Em livro, Bruna Pereira analisa violências (sexuais e afetivas) invisíveis contra mulheres negras

Autora do livro “Dengos e zangas das mulheres-moringa: vivências afetivo-sexuais de mulheres negras”, a socióloga  Bruna Cristina Jaquetto Pereira afirma que a luta pelos direitos das mulheres não pode considerar as emoções, os afetos e os desejos das mulheres negras uma questão menor

Por Vitória Régia da Silva*

Sexualidade, afeto e emoções são assuntos vistos, muitas vezes, como secundários quando falamos de direito das mulheres, mas o livro “Dengos e zangas das mulheres-moringa: vivências afetivo-sexuais de mulheres negras”, da socióloga e professora substituta na Universidade de Brasília (UnB) Bruna Cristina Jaquetto Pereira, mostra que esse olhar é equivocado. O livro é uma versão atualizada da tese de doutorado defendida por Pereira em 2019. 

A obra, que trata das vivências afetivo-sexuais de mulheres negras, está disponível gratuitamente em pdf, e a versão física está à venda. No dia 22 de janeiro, a autora fará um evento de lançamento do livro, que contará também com a presença da ex-ministra e  professora Nilma Lino Gomes, e mediação da escritora e pesquisadora Winnie Bueno. 

Em entrevista à Gênero e Número, a socióloga explica como o olhar sobre gênero e raça, e não apenas gênero, revela uma trajetória afetivo-sexual singular para as mulheres negras: “A interseccionalidade de gênero e raça na perspectiva das mulheres negras estabelece formas de se ver no mundo, colocam as mulheres negras como adequadas para relacionamentos que são ainda menos igualitários e as colocam em situações de exploração”. 

Leia a entrevista:

Como surgiu a motivação para a pesquisa sobre vivências afetivo-sexuais de mulheres negras? 

A principal motivação veio do meu trabalho de mestrado, em que pesquisei violência doméstica contra mulheres negras, com foco nas dinâmicas de violência.  Durante a pesquisa, eu percebi que algumas dessas dinâmicas de violência não eram contempladas pela legislação e, muitas vezes, nem conseguimos nomear. Por exemplo, a última mulher que entrevistei na dissertação falava que o parceiro não pegava na mão dela em público. Isso é um tipo de humilhação, mas não é algo para o qual temos um nome ou que é contemplado como violência contra mulher. Isso me instigou a pensar sobre essas vivências afetivo-sexuais. E a partir disso comecei a investigar o que vem antes dessa violência, as trajetórias afetivas e os relacionamentos das mulheres negras.

 

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Como a interseccionalidade entre gênero e raça define as trajetórias afetivo-sexuais das mulheres negras na sociedade brasileira?

O que eu trouxe na pesquisa e no livro é que não podemos tratar gênero e raça em separado porque as mulheres negras não vivenciam isso dessa forma. Por isso,  precisamos olhar para essas identidades juntas, entendendo o que amarra gênero e raça. Na pesquisa, são três fatores: estética, sexualidade e moralidade sexual. 

A estética tem um papel importante para as mulheres, porque elas protagonizam a beleza. Ao mesmo tempo,  a negritude é entendida no nosso imaginário como relacionada ao feio e como se fosse um ponto negativo. As mulheres negras, mesmo que sejam consideradas bonitas, como Taís Araújo e Sheron Menezzes, não recebem o mesmo tipo de atenção que a Marina Ruy Barbosa e a Grazi Massafera. É como se elas fossem bonitas, porém negras. É como se não fôssemos mulheres de uma forma integral. Isso tem impacto em como nós mulheres negras aprendemos a nos ver ao longo da vida. Essa questão da estética também impacta na área afetiva e como aprendemos nosso lugar na sociedade brasileira. 

A sexualidade é diferente, porque isso vai aparecer como atrativo. As mulheres negras estão ligadas à ideia de que têm um corpo diferente e que são mais sexuais. O que é uma construção do imaginário racista. Isso não é uma vantagem, algumas autoras chegam a dizer isso, mas as mulheres negras não são mais valorizadas no mercado afetivo. É um tipo de capital que está associado ao racismo, que favorece certos lugares como o de ser amante, mas desfavorece outro como ser esposa ou alguém adequado para um relacionamento legítimo.

No livro, trato como a interseccionalidade de gênero e raça na perspectiva das mulheres negras estabelece formas de se ver no mundo, colocam as mulheres negras como adequadas para relacionamentos que são ainda menos igualitários e as colocam em situações de exploração.

