Nicéa Quintino, uma das 219 professoras doutoras pretas na pós do Brasil, leciona na UFU. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Menos de 3% entre docentes da pós-graduação, doutoras negras desafiam racismo na academia

A Gênero e Número ouviu mulheres negras presentes no corpo docente de programas de pós no Brasil; elas apontam racismo institucional e necessidade de cotas para entrada de mais pessoas negras na docência de cursos de mestrado e doutorado

Por Lola Ferreira*

  • Início do gargalo

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  • Ciclo do racismo institucional

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  • Além das Ciências Humanas

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  • Políticas de acesso, mas não de permanência

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  • Cotas como solução

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  • Nem parece que é no Brasil

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Por insistência, imposição ou resiliência, Solange Rocha é uma mulher preta que chegou ao topo da carreira docente na academia. Coordenadora do programa de pós-graduação em História na UFPB (Universidade Federal da Paraíba), Rocha afirma que o reconhecimento obtido entre pares se deu devido aos longos anos produzindo na mesma temática, e que episódios de racismo não cessaram com a sua ascensão.

“Certa vez, uma professora estrangeira chegou ao departamento me procurando e uma funcionária questionou: ‘aquela professora negrinha?’. Isso acontece com frequência”, conta ela a Gênero e Número, destacando o tom pejorativo reproduzido na frase.

Rocha é uma das 219 doutoras pretas professoras em cursos de pós-graduação do Brasil, segundo o Censo da Educação Superior mais recente, de 2016. Mulheres pretas com doutorado, como ela, são 0,4% do corpo docente na pós em todo o país. Quando somadas, as mulheres pretas e pardas com doutorado, que formam o grupo das negras, não chegam a 3% do total de docentes.

O grupo com maior representação na docência de pós-graduação é o de homens brancos com doutorado: são 13.198, o que representa 24%. Já as professoras brancas com a mesma escolaridade na docência da pós são pouco mais de 10 mil, ou 19% do total de 53.995 professores nos cursos de doutorado, mestrado e especialização.

O Censo da Educação Superior pediu a autodeclaração dos professores via questionário enviado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação, e recolhido pelas instituições de ensino. Os dados abrangem instituições públicas e privadas. Do total de professores, 44% escolheram não declarar sua raça ao Censo. Considerados somente os declarantes do campo raça, homens brancos doutores são 43% dos docentes dos cursos de pós-graduação.

 

Início do gargalo

A trilha que culmina na baixa representação negra na docência da pós-graduação começa ainda no início da carreira acadêmica. Na graduação, de acordo com o Censo, mulheres pretas são 6% das alunas entre 20 e 24 anos e mulheres brancas na mesma faixa etária  são 40%.

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), concede anualmente bolsas para alunos de graduação e pós-graduação e para pesquisadores de instituições de ensino de todo o país. Em 2017, o grupo com a maior fatia das bolsas do CNPq foi o de mulheres brancas, com 31%. As mulheres pretas foram 3% do total de 93.405 bolsistas contemplados. As mulheres pardas receberam 12% das bolsas e os homens brancos 28%.

Outro possível gargalo é o próprio corpo discente da pós-graduação, que de acordo com professoras ouvidas pela Gênero e Número concentra baixo número de alunas pretas. Via Lei de Acesso à Informação, a reportagem solicitou à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação, os dados sobre raça dos alunos. Em resposta, a fundação informou que a coleta de informações sobre raça foi instituída somente em 2016, após a portaria 13/2016 do MEC determinar a necessidade de um censo do corpo discente da pós-graduação com objetivo de fornecer subsídios e avaliar programas de ações afirmativas. De acordo com a Capes, o primeiro ano em que os estudantes da pós-graduação tiveram de preencher o campo “raça” foi em 2017. Os dados estão em fase de consolidação e não foram disponibilizados.

Ciclo do racismo institucional

Joselina da Silva é doutora em Ciências Sociais pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e atualmente orienta alunos dos  programas de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Autora do artigo “Doutoras professoras negras: o que nos dizem os indicadores oficiais”, redigido em 2009, ela iniciou pesquisa sobre a representação de mulheres negras na carreira acadêmica por perceber uma lacuna na discussão sobre o tema. Desde então, nas pesquisas qualitativas realizadas nos últimos nove anos, as professoras doutoras ouvidas por ela e seus orientandos apontam um “ciclo do racismo institucional” que impede a ascensão das docentes pretas.

