“Nossos corpos são pedagógicos”, Maria Clara Araújo, autora de Pedagogias das Travestilidades

A pedagoga, ativista e pesquisadora Maria Clara Araújo fala sobre seu livro Pedagogias das Travestilidades e sobre a importância de conhecer e documentar a história de mulheres trans e travestis no Brasil

Maria Clara Araújo, autora de Pedagogias das Travestilidades | Foto: Divulgação, Arte: Victoria Sacagami

“Não podemos nos esquecer dos passos… dos tantos passos dados para chegar até aqui”. É com essa reverência à história e às que vieram antes de nós que começa o livro “Pedagogia das Travestilidades” (Editora Civilização Brasileira), escrito pela pedagoga, ativista e pesquisadora Maria Clara Araújo.

Mestranda em Sociologia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Araújo foi a primeira da sua família a ingressar no ensino superior, e ainda uma das poucas travestis negras no Brasil a realizar o feito.

Em 2015, quando Araújo estava na graduação, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) não tinha uma política de nome social para pessoas trans, como ela. Foi então que ela publicou em uma rede social o “Meu manifesto pela igualdade: sobre ser travesti e ter sido aprovada em uma universidade federal”, que também faz parte do livro. No texto, ela visibiliza essa vitória, mas também denuncia como o espaço acadêmico ainda exclui esses corpos.

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Eu parto muito do princípio que nossos corpos são pedagógicos. Não tem como eu entrar em um espaço e não haver ali um processo de movimentação. Todos os lugares que o corpo de uma travesti adentra, desde o lugar da dignidade, esse espaço é inquirido a se movimentar. Quando a gente adentra o feminismo, o feminismo é inquirido a se movimentar, quando a gente adentra academia a academia é inquirida a se movimentar”

Em entrevista à Gênero e Número, Maria Clara Araújo fala sobre a importância de conhecer e documentar a história de mulheres trans e travestis e o que temos a aprender com elas na construção histórica como sujeitas de direito e de possíveis novas pedagogias.

Confira a entrevista:

Queria começar perguntando um pouco sobre o que motivou você a escrever o livro, que veio do seu trabalho de conclusão de curso (TCC).

Eu apresentei o Pedagogias das Travestilidades como trabalho de conclusão de curso na PUC/SP, mas ele começa a ser gestado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), especificamente na cátedra Paulo Freire da UFPE. Uma das orelhas foi assinada pela professora Eliete Santiago, que é coordenadora da cátedra Paulo Freire e foi orientanda do Paulo Freire na PUC. Pedagogias, para mim, é um livro acima de tudo freiriano.

Hoje eu apresento o livro como uma leitura, como uma interpretação da história do movimento de travestis e mulheres transexuais. Para fazer essa leitura, eu me muni das ferramentas conceituais da teoria freiriana e de outros autores e autoras, como a bell hooks, que foi quem me introduziu a Paulo Freire. É até engraçado, eu sou de Pernambuco, sou de Recife, mas eu conheci Paulo Freire através de bell hooks – e não o contrário.

Pedagogias tem essa essa questão freiriana muito forte ali, então você vai ver que eu uso muito essa ideia de libertação, de emancipação, de conscientização, que é muito da área da que eu venho enquanto uma pedagoga que sou.

Mas acho que Pedagogias é uma autocrítica também, porque chega um momento que eu sou um pouco crítica ao transfeminismo no livro, porque a gente partiu que aquilo era o início e vamos seguir, vamos tocar, sem olhar muito para o que foi feito antes, para essa trajetória que nos permitiu chegar aonde a gente estava, que era entrando na universidade. Então pedagogias também é a reconstrução de uma história que nos permite aprender e apreender todo esse caminho que nos leva até 2022, quando o livro foi publicado.

