“Nós, mulheres, vamos erradicar o patriarcado”, convoca nova vice-presidenta da Colômbia, Francia Márquez

Assim como ocorreu no Chile, a chegada da esquerda ao poder no país acontece pautada pela justiça social e climática; “Colombia es mujer” foi slogan da campanha e deu o tom da busca pela equidade à chapa

Por Giulliana Bianconi e Vitória Régia da Silva*

  • Agradecimento a Deus e à Virgem Maria

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  • Voto de esperança na esquerda

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Bogotá – A Colômbia terá na vice-presidência do país uma feminista antirracista e ativista ambiental. Francia Márquez fez história no país neste domingo, 19 de junho, ao lado do presidente eleito Gustavo Petro. A chapa da coligação de esquerda Pacto Histórico alcançou 11.281.002 votos (50,44%) e derrotou os candidatos da direita colombiana Rodolfo Hernández e Marelen Castillo, da Liga de Governantes Anticorrupção, que ficaram com 10.580.399 votos (47,31%). Assim como ocorreu em dezembro no Chile, com a vitória do esquerdista Gabriel Boric, na Colômbia a alternância de projeto político também acontece pautada  pela justiça social e climática.

Márquez e Petro fazem juntos o discurso de que é possível  fazer da Colômbia uma liderança no enfrentamento às mudanças climáticas. “Queremos que a Colômbia, e será prioridade da política diplomática, se coloque à frente da luta política contra a mudança climática no mundo”, discursou Petro após eleito. Se a pauta ambiental é representada por ambos, o feminismo e o antirracismo estão prioritariamente no discurso da vice, que ocupou um lugar de protagonismo desde antes da chapa presidencial ser selada, obtendo mais de 700 mil votos ainda nas primárias colombianas. Ontem, em Bogotá, ao subir no palco cercada por mulheres negras, afirmou: “Vamos as mulheres erradicar o patriarcado em nosso país. Vamos pelos direitos da comunidade LGBTQIA+, vamos pelos direitos de nossa Mãe Terra, a cuidar da nossa biodiversidade e vamos juntos erradicar o racismo estrutural”. A convocação de Francia representa um novo momento no país, o da chegada de um governo popular ao poder que está conectado aos movimentos sociais contemporâneos mais atuantes e que vêm demonstrando força de mudança na América Latina.

Palco da vitória onde discursaram Petro e Márquez neste domingo exibe slogan da campanha | Foto: Divulgação

Advogada, ela não esteve em cargos eletivos anteriormente e tampouco priorizou a carreira jurídica. É ativista da causa ambiental desde a adolescência, quando organizou protestos contra o garimpo ilegal na sua comunidade, La toma, no Oeste da Colômbia. Mas além disso, Márquez é também uma voz de liderança do crescente movimento negro no país.

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Vamos as mulheres erradicar o patriarcado em nosso país. Vamos pelos direitos da comunidade LGBTQIA+, vamos pelos direitos de nossa Mãe Terra, a cuidar da nossa biodiversidade e vamos juntos erradicar o racismo estrutural

Agradecimento a Deus e à Virgem Maria

Foi com discurso pró-aborto, fazendo menção aos seus ancestrais e sem negar Deus e Virgem Maria que ela converteu votos das minorias políticas. Ontem, ao começar a discursar, mencionou primeiramente Deus. “Quero agradecer a Deus e à Virgem Maria por esse momento. Aos ancestrais e às ancestrais. Obrigada ao povo colombiano […] vamos por todas as mulheres que foram violentadas e desaparecidas. Damos obrigada por termos feito esse caminho e plantado a semente da resistência e da esperança. Quero saudar a minha família e a família de nosso presidente Gustavo Petro. Quero saudar a minha comunidade […] Depois de 214 anos, conseguimos um governo do povo, um governo popular”.

O protagonismo da vice Francia Márquez durante toda a corrida eleitoral foi importante para dialogar com feministas, mulheres e homens negros e indígenas. E engajá-los. “Colombia es mujer” (Colômbia é mulher) foi também slogan que esteve presente na campanha. Diferentemente de Gustavo Petro, Francia se colocou publicamente a favor do direito ao aborto diversas vezes. Quando o Movimento Causa Justa avançou com ação no Tribunal Constitucional da Colômbia, ela se declarou a favor da descriminalização com posicionamento contundente nos palanques, entrevistas e redes sociais.

