Pela primeira vez, mais mulheres do que homens são eleitas para a Academia Brasileira de Ciências

Entre os 13 novos membros titulares, oito são mulheres. Helena Nader, vice-presidente da Academia, diz que a história da ciência no Brasil mostra que as mulheres estão crescendo como cientistas e e essa mudança ainda não está representada na instituição

A ciência brasileira ainda é um lugar para poucas mulheres. Embora na pandemia o trabalho delas tenham ganho ainda mais relevância e popularidade, no dia a dia, sua presença na academia ou à frente de grandes pesquisas esbarra em uma série de obstáculos, que vão do machismo puro e simples a uma estrutura que penaliza as profissionais que são mães. Por isso, é motivo de comemoração que, neste 11 de fevereiro, Dia Internacional das Mulheres e das Meninas na Ciência, a  Academia Brasileira de Ciências (ABC) tenha anunciado que, pela primeira vez, terá mais mulheres que homens entre novos membros que passarão a integrar o quadro titular de acadêmicos: dos 13 novos titulares, oito são mulheres. 

Ao todo, são 576 membros titulares, sendo 107 mulheres e 469 homens.  As mulheres representam apenas 19% do total, de acordo com levantamento da Gênero e Número com base no site da ABC.

 “É um longo caminho. Vivemos em uma sociedade que determina que certas profissões são masculinas e outras são femininas. Leva tempo quebrar costumes, romper barreiras. Mas não é possível, com o número de mulheres cientistas, ter um percentual tão pequeno como membro da academia”, reconhece Helena Nader, vice-presidente da ABC.

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Nader é apenas a segunda mulher a assumir esse posto na Academia Brasileira de Ciências. A primeira foi a engenheira agrônoma tcheca naturalizada brasileira Johanna Döbereiner, em 1995. Na entrevista abaixo, ela, que é professora na Unifesp desde 1989, com trabalhos na área de glicobiologia que são referência internacional, fala sobre o movimento da ABC para atrair mais mulheres, a importância das cotas nas universidades públicas  e a importância de incentivar meninas a se interessarem pela ciência.

Confira a entrevista completa:

O que levou à eleição, pela primeira vez, de mais mulheres do que homens como novos membros titulares da Academia Brasileira de Ciências?

Eu gostaria de olhar a história porque, senão, você fica com a fotografia de um instante que pode não trazer tudo o que tem sido a movimentação para a inserção cada vez maior da mulher na ciência. Então, ao longo dos anos, a Academia Brasileira de Ciências viu que tinha um percentual muito baixo de mulheres membros titulares. E a diretoria ficou realmente preocupada porque a história da ciência no Brasil mostra que as mulheres estão crescendo como cientistas. Em algumas áreas, elas já são a maioria, em outras, a participação feminina é menor, como por exemplo nas áreas de física, matemática, engenharia, mas está aumentando. Logo, o percentual não estava refletindo o que está acontecendo na sociedade.

Por isso, houve uma busca ativa por indicações de mulheres cientistas. Em comparação a outras academias, até que vinha tendo mulheres, o que não quer dizer que isso justifica, os outros é que estão errados. Tanto na academia brasileira quanto na americana de ciências houve um aumento significativo de mulheres entre seus titulares. E por que isso é importante? Pela diversidade. Sem diversidade, não tem crescimento. Não que a mulher seja melhor ou inferior ao homem. O legal disso tudo é a diversidade de ideias. A mulher não tem que saber de tudo, como o homem não tem que saber de tudo, e o olhar para o país, para a sociedade, são complementares.

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Se você for olhar as Olimpíadas de matemática, tem uma base de muitas meninas ganhando medalha de ouro, depois vai diminuindo. Por que isso? Por que em alguns lugares as meninas vão, em outros não? É incentivo do professor, da família. Essa história de brinquedo de menino, de menina, é deprimente. Já cria um estigma

Eu sou a segunda mulher vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências. Antes de mim havia sido a [engenheira agrônoma tcheca, naturalizada brasileira] Johanna Döbereiner, em 1995. Também é uma coisa a se pensar. As mulheres estão chegando, mas elas chegam aos cargos mais altos de chefia? E isso acontece em todas as áreas.

E com essa busca ativa, muitas mulheres estão sendo localizadas, avaliadas e estão entrando para academia. Isso é sensacional porque nós temos mulheres incríveis em todas as áreas de conhecimento. E que ganharam prêmios internacionais, não só prêmios nacionais. Eu tenho muito orgulho do que está acontecendo na Academia Brasileira de Ciências. Temos que convencer mais mulheres a quererem participar. Na ciência, nós estamos conseguindo mostrar para as meninas que elas são tão capazes como os meninos  ou qualquer gênero. A diversidade é fundamental.

Mas o momento do Brasil não ajuda.

O Brasil estava indo muito bem. Estava crescendo o número de mulheres nas universidades, mas essa pandemia mostrou um retrocesso. A produção científica das mulheres, não só no Brasil, no mundo todo, caiu muito mais que a dos homens. É uma queda significativa. O que significa? Elas voltaram a ser as servidoras, as que organizam tudo sozinhas. Mas então a mulher não pode casar, ter uma família, ter filho? Isso é um absurdo. E é preocupante. 