Silva explica que as pesquisas que coordenou sobre as mulheres pretas na comunidade acadêmica foram feitas na área de ciências humanas, com profissionais de sociologia e educação, por exemplo. Nestas áreas, o racismo institucional se apresenta na falta de reconhecimento da instituição sobre a validade científica de discutir temas como gênero e raça, disse ela a Gênero e Número.

Isso se apresentaria em certa dificuldade de acesso às bolsas, como as de iniciação científica, concedidas a grupos de pesquisa formados por estudantes e pesquisadores que desenvolvam temas “relevantes” para a comunidade científica. “A questão [de gênero ou raça] não passa com facilidade como um projeto. Então essas mulheres mudam o tema ou têm seus projetos rejeitados por muitos anos seguidos.”

Joselina da Silva redigiu artigo sobre presença de doutoras negras na docência do país em 2009. Foto: Youtube Secult/ FE-UFRJ

A rejeição ou a mudança de linha de pesquisa resulta em menos professores e professoras prontos para acolher alunos que queiram discutir raça na academia, e dificulta a ascensão desses alunos. “Se elas não têm as bolsas de iniciação científica, há um problema para os alunos negros que conseguem entrar na universidade por meio das cotas, mas têm dificuldade de terem acesso a essas bolsas. Outros professores, que trabalham com outros temas, muitas vezes não querem receber esses alunos”, analisa.

Ainda segundo Silva, essa situação culmina com frequência na sobrecarga de professores. O baixo número de docentes que pesquisam questões de raça faz com que muitos alunos busquem a orientação com um professor de outro programa, seja como co-orientador ou “extraoficialmente”, para que não seja necessário trocar o tema do estudo. Caso a orientação não seja registrada, como acontece na maioria dos casos pesquisados pela cientista social, ela não é contabilizada no currículo da docente. Hoje, a professora faz parte também deste cenário e soma 10 orientandos entre os dois programas em que leciona.

Ela explica que uma das etapas da maioria dos concursos de docência para programas de pós-graduação inclui a etapa de análise de currículo, e o impacto na produção se reflete neste quarto ponto. Currículos pontuam mais caso tenham um número relevante de publicações em periódicos bem qualificados pela Capes. Levar às melhores publicações as questões relacionadas a gênero e raça, diz Silva, também é tão difícil quanto alcançar uma bolsa de iniciação científica. “Com exceções, quem analisa ainda são pessoas com cabeças conservadoras, do ponto de vista de entender que este é um tema importante”, afirma.

Além das Ciências Humanas

Nicéa Quintino, doutora em Ciências pelo Instituto de Química da USP (Universidade de São Paulo), diz ter observado ao longo de sua trajetória uma necessidade de afirmação constante perante os colegas. “As nossas ações normalmente têm de ser com uma qualidade muito grande, e isso causa estresse físico e psicológico maior às mulheres negras”, afirma ela, atualmente orientadora no programa de pós-graduação de Química e de Ensino em Ciências e Matemática da UFU (Universidade Federal de Uberlândia). A qualidade, diz Quintino, parte sempre do referencial daquele que é maioria nos espaços acadêmicos: o homem branco.

Mesmo depois de nove anos na docência, sendo cinco na pós-graduação, Quintino afirma que “as coisas não se amenizam”, e destaca uma maneira utilizada por ela para enfrentar o racismo: “a gente trabalha e produz tanto que as pessoas não conseguem ter outro comportamento. É meio por imposição mesmo”.

Veja também: Gênero e raça na ciência brasileira

A presença de mulheres, e mulheres pretas, nas áreas de ciências exatas ou engenharias é baixa quando comparada à presença de homens. Na relação do CNPq, por exemplo, mulheres são 35% do total de bolsistas que receberam para pesquisar nas áreas de Ciências Exatas e da Terra ou de Engenharia. Entre essas, as pretas são 4% e as pardas são 22%.

Para Quintino, é importante olhar para o topo da carreira acadêmica, mas principalmente fomentar a participação de jovens estudantes nessas áreas, incentivando a produção científica e instigando a curiosidade em relação ao tema.