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Para mim, a publicação de Pedagogias, a vitória de Duda Salabert e de Érika Hilton para a Câmara Federal, a ocupação das mídias digitais, a presença cada vez mais representativa de pessoas trans na TV aberta, se inscrevem em um momento histórico que é muito único, em que a contribuição de travestis, transexuais e pessoas trans, de modo geral no Brasil, se torna inquestionável, não dá para escamotear mais. Então é isso: Pedagogias é um tributo, uma homenagem. Até agora muito bem recebido pelas mais velhas."

Pedagogias das Travestilidades resgata a história do movimento de mulheres trans e travestis no Brasil | Foto: Divulgaçao

Quando você fala da crítica que você traz ao transfeminismo, não é uma coisa incomum – não só para o transfeminismo, mas para o que a gente chama de feminismo, de forma geral. Qual a importância de mulheres trans e travestis jovens conhecerem essas histórias para entender o movimento do qual elas fazem parte? O que as mais velhas sentem que precisa ser trabalhado e não está sendo olhado com atenção?

Meu momento predileto do livro é o subcapítulo “Os transfeminismos entram em cena”. Isso até foi dito pelas próprias editoras do livro, que disseram: “quando você chega nessa parte você quase não cita ninguém, você vem e , você coloca aqui o que você viveu aqui.

E, de fato, eu tive muitas tensões com as mais velhas no início da minha trajetória. Eu recebi muito puxão de orelha, muitos com razão. Hoje, eu vejo que foi com razão e hoje a gente já tem outra relação e no livro na verdade.

De modo geral, na pouca literatura que a gente tem sobre o movimento de travestis e mulheres transexuais, as pessoas relatam o que realmente estava acontecendo. Existe uma ênfase sobre um desgaste. Na verdade, não é desgaste, é um choque geracional, é dessa maneira como as pessoas descrevem a terceira onda, que é um momento muito difuso. O movimento estava construindo com o governo Lula. As coisas estavam caminhando, óbvio que precisava melhorar, mas as coisas estavam caminhando. No primeiro ano do governo Dilma rola um veto, do Kit Escola sem Homofobia. A relação com o movimento LGBTQIA+ começa já a cair. A teoria queer estava chegando ao Brasil e questionando as relações com o Estado e a maneira como se negocia com esses enquadramentos, com essas formas administrativas de governo dentro do Estado. Então estava tudo muito instável.

O transfeminismo chega muito questionador. Se cria uma tensão nisso, entre essas mais velhas, que estavam construindo há bastante tempo, e dessas mais novas, que – como a gente fala lá em Recife – chegou agora ele quer dar pitaco.

E aqui existe uma literatura que fala sobre essa tensão, esse choque geracional. A opção que eu faço em Pedagogias é de estabelecer uma ponte. E essa ponte já está ocorrendo, já é palpável. Como eu falo no livro, a apropriação pelas ativistas mais velhas do movimento de um léxico acadêmico transfeminista, como cisgeneridade, cissexismo, já demonstra que está ocorrendo o diálogo. Como pedagoga que sou, para mim o conflito é pedagógico. Ele é um instrumento de transformação também, então que esse conflito entre essas gerações, quando construído de maneira dialógica, que ele possa contribuir para o crescimento mútuo. Então no livro eu pontuo que o transfeminismo bebe sim das fontes do movimento para pensar sua prática e sua teoria aqui no Brasil. E o movimento avança a partir dessa produção acadêmica de transfeministas na academia. É uma relação de entroncamento, uma via de mão dupla mesmo: movimento social de base e produção teórica dentro da academia.

Qual é a importância de documentar essa história e fazer essa documentação, inicialmente, dentro do espaço acadêmico e universitário?

O próprio movimento percebeu a necessidade de fazer esse registro. Pedagogias é mais um registro dessa história. Mas a gente tem pouquíssimos ainda. Por exemplo, eu falo sobre a importância dos encontros nacionais de travestis e transexuais no livro, mas temos poucos trabalhos sobre a história do movimento trans na academia.