 

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“Se o aborto neste país é um pecado, então a maioria dos homens está condenada à fogueira. Porque abortam sua responsabilidade como pais e abandonam seus filhos. Nesse sentido, o aborto não deve ser visto como um fardo que recai apenas sobre as mulheres. A responsabilidade dos homens que não assumem suas responsabilidades também deve ser reconhecida. Deve-se reconhecer também que os homens não sabem o que significa a dor do parto. É por isso que nós mulheres devemos ter total liberdade para decidir sobre nossos corpos. E ainda mais se levarmos em conta que o trabalho de cuidar recai sobre nós mulheres. Devemos também ter plenas garantias de assistência à saúde em qualquer caso que motive um aborto, pois o que está em jogo é a dignidade da mulher”, escreveu em dezembro de 2021, em uma sequência de tuítes em seu perfil na plataforma. Em fevereiro, celebrou publicamente a decisão do Tribunal Constitucional de descriminalizar o aborto no país até a 24ª semana de gestação.

A Gênero e Número esteve na Colômbia na semana pré-eleições e no domingo da votação. Foi possível acompanhar uma das lideranças feministas mais conhecidas do país, Ana Cristina González, integrante do Movimento Causa Justa, na sua ida à urna. “Petro e Francia se comprometeram durante a campanha com a luta contra as desigualdades e com a nossa liberdade reprodutiva”, afirmou convicta do voto.  

Também saudada no discurso de posse pela vice-presidenta, a comunidade LGBT+ esteve organizada e mobilizada pela chapa progressista nos últimos meses no país. “Francia Marquez representa um povo que está cheio de mulheres negras, de campesinas, de mulheres do setor rural, um povo que também inclui as mulheres lésbicas. Então Francia representa tudo que historicamente temos buscado. É uma mulher negra, ativista, liderança que tem uma convicção para impor as maiorias sociais, e por isso a queremos como vice-presidenta”, disse à Gênero e Número a ativista do movimento lesbofeminista Estamos Listas, Eliana Riaños-Vivas. 

Voto de esperança na esquerda

A chegada da esquerda ao poder pela primeira vez no país foi bastante apertada, como mostram os números de votos finais da votação. Às vésperas do pleito, com as pesquisas indicando empate técnico, não havia clima de “já ganhou” e era necessário mobilizar o voto que havia garantido a Petro uma vantagem de 12% sobre o opositor no primeiro turno (40% a 28%). Durante todo o dia de votação, Petro e Márquez convocaram o povo colombiano às urnas pelas redes sociais, TV e rádio.

O voto a não ser desperdiçado nesse segundo turno era o do eleitorado que anseia por mudanças estruturais no país, que simpatizava com o slogan “El cambio es imparable” (a mudança é imparável)”, embora o desafio fosse também converter aqueles que não descartavam Hernández, o empresário que ao longo da campanha se apresentou como alternativa aos políticos tradicionais, carregou a bandeira da anticorrupção e surpreendeu com a votação expressiva que obteve em Maio. Na disputa acirrada, o projeto da esquerda do Pacto Histórico prevaleceu. Venceu Gustavo Petro, que já havia sido prefeito de Bogotá, senador líder da oposição e, nos anos 80, guerrilheiro e preso político. “Agora são vocês a força de mudança, a força do amor, a força da esperança. Quero agradecer a minha mãe, que nao está aqui conosco”. Foi dessa forma que o presidente eleito começou seu discurso.

Em seguida, fez menção ao desenvolvimentismo, mantendo o tom do respeito ao meio ambiente. “Nao se pode redistribuir sem produzir. Se queremos redistribuir para que toda a sociedade seja mais igualitária, temos que produzir. Produzir sem que se afete a dignidade humana. Produzir no campo, na indústria. Produzir sobre uma base de conhecimento, com justiça ambiental […] É um governo da vida: paz, justiça social e justiça ambiental”, afirmou diante de cerca de 14 mil pessoas na Movistar Arena, em Bogotá.

*Vitória Régia da Silva é editora-assistente da Gênero e Número
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Giulliana Bianconi é diretora e cofundadora da Gênero e Número

Giulliana Bianconi

É jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco, cofundadora e diretora da Gênero e Número. Atualmente também se dedica a pesquisar e a escrever sobre movimentos de mulheres e sobre desigualdades de gênero e raça na América Latina. Possui especialização em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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