91% das mulheres entrevistadas acreditam que a violência doméstica aumentou ou se intensificou durante o isolamento social, segundo pesquisa | Foto: Marcos Santos/USP

Lei Maria da Penha completa 14 anos em meio ao crescimento da violência doméstica na pandemia

Pesquisa da Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista revela que 61% das mulheres que sofreram alguma forma de violência são negras e destaca que a violência psicológica foi o tipo mais recorrente; apesar disso, houve diminuição dos registros de ocorrência durante o isolamento social

Por Vitória Régia da Silva*

  • Aumento da violência e diminuição dos registros

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  • Mudanças ao longo de 14 anos

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Em meio à pandemia causada pela covid-19, a lei Maria da Penha (lei 11.340/06), que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, completa 14 anos nesta sexta-feira, 7 de agosto. A importância de uma legislação que proteja as mulheres aumentou ainda mais desde o início da crise causada pelo novo coronavírus, que obrigou a adoção de medidas de isolamento social. 

A lei, que classifica como violência doméstica e familiar  “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, trouxe avanços e diferenças de perspectivas sobre violência contra a mulher, diz a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e mestranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional na PUC/Rio Amanda Pimentel. Antes dela, segundo a pesquisadora, os casos de violência contra a mulher eram processados e julgados nos Juizados Especiais Criminais e, por isso, considerados como crimes de menor potencial ofensivo. 

“Tem muitos problemas em tratar violência contra a mulher dessa forma, porque o agressor se via livre, e a vítima não era protegida. A legislação não contemplava os direitos da vítima. No entanto, a Lei Maria da Penha passou a tratar esses crimes como de grande potencial ofensivo e tentar trazer reparação para as mulheres. Ela trouxe esse avanço de tratar como crime.”

E a Lei Maria da Penha não poderia ser mais importante neste momento de crescimento nos números de violência contra a mulher. Ana** é uma dessas vítimas. No começo deste ano, um pouco antes de ser decretado o isolamento social, ela viu seu relacionamento tomar uma direção que não esperava. A jovem carioca foi vítima de violência psicológica. Seu namorado começou a controlar o que ela fazia, ter acesso a suas redes sociais e desqualificá-la constantemente. “Era uma violência mais sutil e difícil de perceber, porque não era física, mas me afetava completamente de forma emocional. E no meio de uma quarentena, eu não sabia o que fazer”. Ana decidiu não fazer registro de ocorrência, mas, graças a uma rede de apoio, conseguiu sair do relacionamento e não mantém mais contato com o ex-namorado. 

Assim como Ana, 8,4% das mulheres afirmaram ter sofrido alguma forma de violência no período de isolamento, segundo a pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia” realizada pela Gênero e Número e pela Sempreviva Organização Feminista. Esse percentual aumenta entre as mulheres nas faixas de renda mais baixa: 12% das mulheres com renda familiar de até um salário mínimo afirmam ter sofrido violência. Publicada em 30 de julho, a pesquisa, que entrevistou 2.641 mulheres de todas as regiões do Brasil, traz dados inéditos sobre os efeitos da crise de saúde nas dinâmicas de vida e trabalho das mulheres.

 

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“A violência doméstica na pandemia é um movimento global que aconteceu em quase todos os países que decretaram a quarentena, em razão das medidas restritivas, que, embora sejam necessárias para o combate à doença, trouxeram uma série de problemas para as mulheres. As medidas acabaram por impor uma limitação à locomoção e um convívio muito mais duradouro e hostil da vítima com seu agressor, que na maioria das vezes é o companheiro, namorado e marido”, destaca Amanda Pimentel.

A violência psicológica, ainda minimizada e com dificuldades no campo da punição, foi a mais presente na pesquisa, 90% dos relatos de violência entre as mulheres negras e 96% entre brancas envolviam esse tipo de violência. O controle do que a vítima faz, a desqualificação contínua de sua atuação como mãe e falar mal do seu trabalho doméstico repetidamente foram as ações mais citadas. A pesquisa também mostra como o debate racial dialoga com a violência doméstica, já que 61% das mulheres que sofreram algum tipo de violência durante a pandemia são negras. 

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Sobre a percepção de violência, 91% das mulheres entrevistadas acreditam que a violência doméstica aumentou ou se intensificou durante o período de isolamento social. “A quarentena apenas deu mais visibilidade e potencializou um problema que já existia, em razão das regras restritivas de locomoção. O quadro de violência doméstica dá esse salto, porque devido ao convívio mais próximo, a vítima está muito mais exposta a esse tipo de violação. Além disso, a família inteira está mais exposta a uma série de riscos como desemprego, estresse, crianças em casa. Esses fatores vão se potencializando, tornam mais hostil a convivência e fazem com que os crimes contra a mulher aumentem”, diz Pimentel.