Os trabalhos que existem foram muitos construídos a partir de história oral, a partir de entrevistas, e não necessariamente a partir de uma revisão de documentos históricos do movimento. Então muita coisa se perdeu. Eu não vou dizer que é a única fonte, mas talvez a principal fonte de registro de como foi a construção do movimento de travestis e de mulheres transexuais no Brasil é a gente.

Olhando para a história do movimento negro, por exemplo, aqui em São Paulo, no Rio, na Bahia, eu vejo que conseguiram preservar mais documentos e registros. No caso do movimento de travestis, isso não ocorreu da mesma maneira. Muita coisa pegou fogo, muita coisa ficou mofada. Enfim, se foi né? E é importante ter esse registro para que nós possamos reconstruir essa história, entender que se uma travesti hoje se forma como doutora, existiu uma trajetória que a permitiu chegar nesse lugar. Não foi simplesmente um ato individual. Isso nos ajuda a sair um pouco da questão do mérito pessoal.

E sobre a questão do espaço acadêmico, eu acho que a nossa contribuição tem sido cada vez mais reconhecida. Falando especificamente de travestilidade, tanto qualitativamente como quantitativamente, a produção de pessoas trans – e não a produção sobre pessoas trans – apenas tem aumentado. E, mesmo aquela produção que é sobre pessoas trans tem sido inquirida: se vai discorrer sobre a nossa experiência, que também assuma a responsabilidade de nos conceber como produtoras de conhecimento. Eu já fui bem mais refratária a isso, hoje eu sou mais dialógica. Mas acho que se você é uma pessoa cis e está discutindo sobre pessoas trans na academia, o mínimo é você citar uma pessoa trans na sua bibliografia e citar estabelecendo um diálogo mesmo, uma troca de conhecimento.

Pedagogias se inscreve nesse movimento mais amplo, contribui para uma literatura que discute sobre a importância dos movimentos sociais e da construção das práticas pedagógicas desses movimentos sociais.

Porque diante de toda transfobia que eu vivenciei na escola, voltar pra escola como professora sempre foi algo que eu questionei muito. Mas o que eu posso fazer para além de ser uma professora na Educação Básica? E aí, através desse estudo dos movimentos sociais, através dessa ideia de uma educação que está para além dos muros das escolas, existem atores e atrizes movimentando práticas pedagógicas.

Quando a gente vai pensar a própria história, a gente faz escolhas. A gente escolhe os grupos que a gente vai trabalhar. Como a história, a trajetória e a luta das mulheres trans e travestis no Brasil está muito ligada ao movimento de mulheres negras, não dá para separar as coisas, e esse espaço territorial também que é o Nordeste, queria que você falasse um pouco dessa relação.

Sim, existem disputas também sobre a própria história do movimento de travestis e mulheres transexuais. Existem disputas porque a gente parte de que esse movimento começa a partir daquilo que se tem registro. Mas o que eu pude perceber, a partir da revisão daquilo que já havia sido escrito, é que 1992, com a criação da ASTRAL (Associação de Travestis e Liberados) foi um momento-chave. A partir da ASTRAL se ramificam outras organizações.

Há registros de experiências anteriores, mas para pesquisadores, levando em consideração que a gente precisa fazer cortes analíticos e escolhas, 1992 é um momento-chave justamente porque a partir da ASTRAL, e a partir do encontro nacional que a ASTRAL constrói, a gente começa a ver outras organizações aparecendo.

E daí eu penso no livro essa noção das teias, que teias começam a se ramificar, se espraiar por todo o território do Brasil. Então esse corte analítico, essas escolhas que eu faço, caminham muito em diálogo com coisas que outros pesquisadores também haviam feito.