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O relacionamento afrocentrado vem de uma ideia contrária a esse ideal branco e às políticas de embranquecimento da população brasileira. Nele, existe a possibilidade  de encontrar no relacionamento entre pessoas negras um espaço de encontro, de falar sobre experiências em comum e de partilha

Uma das entrevistadas destaca que o tratamento não é igual para mulheres brancas e negras, e a noção da fragilidade feminina é reservada a brancas dentro dos papéis de gênero. Como isso impacta a visão social das mulheres negras e seus relacionamentos?

As mulheres negras são vistas como mais fortes, mais capazes de aguentar, inclusive fisicamente, a dor. Essa é uma visão que me preocupa muito como alguém que estudou violência. Na sua fala, essa entrevistada, que é uma mulher negra, retinta e gorda, trata de como nunca teve um namorado que a assumisse. O que mostra que os relacionamentos com mulheres negras, principalmente retintas, tendem a acontecer atrás das cortinas, nos bastidores, ao passo que com mulheres brancas são relacionamentos mais facilmente públicos, “visíveis no palco central da vida”, como disse outra entrevistada.

Essas mulheres, por não apresentarem um corpo padrão, não deveriam ser um objeto de interesse socialmente. Porém, ao mesmo tempo em que a sociedade proíbe esse desejo pelas mulheres negras, ocorre uma erotização do objeto de proibição. Por isso, os corpos de mulheres negras, gordas e retintas se tornam um fetiche, um lugar que serve para expressão de uma violência.

Quando se relacionam com mulheres negras, homens brancos e negros acham que podem tratá-las sem nenhum tipo de carinho, afeto ou cuidado. Essa violência está fortemente inscrita nas relações com mulheres negras, enquanto o tratamento dado às mulheres brancas deveria ser o da atenção e da delicadeza.

Qual a diferença que percebeu na análise de relacionamentos inter-raciais, principalmente entre mulheres negras e homens brancos e relacionamentos afrocentrados?

O relacionamento inter-racial tende a sofrer todo o tipo de incômodo de outras pessoas. Mesmo que não seja uma questão para o parceiro ou parceira branca, lidar com a família e terceiros geralmente indica uma falta de adequação das pessoas ao relacionamento, isso quando não ocorre uma objeção aberta e perseguição da família branca. Na pesquisa, trato de uma questão chamada “troca de status”, que é a reunião de homens negros de classe média com mulheres brancas pobres, em que as mulheres brancas beneficiavam os homens com sua branquitude e elas se beneficiavam pela condição financeira deles. Era uma moeda de troca.

 

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Identifiquei isso também nos relacionamentos inter-raciais com mulheres negras, não só da expectativa do dinheiro, mas na questão da exploração, que é muito frequente. Também estava presente uma expectativa de beleza, cuidado, como se fosse uma compensação pela negritude da mulher nos relacionamentos inter- raciais. E também essa atração pela  mulhere negra (em certa medida por parte dos homens negros) de que teriam algo sexual diferente. É importante destacar que o relacionamento inter-racial não acaba com a ideia de que somos racialmente diferentes, ele pode inclusive  se apoiar nessa ideia de que somos diferentes e estou buscando em você essa diferença sexual. 

Já o relacionamento afrocentrado vem de uma ideia contrária a esse ideal branco e às políticas de embranquecimento da população brasileira. Nele, existe a possibilidade  de encontrar no relacionamento entre pessoas negras um espaço de encontro, de falar sobre experiências em comum e de partilha. No entanto, também tem uma série de questões que atravessam relacionamentos de pessoas negras. Uma questão frequente que aparece na pesquisa  é a classe social, como essa diferença entre casais da mesma raça e de gênero pode gerar desentendimentos e desequilíbrio no relacionamento. O relacionamento afrocentrado não significa a resolução de todos os problemas; essa é uma construção e uma meta, mas não está intrínseco a ele.

Essa diferença se manteria no caso de casais do mesmo gênero?

Não da mesma forma. A sociedade brasileira tem um imaginário social forte de mulheres negras se relacionando com homens brancos, relativo a essa questão da sexualidade e do estereótipo da “mulata”. O mesmo não acontece com um casal de mulheres ou de homens inter-racial. Na minha pesquisa, percebi que algumas dinâmicas de desigualdade e exploração racial estão presentes nos relacionamentos homoafetivos, mas encontrei de uma forma mais atenuada do que em casais heterosexuais. 