Outra coisa: com a crise em educação, ciência, tecnologia, inovação, e a falta de recurso, de investimento para realmente fazer uma ciência de alto nível, internacionalmente reconhecida, o que aconteceu? Menos pessoas estão buscando a pós-graduação. E isso é outro absurdo porque a pós-graduação é o esteio da ciência. Mas então você vê os valores das bolsas. A bolsa de mestrado é um pouco maior que o salário mínimo. Isso está levando a um desestímulo. E a gente só vai ver o impacto disso daqui a quatro, cinco, dez anos  porque educação leva tempo.

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Embora tenham sido eleitos para a Academia mais mulheres do que homens, elas  ainda são minoria no quadro geral de membros, são só 19%. Você acha que isso é reflexo das questões de gênero na ciência mesmo? 

É um longo caminho. Vivemos em uma sociedade que determina que certas profissões são masculinas e outras são femininas. Não existe isso, profissão não tem gênero. Mas isso leva um tempo para quebrar. Quando eu entrei na escola de medicina, menina era minoria, hoje é maioria. Então leva tempo quebrar costumes, romper barreiras. Mas não é possível com o número de mulheres cientistas, ter um percentual tão pequeno como membro da academia. 

Nós temos mulheres engenheiras membros da academia. A engenharia não é uma área em que predominam as mulheres. Hoje na área médica é quase 50/50. Então, teoricamente, é mais fácil de localizar. Mas numa área em que mulheres ainda são minoria, ter membros mulheres já é outro impacto. Isso também foi feito em grandes centros e pólos industriais, em que se viu que as mulheres poderiam trazer novas visões, que aumentavam inclusive a produtividade. E a ciência hoje está cada vez mais multidisciplinar e com diferentes enfoques.

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Temos, sim, que ter políticas afirmativas para a pós-graduação. Senão, não vamos mudar. Na universidade pública, a maioria dos docentes ainda são brancos. Isso não reflete a população brasileira. E eu acredito que o sistema de cotas é fundamental para trazer a inclusão necessária para as universidades públicas

A academia fez essa busca ativa, que já citei, para incentivar as mulheres de todas as áreas. E isso cada setor teria que fazer. Eu vejo jovens na política também, espetaculares. E são jovens, trazendo um outro olhar. Mas é um ainda um setor extremamente masculino, na minha visão. E quem perde é o povo brasileiro. Mas como é que se faz para ter mais mulheres? Como a academia fez: “como é que eu levo as pessoas a desejar isso?”

Se você for olhar as Olimpíadas de matemática, tem uma base de muitas meninas ganhando medalha de ouro, depois vai diminuindo. Por que isso? Por que em alguns lugares as meninas vão, em outros não? É incentivo do professor, da família. Essa história de brinquedo de menino, de menina, é deprimente. Já cria um estigma. A sociedade cobra muito o comportamento sem perceber que está fazendo isso.

O que ainda precisa avançar para haver mais protagonismo e reconhecimento das mulheres na ciência brasileira? E como entra a questão racial nisso? No projeto do Open Box, a gente viu como é ainda mais difícil para as mulheres negras estarem nessas posições de reconhecimento.

Olha, o Brasil, eu amo esse país, estou aqui por opção, determinação, mas eu tenho muita vergonha de várias coisas e uma delas é a escravidão, e a negligência em relação às mulheres e homens negros e indígenas. Isso para dizer que nós começamos a olhar para a diversidade agora. Mas a diversidade de raça, então, é ainda mais recente. O acesso à universidade pública brasileira para muitos negros e indígenas oriundos de escola pública é o sistema de cotas. A partir daí é que passou a ter um contingente que é a maioria da sociedade brasileira. E isso começou há menos de 15 anos, o que é pouco tempo. 

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Agora alguns estão chegando na pós-graduação, mas a crise do sistema educacional e científico diminuiu esse fluxo, que é menor do que era há dois, três anos. E nós temos que reverter esse quadro. E temos, sim, que ter políticas afirmativas para a pós-graduação. Senão, não vamos mudar. Na universidade pública brasileira, a maioria dos docentes ainda são brancos. Isso não reflete a população brasileira. E eu acredito que o sistema de cotas é fundamental para trazer a inclusão necessária para as universidades públicas.

Cotas para a pós-graduação, investimento na educação… é isso que é importante para termos mais protagonismo e reconhecimento desses grupos na ciência?

Com certeza. Quando você tem um contingente maior de pessoas, vamos falar das pessoas negras, quando você tem um contingente maior de pessoas negras na universidade, a possibilidade de entrada na carreira universitária vai ser maior. A gente tem que forçar a demanda. Isso é, por exemplo, ação afirmativa via cotas na formação. Não sou estudiosa do assunto, mas tive o privilégio de ser pró-reitora na graduação e ao estudar as cotas, entendi melhor a  segregação educacional. 

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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