Desde os primeiros dias de mobilização e protestos no Chile, na terceira semana de outubro, foram relatados diversos casos de abuso policial, principalmente após o presidente Sebastián Piñera decretar estado de emergência no país, no dia 19 de outubro. Mulheres denunciam humilhações, uso de força excessiva e violações sexuais por policiais e militares. Entre as 4.271 pessoas detidas de 17 a 30 de outubro, pelo menos 656 eram mulheres, segundo dados compilados pelo Instituto Nacional dos Direitos Humanos (INDH). Dos 167 processos abertos por ilegalidades das forças de segurança, 18 eram denúncias de violência sexual. Organizações feministas do país afirmam que o número deve ser muito maior .
“A situação é séria. Como em todo território militarizado, houve um aumento nos casos de abuso. Há relatos de mulheres que são obrigadas a se despir nas delegacias de polícia, e tocadas de modo inapropriado durante as detenções. As mulheres que se mobilizaram nas ruas foram ameaçadas de estupro, se não voltassem para suas casas. Essa intimidação vem das mesmas organizações que juraram nos proteger”, disse Karen Vergara, pesquisadora em gênero e violência e diretora de comunicações da ONG Amaranta à Gênero e Número.
Para a advogada Silvana Del Valle, da Rede Chilena Contra Violência à Mulher, o número de casos de violência sexual deve ser maior do que o registrado pelo INDH. Além disso, ela lamenta que o Instituto não determine o gênero das vítimas. Por isso, não é possível afirmar o número concreto de mulheres violadas.
“A violência sexual e a violência político-sexual vêm desde a ditadura militar [1973-1990] e se mantiveram todo o período de redemocratização. A polícia usa esse tipo de tática, tocando no corpo de mulheres e meninas, para reprimir e discipliná-las. A polícia é treinada com ferramentas patriarcais e não aceita a presença de mulheres em organizações e movimentos sociais”, conta Del Valle.
Um dos casos de violência sexual denunciados ao INDH aconteceu no dia 20 de outubro. Uma mulher foi presa em um supermercado, acusada de roubo por soldados do Exército chileno. Algemada, a vítima foi colocada de ponta a cabeça, e os agentes apontaram a arma para seu rosto, ordenando que ela não se mexesse. Começaram então a tocar seu corpo com a arma, ameaçando penetrá-la. A cena teria sido presenciada a presença das outras mulheres detidas, que também foram imobilizadas e colocadas de bruços no chão.
A ONG Amaranta, que promove ações de pesquisa e educação relacionadas a questões de gênero, lançou uma campanha para receber denúncias de violência sexual durante o período de convulsão social. “Percebemos que a violência sexual anda de mãos dadas com a repressão militar e policial. As mulheres historicamente têm sido consideradas um território de conquista, e a violência político-sexual prova isso. É necessário fazer um registro histórico e testemunhal do que está acontecendo conosco, para que nunca mais volte a acontecer”, afirma Vergara. “Até agora, recebemos relatos de casos de assédio nas ruas e ameaças de estupro da polícia contra mulheres que se manifestaram. Os casos envolvem mais de uma pessoa uniformizada, o que também demonstra que eles usam seu poder para incutir terror.”