“O resultado da portaria do Ministério da Saúde será o aumento de mortes de mulheres que engravidam vítimas de estupro”

Advogada feminista, Luciana Boiteux afirma que a obrigatoriedade de o médico denunciar a mulher que recorre ao aborto previsto por lei vai acabar afastando essa vítima do serviço de aborto legal; para ela, o momento é de retrocesso e também de luta

A advogada Luciana Boiteux é uma das pessoas que assinou a ação contra a portaria do Ministério da Saúde|Foto: Arquivo pessoal

Na última quinta-feira (24), o Ministério da Saúde  publicou uma nova edição da portaria que altera as regras do aborto legal no país. O novo documento foi editado na véspera do dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgaria a primeira portaria, de 28 de agosto. Por conta disso, o ministro Ricardo Lewandowski retirou a votação da pauta do STF.   

Na nova portaria, não há mais a determinação para que seja oferecida à gestante a opção de ver imagens do feto, através de ultrassonografia, mas foi mantida a obrigatoriedade de a equipe médica comunicar o caso à autoridade policial, independentemente da vontade da vítima de registrar queixa ou identificar o agressor.

Uma das signatárias da ação encaminhada ao STF contra a primeira portaria, a advogada feminista Luciana Boiteux diz que a ameaça ao direito da mulher de recorrer ao aborto seguro, nas situações previstas por lei, continua no novo texto.

Nesta entrevista à Gênero e Número, no Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto, ela conta que o objetivo agora é levar o assunto de volta ao STF e brigar para que a portaria seja anulada: “Se recuaram e retiraram algo que era equiparado à tortura [a ultrassonografia para que a mulher visse a imagem do feto], mantêm a manutenção da obrigatoriedade da violação do sigilo médico. É contra isso que a gente tem que lutar agora”.

 

Confira a entrevista completa.

No Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto, em que ponto estamos na defesa pelos direitos reprodutivos da mulher? 

Independentemente da conjuntura atual, o dia 28 de setembro é um dia de luta. E a gente continua, a cada ano, marcando a importância da pauta. De fato, o momento atual é muito delicado, e nestes momentos de crise, de ondas autoritárias, nós mulheres somos sempre as mais afetadas. A gente vive um retrocesso, mas é nesses momentos que a gente vê como é importante juntar forças e como também o feminismo está cada vez mais popular, cada vez mais amplo. A gente está rompendo a bolha. Todas essas ameaças nos colocam um desafio ainda maior, que é ampliar a luta e poder enfrentar coletivamente, com força e de forma articulada.

A portaria do MS que regula sobre o aborto legal foi reeditada, retirando a necessidade de informar sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, mas mantendo a obrigatoriedade da comunicação do aborto às autoridades. Essa mudança pode ser interpretada como resultado da pressão da sociedade civil?

Para mim, essas mudanças na portaria se relacionam com uma avaliação de que o ministro da Saúde [Eduardo Pazuello] influenciado por Damares [Damares Alves, titular do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] e a turma do ministério foram longe demais e não conseguiram que nem sua própria base sustentasse essa oferta de visualização da ultrassonografia do embrião. Porém, eles estão colocando peso na parte da comunicação obrigatória às autoridades, que também é inconstitucional. Se recuaram e retiraram algo que era equiparado à tortura, mantêm a manutenção da obrigatoriedade da violação do sigilo médico. É contra isso que a gente tem que lutar agora. O movimento feminista e o movimento de mulheres se uniram e vamos ter que continuar fortalecidas para derrubar essa outra parte da portaria.

É possível “salvar” essa portaria?

A gente entende que não e vai insistir no STF por sua anulação. Essa obrigatoriedade da ação penal não se sustenta. E é importante explicar o seguinte: o fato de o crime do estupro ser hoje ação penal pública incondicionada [não depende de manifestação prévia de qualquer pessoa para ser iniciada] não significa que os profissionais de saúde estejam obrigados ou autorizados a violar o sigilo médico. Não se pode confundir o setor de assistência, de saúde, o espaço de prestação de serviço do aborto legal com o espaço da delegacia, não se pode misturar os dois espaços. Não só constitucionalmente, do ponto de vista penal, mas também do ponto de vista da política de saúde. A obrigatoriedade do médico denunciar a vítima, o que é ilegal, pois viola o sigilo médico, vai acabar afastando essa vítima do serviço de aborto legal. E a gente sabe que uma vítima de estupro, se ela está decidida a abortar, assim como qualquer mulher, o fato de não buscar o serviço legal não a impede. Mas o que vai acabar acontecendo é que essa vítima de estupro agora, com medo de ser denunciada ou obrigada a comparecer a uma delegacia, pode passar a usar serviços inseguros. E com isso, o resultado dessa portaria do Ministério da  Saúde, que deve ser repudiada, será o aumento de mortes de mulheres e meninas que engravidam vítimas de estupro. 

 

[+] Leia também: Aborto legal em risco: médico “pró-vida” chega ao MS e pesquisa mostra despreparo de residentes

aspa

Não se pode confundir o setor de assistência, de saúde, com o espaço da delegacia. A obrigatoriedade do médico denunciar a vítima, o que é ilegal, pois viola o sigilo médico, vai acabar afastando essa vítima do serviço de aborto legal  

Quais os próximos passos para que o assunto volte a ser pautado no Supremo Tribunal Federal? 

Os próximos passos serão justamente a nossa manifestação, já que o ministro relator [Ricardo Lewandowski] retirou [a votação] de pauta e abriu vista para manifestação dos autores da ação. A gente vai fazer um aditamento [complemento], ressalvando que o ponto que a gente já estava questionando lá atrás, dessa suposta obrigatoriedade do profissional de saúde em relação ao crime do qual a mulher foi vítima, ainda é mantido. E a gente vai, neste mesmo âmbito, também pedir que o processo volte à pauta o mais rapidamente possível.

Ainda podemos esperar do atual governo mais medidas no sentido de restringir o direito ao aborto legal?

Minha avaliação é que desse governo a gente pode esperar tudo. Ter Bolsonaro [o presidente Jair Bolsonaro] e Damares no poder nos coloca numa eterna ameaça aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Mas vejo também uma sinalização neste momento de que eles foram longe demais na forma como lidaram com o caso da menina do Espírito Santo estuprada aos 10 anos. O feminismo e o movimento de mulheres estão se colocando de uma forma organizada, temos as frentes estaduais e a frente nacional, e acho que o desafio nessa conjuntura vai ser enfrentar esse conservadorismo de frente e mobilizar mulheres contra essa política.

 

[+] Leia também: Os impactos físicos e biológicos de uma gravidez na infância

Você acha que a tendência é que essas pautas caras aos setores conservadores do governo sejam cada vez mais levadas ao Judiciário?

Sim. O Judiciário tem sido ainda um espaço no qual a gente tem visto abertura para um debate ponderado, proporcional e humanitário. A gente não consegue garantir efetivamente o acesso nem aos direitos previstos em lei tendo um Poder Executivo nas mãos desse governo. As ameaças ao aborto legal, e também toda essa organização liderada por Damares, que é um grupo extremamente fundamentalista, querem nos fazer retroceder nos direitos conquistados. Nos cabe a resistência, mas eu sou uma pessoa otimista, acho que 28 de setembro é um dia para marcar as lutas, mostrar nossa posição, juntar cada vez mais mulheres. O feminismo vai ser essa força da resistência, não só às ameaças aos nossos direitos sexuais e reprodutivos, mas ao fascismo e ao autoritarismo.

Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.

Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.

Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.

A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.

Quero apoiar ver mais