“O corte começa muito antes da pessoa ser professora universitária. As meninas vão ser sempre barradas por discursos de ódio e ofensivos que dizem que elas não são capazes, ou não são suficientemente inteligentes. É a intersecção do racismo e do sexismo atuando na formação”, afirma.

Políticas de acesso, mas não de permanência

A partir da sua experiência, Solange Rocha, da UFPB, analisa que um dos caminhos para romper com o racismo institucional é a inserção do tema no cotidiano do corpo discente. Na universidade em que leciona, a discussão está posta, segundo a professora, a partir das políticas de acesso —  “mas não de permanência”, ressalta — e disciplinas e aulas públicas que discutem raça e efeitos do racismo.

Solange Rocha coordena programa de pós-graduação na Universidade Federal da Paraíba. Foto: TV Assembleia PB

Maria Simone Euclides, doutora em Educação pela UFC (Universidade Federal do Ceará) e professora da UFPI (Universidade Federal do Piauí), teve como tema de sua tese “Mulheres negras, doutoras e professoras universitárias: desafios e conquistas”. Ela destacou que o racismo estético foi um ponto presente mais de uma vez durante as pesquisas qualitativas realizadas para a conclusão do doutorado, e se manifesta principalmente quando “estudantes se assustam com a nova professora ser negra, porque na visão geral não é o padrão para um docente universitário”.

O impacto do racismo na trajetória dos docentes também é apontado por Euclides na deslegitimação da fala – “se outra pessoa falar a mesma coisa mas for um homem branco, tem outro peso” – e na “luta solitária” para implantar ações que debatam o tema dentro das universidades. “A academia adoece, há racismo nessa solidão de ser sempre um professor ou dois para falar sobre o tema, para propor [ações] e dizerem que racismo que não é problema. Você está sempre gritando sozinha.”

Cotas como solução

A professora doutora da UFPB aponta que um dos caminhos para reduzir a diferença entre negros e brancos na docência da pós-graduação é a fiscalização do cumprimento das políticas públicas já existentes. “Quem compõe os três Poderes não está convencido sobre a existência do racismo, e nem o reconhece. Sem reconhecimento não há enfrentamento. A legislação existe, mas precisa ser efetiva”, opina.

Joselina da Silva, por sua vez, afirma a necessidade da criação de uma política específica que garanta cotas no acesso à docência dos cursos de mestrado e doutorado. Ela destaca que a cota de ingresso na docência não é suficiente, já que não significa ascensão à pós-graduação.

A lei 12.990, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff em 2014, reserva aos cidadãos autodeclarados negros (pretos e pardos) 20% das vagas em concursos públicos que tenham três ou mais vagas. Na ausência de pessoas negras que cumpram o requisito de cotas e tenham sido aprovadas, “as vagas remanescentes serão revertidas para a ampla concorrência e serão preenchidas pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação”, diz a lei.

Mas segundo relatos das professoras ouvidas pela Gênero e Número, o número de vagas para docentes com doutorado poucas vezes chega a três por concurso. E é o título de doutor que garante a ascensão dos professores dentro das instituições de ensino e pode alçá-los a uma das cadeiras de docentes da pós-graduação.

Nem parece que é no Brasil

Três Estados do Brasil não têm nenhuma professora doutora preta que lecione nos cursos de pós-graduação, segundo o último Censo da Educação Superior: Acre, Amapá e Sergipe, que no total têm seis instituições de ensino superior públicas com pós-graduação stricto sensu. São Paulo, Estado mais populoso do Brasil, com 21% da população nacional, é o que tem maior número de professoras doutoras pretas; só na USP são 48. Bahia e Rio de Janeiro também têm alto número de professoras na distribuição, principalmente quando a comparação é feita com um dos sete Estados que têm somente uma docente preta na pós-graduação.

Nicéa Quintino opina, a partir de sua trajetória, que o eurocentrismo presente na academia brasileira corrobora para a baixa representatividade preta na docência da pós. “A academia se pauta não pela expansão, mas pela exclusão. Ela se pauta na produção de conhecimento eurocêntrico, então quando você chega ali, vai disputar possibilidades. É sempre uma disputa.”

*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número

Veja também: Sem considerar maternidade, ciência brasileira ainda penaliza mulheres

Mais sobre Ciência: https://www.generonumero.media/edicao-10/

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Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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