a fazer trança e acabou decidindo investir na carreira de trancista. ‘‘Fiz o curso por hobby mesmo, foi uma experiência muito rica, aprendi muito e fiquei com essa vontade de começar um negócio. Aí minha mãe falou ‘você é boa, acho que vale a pena investir’. E eu estava sem renda, desempregada, então seria uma forma de ter uma renda fazendo uma coisa que eu gosto’’.

Depois de alguns meses treinando, começou a ter clientes, mas precisou parar na pandemia  por falta de um espaço próprio. Desde 2017, Milena tenta vagas de emprego ou estágio, mas até hoje não conseguiu. Diversas pesquisas mostram que mulheres negras são as mais afetadas pelo desemprego no país, principalmente em momentos de crise. Entre o segundo semestre de 2014 e o primeiro de 2017, a variação na taxa de desemprego foi elevada para todos os grupos demográficos, mas há uma diferença na variação entre eles. 

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Segundo análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a partir de dados da Pnad Contínua, do IBGE, entre os grupos de sexo/cor, as mulheres negras experimentaram o maior aumento absoluto na taxa de desemprego: ‘‘8 pontos percentuais, representando uma taxa 80% maior que antes do início da recessão [que ocorreu entre o terceiro trimestre de 2014 e o primeiro trimestre de 2017]’’. O menor aumento foi para os homens brancos (4,6 pontos percentuais).

Dois anos depois, sob os efeitos da pandemia de covid-19, os índices pioraram para toda a população, mas foram as mulheres negras mais uma vez as mais afetadas. O relatório ‘‘A Inserção das mulheres no mercado de trabalho’’, do Dieese, com base nos dados da Pnad Contínua, aponta que parcela expressiva de mulheres perdeu sua ocupação no contexto da crise sanitária. Entre o terceiro trimestre de 2019 e 2020, a quantidade de mulheres fora da força de trabalho aumentou 8,6 milhões, a ocupação feminina diminuiu 5,7 milhões e mais 504 mil mulheres passaram a ser desempregadas. Neste período, a taxa de desemprego das mulheres negras cresceu 3,2 pontos percentuais, e das não negras, 2,9 p.p. A taxa de desocupação das mulheres negras atingiu a alarmante taxa de 18% no terceiro trimestre de 2020, quando a taxa de desocupação do país era 14,6%. 

Pandemia aprofundou as desigualdades

“A gente sabe que em todos os momentos de crise, de acirramento das condições socioeconômicas, as mulheres e os negros serão os mais impactados’’, explica Suelaine Carneiro. Na pandemia essa realidade não mudou, diz a pesquisadora, que coordenou, na Geledés – Instituto da Mulher Negra, a pesquisa ‘‘A Educação de Meninas Negras em Tempos de Pandemia: O aprofundamento das desigualdades’’.

Em 2020, foram realizadas entrevistas em São Paulo para compreender a percepção das famílias e professores sobre a educação em tempos de pandemia. ‘‘A gente tinha certeza que havia uma lacuna de informação sobre o impacto da pandemia na educação, que era não fazer o recorte racial e de gênero’’, afirma Suelaine.

A pesquisa traz informações sobre a fragilidade das famílias, em particular as negras. Famílias que durante o isolamento social não puderam ficar em casa com os seus filhos, que mais solicitaram o auxílio emergencial naquele primeiro momento, que não tinham conexão por cabo, computadores, e que também não tinham condições adequadas para que as crianças pudessem estudar. “Para todos esses questionamentos, a maioria dos que disseram que não tem condições foram as famílias negras’’, conta a pesquisadora.

Segundo o trabalho, o principal mecanismo de acesso às redes para as famílias brancas é o computador, e para as famílias negras é o celular. Entre os entrevistados, o computador é utilizado por 63,64% das famílias brancas e por 23,81% das famílias negras. As meninas negras foram as que tiveram menor acesso a material didático pedagógico; quando comparadas a outros grupos, elas também foram as que menos conseguiram realizar as tarefas escolares.

 

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Pesquisa realizada pela Pearson no Brasil, na China, nos Estados Unidos e no Reino Unido revela como o ensino à distância no país depende de políticas públicas para a educação. O estudo mostra que a maioria dos pais brasileiros (83%) e estudantes universitários (86%) concorda totalmente que o governo deveria fazer mais para garantir o acesso à internet e equipamentos tecnológicos para os alunos. Nos outros países, esse número é substancialmente menor: 36% dos pais chineses, 49% dos estadunidenses e 50% dos britânicos concordam que o governo deveria fazer mais.

Quando questionados sobre o que mais os preocupam durante o curso universitário, a maior parte dos estudantes brasileiros (47%) indicou ser a situação financeira. A pesquisa foi realizada entre abril e maio deste ano com quatro mil responsáveis por crianças entre 11 e 17 anos e dois mil estudantes nos quatro países citados.

Para Suelaine Carneiro, não se revertem as condições de desigualdade sem uma agenda comprometida com mudanças estruturais, que já são reforçadas pelo movimento negro e de mulheres há anos. ‘‘Quando a gente recupera a história do movimento negro brasileiro, já no século 19, há relatos de ações em que a escolarização da população negra é uma demanda. A ação em defesa de cotas é uma estratégia de luta de movimento negro. As mulheres também compreenderam a educação como uma janela de oportunidade para outras possibilidades de vida’’.

No dia 16 de julho, a estudante da UFRJ Paloma Calado recebeu uma notícia que balançou seu coração: ela foi aprovada em uma vaga em uma empresa de tecnologia. ‘‘É um recrutamento voltado para mulheres e pessoas negras, um programa de formação com contratação imediata para trabalhar nesse ramo de tecnologia. Eu entrei com tudo porque apesar de não ter tido um rendimento satisfatório como o que eu queria na universidade, é uma área que eu amo’’. 

‘‘No Brasil, a gente não pode se dar ao luxo de ignorar a genialidade das mulheres negras’’, conclui a pesquisadora Bárbara Paes. ‘‘As ideias, as inovações que as mulheres negras têm criado desde sempre são inestimáveis. As soluções para os problemas mais graves que a gente tem não virão das mesmas pessoas, mas das pessoas que estão sendo mais impactadas por esses problemas. No Brasil, eu diria que boa parte das pessoas que estão sendo mais impactadas pela desigualdade são pessoas negras e mulheres negras, não tem como a gente não priorizar a educação delas’’.

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* Gabriele Roza é repórter e colaboradora da Gênero e Número

Esta reportagem foi  produzida com o apoio da empresa de aprendizagem Pearson.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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