Indígenas de várias etnias acompanham em frente ao STF a possivel votação do chamado Marco temporal indígena

Marco temporal pode colocar em risco 133 terras indígenas que ainda não foram demarcadas

Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia mostra que, entre 2016 e 2020, houve aumento de 55% de propriedades rurais particulares em territórios indígenas na região; pesquisadora diz que este dado indica uma “sinalização federal para perseguir povos indígenas”

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Desde o fim de agosto, Brasília vive um clima de tensão entre grupos indígenas e articulações ruralistas devido ao julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) pela defesa da tese do marco temporal, que põe em jogo a legitimidade da ocupação de povos indígenas em seus territórios, uma vez que pretende limitar a demarcação de terras indígenas às áreas ocupadas no momento da promulgação da Constituição de 1988. 

De acordo com levantamento da Gênero e Número a partir de dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), atualmente há 133 terras indígenas com processo de demarcação em andamento, que podem ser afetados se o marco temporal for aprovado pelo STF. A decisão ainda pode atingir territórios já homologados (há oito nesta situação ) ou demarcados, caso haja provas de que foram ocupados em período posterior à promulgação da Constituição.

A Constituição de 1988 foi fundamental por reconhecer, no artigo 231, “direitos originários” do povo indígena, incluindo terras que tradicionalmente ocupam. No entanto, a tese do marco temporal começou a aparecer, principalmente, em processos relacionados à reivindicação de povos indígenas a terras originárias, mas que estavam sob constante disputa de grupos não-indígenas. Nesses casos, o marco temporal favoreceu e prejudicou povos indígenas em diversos momentos.

“Em alguns casos, como a terra indígena de Marãiwatsédé [no Mato Grosso], os indígenas tinham sido removidos de seus territórios e não estavam lá em 5 de outubro de 1988. E isso fere a Constituição duas vezes, pois não há um “marco temporal”, e sim o entendimento de que os indígenas têm direito originário de ocupar seus territórios ancestrais”, explica Martha Fellows, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM)”.

Independentemente da insegurança jurídica que a aprovação do marco temporal pode suscitar, territórios indígenas já enfrentam diversas ameaças, agravadas nos últimos dois anos principalmente devido a projetos de lei que buscam flexibilizar ocupações irregulares em territórios indígenas.

Mapeamento dos territórios indígenas no Brasil

133 terras indígenas estão em processo de demarcação, sendo 125 ainda não homologadas

125

terras

em estudo

Delimitadas

Declaradas

07

46

72

501

terras

homologadas

Regularizadas

encaminhadas ri*

8

434

18

*reservas indígenas que não entram no processo de demarcação

fonte Geodatabase da Funai(2021)

Mapeamento dos territórios indígenas no Brasil

133 terras indígenas estão em processo de demarcação, sendo 125 ainda não homologadas

125

terras

501

terras

em estudo

Delimitadas

Declaradas

homologadas

Regularizadas

encaminhadas ri*

07

46

72

8

434

18

*reservas indígenas que não entram no processo de demarcação

fonte Geodatabase da Funai(2021)

Um exemplo é o PL 510, ainda em trâmite e que busca flexibilizar a grilagem, que acontece quando há falsificação de documentos para, ilegalmente, tomar posse de terras. Em nota técnica divulgada no primeiro semestre deste ano, o IPAM traçou um panorama de territórios indígenas que já enfrentam a sobreposição de Cadastros Ambientais Rurais (CARs). Isso significa a presença de propriedades rurais particulares em territórios indígenas. De acordo com o órgão, houve um aumento de 55% de CARs entre 2016 e 2020 em terras indígenas da Amazônia, região que concentra 27% de todos os Cadastros Ambientais Rurais do país em terras indígenas regularizadas. 

Para Fellows, este dado reflete um contexto em que proprietários rurais recebem sinalização federal para perseguir povos indígenas. No entanto, ela afirma, este movimento não é de hoje.

 

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“Esse período em que vivemos é muito crítico, mas não é novidade. Povos indígenas estão em conflito com povos não-indígenas há muito tempo, e isso está diretamente relacionado a uma falta de entendimento sobre questões culturais e à interpretação de governos passados sobre a ocupação do território, em que há incentivo para que pessoas se desloquem a regiões que não são originárias em nome do progresso e, assim, acabam ameaçando a soberania desses povos indígenas”, explica.

Terras indígenas ocupadas de forma irregular por propriedades rurais na região Amazônica

Em cinco anos, sobreposição de registros no Cadastro Ambiental Rural (CAR) aumentou 55% em territórios indígenas

600 hectares (ha)

a forma externa representa a área

da terra indígena

100

textura representa a área sobreposta pelo CAR

a cor indica a etapa do processo

em estudo

Delimitadas

Declaradas

Homologadas

Regularizadas

terra indígena sobreposta pelo car

94%

79%

63%

55%

135ha total de TI

114ha

231ha

138ha

Ituna/ltatá

pa

riozinho

am

manoki

mt

seruini/ mariene

am

43%

17%

15%

29%

176ha

284ha

177ha

110ha

Apiaká do Pontal Isolados

mt

Kawahiva

do Rio Pardo

mt

kayabi

mt | pa

cachoeira seca

pa

12%

14%

545ha

130ha

nhamundá/ mapuera

am | pa

trombetas/ mapuera

am | pa | rr

fonte IPAM, a partir de dados do SICAR/SFB, do INPE e da Funai

Terras indígenas ocupadas de forma irregular por propriedades rurais na região Amazônica

