
Entre os movimentos populares do Chile que ganharam força nas últimas décadas, mais especificamente desde os anos 90, está o movimento do povo mapuche – que representa cerca de 13% da população e vem lutando pela defesa dos territórios e pelo reconhecimento da identidade. A constituição vigente, de 1980, não reconhece povos indígenas, apenas etnias. É uma disputa árdua pela identidade mapuche e por terra,o que leva a conflitos agrários e à criminalização desse povo por meio de leis antiterrorismo vigentes no país desde o governo Pinochet.
Apesar do histórico de conflitos, a população chilena, em pesquisas realizadas durante as consultas públicas sobre a Constituinte, respondeu de forma muito assertiva que o povo mapuche deve ser reconhecido na nova Constituição. Articulados, os mapuches se mobilizaram e avançaram no processo pré-Constituinte, elegeram uma das suas líderes, Elisa Loncon, como a primeira presidente da Convención Institucional, em 2021, e seguem afirmando protagonismo no dia a dia da construção da nova Carta.
Exigiram que o idioma mapuche pudesse ser considerado nas discussões das sessões e promoveram uma consulta indígena ampla no início deste ano junto aos territórios, para promover maior participação dos povos originários no processo em andamento. A Gênero e Número conversou com a advogada e constituinte mapuche Rosa Catrileo sobre a participação das mulheres mapuche neste momento do país.
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Confira a entrevista a seguir:
Como você avalia a participação mapuche na Constituinte neste momento?
Estamos trabalhando muito. Temos apoio de muitas comunidades e também sabemos que existe uma forte expectativa por parte das nossas comunidades, que são muitas e que acreditam que estamos vivendo um processo que pode dar início à solução de um conflito histórico e político que o povo mapuche tem vivido com o Estado do Chile.
Nós, os constituintes mapuches, temos nossas diferenças nas estratégias políticas para alcançar os nossos direitos nesse espaço, mas também estamos em consenso sobre quais são as demandas que precisamos que estejam nessa construção da Constituição e que possam representar a solução desse conflito. O reconhecimento mapuche já existe, precisamos avançar na conquista dos nossos direitos, do nosso território. Somos também um país mapuche, e isso não divide o Chile, temos que defender a “plurinacionalidade”.
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Nós, mulheres indígenas, temos uma especial relação com nossa terra e também com nossa cultura, portanto, não concebemos um feminismo sem que tenhamos esse pertencimento cultural e à terra considerados a todo o tempo, e entendemos que às vezes esses aspectos não são considerados pelo feminismo branco
Acredita que as reivindicações mapuche estão sendo visibilizadas nos debates, nas comissões, nas sessões?
Sim, e não é um trabalho que começou com o início da Convención Constitucional. Estamos convergindo desde antes para ocupar esse espaço institucional. Mesmo antes do início da constituinte, decidimos por Elisa Loncón como possível candidata à presidência da Convención, pois era muito importante para nós que Elisa pudesse chegar à presidência. Nos permitiu visibilizar as demandas do nosso povo e também reafirmar a capacidade que temos como mulheres indígenas de liderar esse processo, mostrar que estamos preparadas para esse desafio. Foi muito importante esse protagonismo mapuche no início
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Além das mulheres mapuches constituintes, você avalia que há uma participação expressiva das mulheres indígenas dos territórios na constituinte?
Sobre isso, é importante destacar o processo de consulta que acaba de terminar, uma consulta indígena que promovemos como uma obrigação que tinha que ser cumprida pela Convención Constitucional, como órgão que faz parte do Estado. Foi realizada em janeiro e em fevereiro. Fizemos em tempo muito curto, e a participação mais expressiva foi de mulheres. Fizemos essa consulta para termos uma participação efetiva dos povos, para garantir que nossos princípios estão refletidos no trabalho que realizamos aqui na Convención, e tivemos mulheres representantes, dirigentes locais. Existe esse desejo de participação política real, e quando há espaço, ele acontece de fato. É o que podemos constatar até aqui.
Como os movimentos de mulheres indígenas e de feministas brancas estão dialogando neste momento de mudanças políticas no Chile, já que historicamente existe uma distância desses grupos nas suas reivindicações?
A nossa crítica ao feminismo branco é sobre não ser um movimento comunitário sempre, pois nós, mulheres indígenas, temos uma especial relação com nossa terra e também com nossa cultura, portanto, não concebemos um feminismo sem que tenhamos esse pertencimento cultural e à terra considerados a todo o tempo, e entendemos que às vezes esses aspectos não são considerados pelo feminismo branco. Mas isso não significa de forma alguma que não participamos das reivindicações. Temos lutas e demandas em comum e, neste momento, estamos em diálogo, estamos construindo uma Constituição para enfrentar as desigualdades.
Você se considera feminista?
Sim, me considero feminista por ser mulher mapuche. Não poderia não estar consciente da dificuldade que existe e da desigualdade de oportunidade que nós, mulheres indígenas, enfrentamos. É uma barreira tripla: ser mulher, ser indígena e, geralmente, ser pobre. Então é muito complexo para nós todas, e com certeza temos que participar [do movimento] e sermos, nos assumirmos também feministas.
*Giulliana Bianconi é diretora da Gênero e Número