 

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Aumento da violência e diminuição dos registros

No Brasil, os registros mostram que houve um aumento da violência letal contra as mulheres, das chamadas para a Polícia Militar no 190 e das denúncias feitas no Ligue 180. 

O número de feminicídios no Brasil cresceu 22%, segundo a segunda edição da nota técnica Violência doméstica durante a pandemia de covid-19, publicada em maio deste ano pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram 143 mulheres mortas nos 12 estados descritos na pesquisa.

Além disso, as denúncias registradas no Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência do governo federal, cresceram 27% nos meses de março e abril deste ano, em relação ao mesmo período de 2019. No Rio de Janeiro, as chamadas para a Polícia Militar no 190 nos casos de violência doméstica tiveram um aumento de 5% em abril, em relação ao mesmo período do ano passado, segundo a nota técnica. 

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Ao mesmo tempo, houve uma queda no registro de boletins de ocorrência nas delegacias em março e abril deste ano, na comparação com 2019. Os registros de lesão corporal dolosa decorrentes de violência doméstica tiveram uma queda de 25,5%  e os de estupro e estupro de vulnerável, de 28,2%. 

Para a pesquisadora Amanda Pimentel, “o período de isolamento social dificultou o acesso das vítimas às delegacias para registrar a ocorrência. As delegacias especializadas no começo da quarentena não registravam de forma online. Só a partir de abril e maio os estados começaram a tomar medidas nesse sentido, devido a pressão dos movimentos sociais e da sociedade civil”. Ela lembra que países como França e Itália  também tiveram  diminuição no número de ocorrências. “Por outro lado, dados como o de aumento nos feminicídios e nas chamadas do 190 demonstram que só a dificuldade de denúncia impôs esse quadro, porque de fato os casos aumentaram”, completa.

 

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No âmbito federal, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos não investiu e realizou poucas ações de combate a violência contra a mulher durante a pandemia. 

Dos R$ 45 milhões disponibilizados para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos em ações que beneficiem mulheres, população de rua e povos tradicionais durante a covid-19, 2 mil reais foram gastos até 26 de maio, segundo reportagem da Gênero e Número. 

 

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Além disso, também de acordo com levantamento realizado pela Gênero e Número, desde o início da pandemia, em março, até a quarta semana de julho, foram 11 medidas direcionadas para elas, sendo três cartilhas, um portal e aplicativo do Disque 180, parceria com o Twitter para a criação do recurso o recurso #ExisteAjuda e portaria com recomendações para o atendimento de mulheres em situação de violência no Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

“O governo federal não tomou tantas medidas de combate ao enfrentamento da violência doméstica como os governos de outros países. No Brasil, tivemos principalmente a expansão dos canais eletrônicos, enquanto outros países fizeram campanhas e ações mais incisivas, como alugar hotéis para abrigos de mulheres e campanhas de enfrentamento à violência em farmácias e supermercado”, pontua Pimentel.200618_ASSINE_banner

Mudanças ao longo de 14 anos

Ao longo de seus 14 anos, a legislação passou por mudanças, que vão desde o atendimento das mulheres vítimas de violência, que devem ser atendidas, preferencialmente, por policiais e peritos do gênero feminino (lei 13.505/17),  até o entendimento que reconhece a violação da intimidade da mulher como violência doméstica e familiar, além de criminalização do registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual (lei 13.772/18) e a alteração que tipifica o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência ( lei 13.641/18).

A alteração mais recente, em abril deste ano, foi a aprovação da Lei 13.984/20, que estabelece como medidas protetivas de urgência a frequência do agressor a um centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial. No Congresso, outros projetos de lei estão em tramitação, como o projeto de lei 191/2017 que inclui mulheres trans na Lei Maria da Penha.

“A lei veio com o sentido de trazer avanços no registro e na proteção das vítimas. Uma das maiores dificuldades é a resistência dos operadores do direito de compreender essas mudanças. Existe uma percepção antiga e preconceituosa dos profissionais da lei, que vão desde o atendimento até o julgamento. É uma mudança legislativa importante, mas não foi acompanhada de uma mudança cultural e de percepção dos que operam a lei, o que afeta na falta de tratamentos mais humanizados e dados mais transparentes”, explica Pimentel.

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*Vitória Régia é repórter da Gênero e Número

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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