Em 2018, quando o [Jair] Bolsonaro venceu [a eleição presidencial] todas nós estávamos destruídas. Eu lembro bem daquele dia. Era uma pessoa chorando de um lado, outra gritando do outro. Mas, por mais duro que aquele dia tenha sido, foi um acalanto, no meio daquele processo, ter vivido a Vitória da Érica Malunguinho [como deputada estadual por São Paulo], da Érika Hilton, como codeputada [estadual por São Paulo] e da Robeyoncé Lima como codeputada [estadual por Pernambuco]. E eu lembro que eu postei no Instagram e no Facebook: “travestis negras movimentando o Brasil”.

E eu me lembro também de uma fala da Angela Davis sobre isso que ela atribui a essa figura da mulher trans negra, dialogando com a identidade que é mais utilizada nos Estados Unidos, como essa essa figura aqui agrega todas as dimensões das dessas lutas emancipatórias. E aí como foi a história do movimento?

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Eu vejo que eram travestis negras que estavam ali, no front, colocando coisa para andar, compreendendo que aquela violência do Estado brasileiro, mesmo após a redemocratização, precisava ser discutida. Que a crescente epidemia de HIV/AIDS precisava de política pública.

Para mim é isso: travestis negras, mulheres trans negras, temos contribuído muito para o avançar das agendas, às vezes para o radicalizar de várias agendas. E esse diálogo com o movimento de mulheres negras, na minha compreensão, é muito mais a partir da terceira onda [feminista], na década de 2010. Na minha própria trajetória, eu tive a passagem pela revista Capitolina, mas foi nas Blogueiras Negras onde eu estabeleci esse meu diálogo cruzado com transfeminismo e feminismo negro. Em 2014, as Blogueiras Negras estavam afirmando que o feminismo negro era absolutamente incompatível com a transfobia e eu acho que foi esse texto que me trouxe ao feminismo negro, que me fez compreender muito da minha própria experiência enquanto uma travesti negra nordestina, e do que implica essa essa identidade, esses marcadores que eu carrego.

Falando não só para mulheres trans e travestis, mas também para as pessoas cis, o que a gente tem a aprender com as pedagogias e a organização das mulheres trans e travestis no Brasil?

Para mim, as pedagogias das travestilidades nos ajudam a compreender as relações sociais das instituições, o autoritarismo, a partir de uma outra perspectiva e até em diálogo. Por exemplo, enquanto eles falam da defesa da família, as travestis sabem que essa ideia de família brasileira nunca existiu, isso é o exemplo mais palpável. Então, eu acho que essas pedagogias das travestilidades nos ajudam a rever muito. Eu vi uma pedagogia da travestilidade sendo exercida na minha frente na mandata Quilombo, a partir da Érica [Malunguinho]. A maneira como a Érica fazia política, pensava política, as relações políticas que ela estabelecia dentro da Assembleia [Legislativa de Pernambuco] me mostravam o que é uma pedagogia da travestilidade, que é outra forma de conceber o processo político, o processo pedagógico desde esse lugar de fala, de enunciação.

As pedagogias das travestilidades nos convidam. Porque eu não escrevi uma pedagogia. Isso é muito importante. No livro, eu não estou propondo uma pedagogia, o que eu estou tentando fazer é reunir, compreender, essas pedagogias que estão sendo escritas, esse conjunto de outras possibilidades político-pedagógicas que são orientadas pelo ponto de vista das travestis e transexuais como educadoras-educandas, que atuam dentro de uma escola, dentro da universidade, que estão atuando no Parlamento, estão atuando na TV aberta, no dia-a-dia, no seu trabalho como advogada. Eu parto muito do princípio que nossos corpos são pedagógicos. Não tem como eu entrar em um espaço e não haver ali um processo de movimentação. Todos os lugares que o corpo de uma travesti adentra, desde o lugar da dignidade, esse espaço é inquirido a se movimentar. Quando a gente adentra o feminismo, o feminismo é inquirido a se movimentar, quando a gente adentra academia a academia é inquirida a se movimentar.

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Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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