Fotos: Juliana Chalita / GN

Mulheres no centro da luta por território e por sobrevivência dos povos quilombolas

No quarto debate do primeiro Diálogos Gênero e Número, uma conversa sobre a importância de colocar as mulheres negras no centro da luta por direitos humanos e pela sobrevivência dos povos quilombolas no Brasil

Por Mariana Bastos

Carolina de Assis

Uma boneca é o símbolo de luta e resistência das mulheres quilombolas. “A boneca Abayomi foi criada para acalentar as crianças, para suportar a travessia de África até qualquer ponto, no caso o Brasil. Baseada nessa boneca, a gente diz que a luta dos quilombos não existe sem a presença das mulheres”, afirmou Selma Dealdina, da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), durante o primeiro “Diálogos Gênero e Número”, realizado na última terça-feira (5/12), no Rio de Janeiro.

Dealdina foi uma das quatro mulheres negras que integraram o debate “Indígenas e quilombolas: estatísticas de uma sobrevivência ameaçada”, que aconteceu no Parque das Ruínas, em Santa Teresa. Completaram a mesa Isabel Clavelin, da ONU Mulheres Brasil, Ivone de Mattos Bernardo, da Associação dos Quilombolas do Rio de Janeiro (Aquilerj) e a mediadora Natália Néris, do InternetLab. A líder indígena Simone Eloy, do Conselho do Povo Terena, teve um imprevisto e não pôde comparecer ao debate, que acabou então se focando na resistência das mulheres negras e quilombolas.

[Clique aqui para saber como foram os outros debates do primeiro Diálogos Gênero e Número]

Para a representante da ONU, colocar as mulheres negras no centro do debate dos direitos humanos é fundamental. A entidade criou uma iniciativa de comunicação batizada de “Mulheres Negras rumo a um planeta 50-50 em 2030”, cujo comitê conta com a participação de representantes da própria Conaq e de lideranças da Marcha das Mulheres Negras de 2015.

Isabel Clavelin (em primeiro plano) apresenta estratégia da ONU Mulheres

“Fizemos uma estratégia de comunicação e advocacy para mulheres negras porque nós somos 55 milhões neste país. Somos as mais atingidas pelo racismo, sexismo e opressões interseccionadas. O lema da agenda 2030 [da ONU] é não deixar ninguém pra trás. Nós, mulheres negras, sempre ficamos para trás. Para inverter essa lógica, precisamos ser trazidas para o centro”, explicou Clavelin.

Natália Néris lembrou da importância da produção de dados para a conquista de direitos e para a produção de políticas voltadas para pessoas negras. “Foi somente a partir da produção de dados que a gente conseguiu avançar minimamente nos últimos 30 anos em termos de políticas públicas, entre elas a conquista do direito à titulação das terras quilombolas [de 2003], que é uma demanda do movimento, principalmente da região Centro-Oeste. Isso passou na Constituição sem muitos questionamentos porque na época eles não imaginavam que havia tantos quilombos no Brasil. Até que o movimento social começa a produzir dados sobre isso, mostrando que não há somente quilombos no Centro-Oeste ou no Norte do país”, comentou a mediadora.

Natália Néris, do InternetLab, mediou diálogo

Segundo dados apresentados por Selma Dealdina, existem hoje no Brasil cerca de seis mil quilombos, espalhados por 26 Estados, com uma população estimada de 16 milhões de pessoas. Sua organização conta atualmente com uma direção composta majoritariamente por mulheres.

“Temos um movimento misto, composto por homens e mulheres. As pessoas que estavam nos conselhos eram normalmente homens. Mesmo as mulheres sendo presidente das federações, associações, elas nunca estavam naquele espaço. A partir daí, o movimento começa a fazer uma reflexão. Hoje a gente conseguiu virar isso na Conaq. As mulheres compõem 70% da coordenação nacional. Quando pararam para fazer a conta é que eles perceberam que a gente havia dominado. Dominamos porque é a gente que está na base. Quem está lá no enfrentamento diário são as mulheres, então nada mais justo do que estarmos na coordenação”, apontou Dealdina.  

Selma Dealdina, da Conaq: 'luta dos quilombos não existe sem presença das mulheres'

Em sua apresentação, a dirigente da Conaq lembrou de cinco mulheres quilombolas assassinadas nos últimos anos: Joelma da Silva Elias (Quilombo Alpes/RS), Maria do Céu Ferreira (Quilombo Serra da Talhada Urbana/PB), Francisca das Chagas Silva (Quilombo Joaquim Maria em Miranda do Norte/MA), Helem Moreira (Quilombo Ilha em Vera Cruz/BA) e Maria Trindade da Silva (Quilombo Santana do Baixo Jambuaçu em Moju/PA). De acordo com Dealdina, as duas últimas foram mortas neste ano em em contextos que indicam violência de gênero.

“Durante os quatro anos em que cursou pedagogia, a Helem foi surrada pelo seu companheiro. No dia da formatura, o companheiro deu três facadas e a matou com canudo na mão. A Dona Maria era uma senhora [de 68 anos]. Seu corpo foi encontrado com sinais de violência sexual. Enfiaram uma cavadeira na vagina dela. Quero falar sobre os requintes de crueldade que envolveram essas mortes. Não basta só matar. Tiveram que punir e dar exemplo para as demais mulheres”, afirmou a assistente social.

A líder da Conaq enfatizou que nenhum dos cinco casos foi solucionado e que outras três líderes quilombolas estão sofrendo ameaças: Regiane Oliveira (Quilombo Maria Joaquina/RJ), Sandra Pereira Braga  (Quilombo de Mesquita/GO) e Chifronesia dos Santos (Quilombo Caraíbas/SE). “São três mulheres que estão enfrentando o latifúndio nesse contexto que estamos vivendo”.

Em sua apresentação, Ivone de Mattos Bernardo também relatou perseguições ao povo quilombola no Estado do Rio de Janeiro. “Quantos nossos já morreram por luta de território? Não brigamos por terra de ninguém. É pelo nosso território. É onde nascemos e crescemos”.

Ivone de Mattos Bernardo falou sobre luta quilombola no Estado do Rio de Janeiro

Ela citou o caso do Quilombo da comunidade de Mangaratiba (RJ).  “É uma comunidade com 50 quilombolas. Eles estão tendo os direitos violados, principalmente o direito de ir e vir. Há duas entradas na fazenda. Numa entrada eles colocaram pedras para impedir a passagem de carros. E na outra entrada, colocaram jagunços armados. Os quilombolas para sair ou entrar são revistados”. De acordo com Ivone, a Aquilerj fotografou o local e levou uma denúncia ao Ministério Público.

“Quando começa a vir processo de titulação dos nossos territórios, aparecem pessoas ameaçando de morte”, afirmou Ivone. “Nós somos massacrados há cinco séculos, mas estamos sobrevivendo. Por conta disso, nenhum quilombo a menos.”

O evento “Diálogos Gênero e Número – Dados, Jornalismo e Arte para falar sobre Direitos” foi produzido pela Gênero e Número, com apoio da Artigo 19, Fundação Ford, Fundo Elas, Instituto Patrícia Galvão e ONU Mulheres. Foram seis mesas de diálogos ao longo do dia, e os textos de cobertura de cada mesa serão publicados pela Gênero e Número nos próximos dias. Clique aqui para saber como foram os outros debates.

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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