Em cinco anos, sobreposição de registros no Cadastro Ambiental Rural (CAR) aumentou 55% em territórios indígenas

a forma externa representa a área

da terra indígena

600 ha

100

textura representa a área sobreposta pelo CAR

a cor indica a etapa do processo

em estudo

Delimitadas

Declaradas

Homologadas

Regularizadas

terra indígena sobreposta pelo car

94%

135ha total de TI

Ituna/ltatá

pa

79%

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seruini/ mariene

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riozinho

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138ha

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43%

176ha

Kawahiva

do Rio Pardo

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29%

284ha

Apiaká do Pontal Isolados

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17%

177ha

kayabi

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cachoeira seca

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14%

545ha

trombetas/ mapuera

am | pa | rr

12%

130ha

nhamundá/ mapuera

am | pa

fonte IPAM, a partir de

dados do SICAR/SFB,

do INPE e da Funai

O julgamento do marco temporal começou no dia 26 de agosto, foi adiado duas vezes e retomado na tarde de ontem (9), com o posicionamento  do relator Edson Fachin, que é contrário a esta tese. O Supremo suspendeu a sessão mais uma vez, e o assunto só voltará a ser discutido na semana que vem, com o voto do ministro Nunes Marques.

Mulheres indígenas na liderança

No acampamento “Luta pela Vida”, 1,2 mil indígenas, de diversas regiões do país, estão reunidos para acompanhar o julgamento. A mobilização ganhou reforço esta semana, com a chegada das participantes da 2ª Marcha das Mulheres Indígenas.

No feriado da Independência, enquanto apoiadores do governo Bolsonaro e grupos de oposição atraíam os holofotes, cerca de 4 mil mulheres indígenas, de pouco mais de 150 povos e de todos os biomas brasileiros, iniciaram o evento em Brasília, que neste ano tem como tema “Mulheres originárias: Reflorestando mentes para a cura da Terra”, e é organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga). 

Da etnia Karajá, Aryele, de 24 anos, é uma das lideranças presentes.  Segundo ela, na tradição cultural, a liderança ainda não é um lugar comum para as mulheres. Por isso, o contato com pioneiras na luta indígena contribuiu para que pudesse conquistar seu próprio lugar como líder; além disso, diz, a Marcha reforça novos posicionamentos de luta.

 

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“É nossa primeira vez na Marcha e está sendo um momento importante para que nossas mulheres se enxerguem naquelas de outras etnias e vejam que é necessário a gente estar à frente das lutas”, reconhece.

Aryele também destaca que a demarcação das terras tem um efeito direto na vida das mulheres, que já enfrentam diversas situações de violência provocadas por grupos não-indígenas que disputam o território.

“Mulheres indígenas já são historicamente agredidas de todas as formas, e a presença de homens não-indígenas no nosso território só reforça a insegurança e a sensação de que eles podem cometer qualquer crime aos nossos corpos”, critica.

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A Marcha começou no dia 7 e termina amanhã (11), e conta com uma programação repleta de debates, celebrações e trocas de experiências, além da marcha tradicional, que deveria acontecer ontem (9), mas só aconteceu nesta sexta-feira (10).  A presença de manifestantes bolsonaristas gerou insegurança na realização da caminhada de cerca de quatro quilômetros até a Esplanada dos Ministérios, e as lideranças do movimento optaram pelo adiamento por mais um dia.

As ameaças aos direitos indígenas no Governo Bolsonaro

  1. 2019 - PL nº191/2020

    Exploração e mineração em terras indígenas. Está na mesa diretora da Câmara de Deputados para votação

  2. 2019 - Troca de Ministérios

    Parte das funções de fiscalização e controle do Ministério do Meio Ambiente foram transferidas para o Ministério da Agricultura

  3. 2019 - Funai perdeu 23% de seu orçamento em comparação com 2013

    Valor já representava a porção ínfima de 0,02% do orçamento da União
    Fonte: INESC (2020)

  4. 2020 - Ação orçamentária 20UF

    Trata da Regularização, Demarcação e Fiscalização de Terras Indígenas e Proteção dos Povos Indígenas Isolados – tem execução pífia: os valores autorizados caíram 20% entre 2019 e 2020

  5. 2020 - PL 191, de 2020

    Busca regulamentar a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em áreas indígenas, em especial a mineração

  6. 2021 - PL 510 (“PL da Grilagem”)

    Busca regulamentar ocupações irregulares em terras públicas, o que facilitaria o desmatamento ambiental. Em trâmite

  7. 2021 - Projeto de Lei 490/ 2007 - Tese do Marco Temporal

    Determina que são terras indígenas aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988. Em trâmite.

A 1ª edição da Marcha das Mulheres Indígenas, em 2019, reuniu duas mil mulheres de mais de 100 etnias na capital federal sob o  tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”. Para a ativista e mulher indígena Tsitsina Xavante, que não está em Brasília, se a presença política das mulheres indígenas não pode ser lida da mesma forma em todas as etnias, a força feminina na defesa da terra, mesmo quando elas não estão entre as lideranças do seu povo, é um traço comum. Para ela, as mulheres conseguem estar no cerne desta luta mesmo quando não estão visíveis enquanto líderes. 

“Não podemos minimizar outros conhecimentos políticos, precisamos, inclusive, fortalecer o papel dessas mulheres em qualquer contexto. Afinal, está dentro da força de toda mulher a capacidade de viver o processo da terra, do território e do bem-viver. E se nem todas podem estar na Marcha lutando diretamente, as que estão lá podem fazer isso porque há mulheres que estão gritando em seus territórios e em suas aldeias, em apoio a quem está lá”, reforça.

Acesse a base de dados da reportagem aqui

Agnes Sofia Guimarães Cruz

Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Segurança Pública. Já publicou em sites como Agência Pública, Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e também atua como consultora de projetos de pesquisa e orientados por dados. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.

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