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Está acontecendo uma tentativa de expandir essas opções, mulheres começando a definir por si mesmas sua vida sexual, rompendo com o histórico familiar e  se relacionando com seu corpo de outra forma. A situação é difícil, mas temos uma resistência sendo construída 

A fetichização da mulher negra e  a exotificação do seu corpo foram algo presente entre casais homoafetivos, enquanto a questão familiar tendia a se relacionar mais à não aceitação da sexualidade da filha e não à raça da parceira, por exemplo. Esse tipo de relacionamento tem muitas camadas e não é exatamente igual a dos casais heterossexuais.

Como você aborda no livro, a expressão “solidão da mulher negra” tem sido bastante utilizada dentro da Academia e pela militância negra para designar o abandono, desprezo e sofrimento experimentados pelas mulheres negras no âmbito afetivo. Como essa solidão impacta a autopercepção e as trajetórias afetivos-sexuais dessas mulheres?

Impacta muito. Na nossa sociedade, uma mulher estar em um relacionamento é uma prova de feminilidade. A mulher que é solteira é vista como encalhada e um problema. Construir um relacionamento estável é geralmente uma meta de vida das mulheres. A partir do momento que elas não conseguem fazer isso, pode resultar em uma baixa auto-estima, como se algo estivesse faltando na sua vida.

Isso pode levar ao medo de sair de relacionamentos violentos, a “aceitação” de certos comportamentos de companheiros para não ficarem sozinhas. E os parceiros jogam com isso para explorar e violentar essas mulheres. 

Essa mentalidade do ”é o que tem para hoje, não vou pedir muito, nem reclamar, porque não vou achar nada melhor” mostra essa falta de possibilidades para as mulheres negras e faz com que elas tomem suas decisões baseadas nisso. Elas têm poucas possibilidades,  vemos que é um roteiro que vai se repetindo. Mas uma coisa que me surpreendeu: está acontecendo uma tentativa de expandir essas opções, mulheres começando a definir por si mesmas sua vida sexual, rompendo com o histórico familiar e  se relacionando com seu corpo de outra forma. A situação é difícil, mas temos uma resistência sendo construída.

 

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Por que as demandas relacionadas a emoções, afetos e desejos das mulheres negras ainda são consideradas secundárias na nossa sociedade?

Há uma mudança mundial nesse sentido. Desde a década de 1960, os movimentos sociais vêm demandando outras formas de vivência e direitos que não são só questões materiais. Claro que ainda existe uma diferença de como a gente entende as questões políticas e as questões emocionais e afetivas, que são vistas como questões da esfera privada, menores e relacionadas somente às mulheres. A política é superimportante, mas quando pensamos na questão da afetividade e sexualidade no Brasil, ela é central para ensinarmos como é construída nossa ideia de raça e negritude, que passa por essa ideia das pessoas negras como hipersexualizadas, por exemplo. 

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O movimento de aceitação do cabelo crespo e cacheado também tem um papel importante nesse sentido de trazer uma mudança da relação das mulheres negras com elas mesmas e  a forma como podemos vê-las

Quando dizemos que isso não é importante, estamos colocando uma questão fundamental para as mulheres negras em segundo plano. Essa pauta é resultado da conquista das mulheres negras de poder falar nos espaços. Nós perdemos muito colocando as emoções, afetos e desejos como uma questão menor e que não é urgente.

Como o discurso antirracista  e o crescimento do debate sobre a valorização da estética negra ajudam na mudança de perspectiva de mulheres negras sobre seu corpo, afeto e sexo? 

A criação de espaços seguros e de protagonismo de mulheres negras é importante para que tenham autonomia e outras possibilidades de visão de si mesmas. Esses espaços nos permitem ver outras possibilidades de existência, faz com que nos vejamos de uma forma mais humanizada. O movimento de aceitação do cabelo crespo e cacheado também tem um papel importante nesse sentido de trazer uma mudança da relação das mulheres negras com elas mesmas e  a forma como podemos vê-las.

Porém, existe uma limitação disso, o que torna essas questões mais complexas. No âmbito afetivo, ainda mais. Porque você pode ser superempoderada e estar em um relacionamento que tem essas dificuldades raciais de gênero. Temos um longo caminho para avançar na construção de levar esses conceitos, vivências e reflexões para toda a sociedade. Espero que as mulheres negras possam ser cada vez mais fortalecidas dentro desses espaços, mas não é uma transformação a curto prazo. 

*Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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