“A descriminalização social do aborto depende do apoio amplo da sociedade”

Maria Lutterbach, diretora de Verde-Esperanza, lançado em setembro, quer percorrer o país promovendo debates que envolvam quem até então não tem conversado sobre aborto.

O filme sobre aborto legal na América Latina já estava em produção quando, em abril deste ano, o então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva declarou que o assunto deveria ser tratado como uma questão de saúde pública. Imediatamente, a patrulha antidireitos tentou reduzir o debate a uma “casca de banana” da corrida eleitoral. Mas não há mais espaço para isso. A América Latina não é mais a mesma de duas ou três eleições atrás. O feminismo  avançou, a conversa sobre aborto foi ampliada, mais países descriminalizaram o aborto nos últimos anos.

Não à toa, naquele momento estávamos nos preparando para filmar na Argentina, na Colômbia e no Brasil o documentário Verde-Esperanza, sobre conquistas nesse campo, sobre as possibilidades de avanço. Quem esteve na direção do filme foi Maria Lutterbach, cofundadora da Gênero e Número e hoje à frente da Filmes da Fonte, produtora que prioriza a colaboração entre mulheres na realização de projetos audiovisuais. Lutterbach já havia dirigido Potência N (sobre mulheres negras na matemática) e Fator F (sobre parentalidade na ciência), produzidos em 2018 pela Gn e distribuídos pelo selo VideoSaúde, da Fundação Fiocruz, além de Curtas Interior (2022) e Corpoterritório (2019), ambos codirigidos com Elisa Mendes e exibidos em festivais nacionais.

Em Verde-Esperanza, a diretora convergiu vozes de lideranças latinas numa narrativa que insere o Brasil nesse mapa da luta pela descriminalização do aborto, mesmo que o país ainda esteja distante da linha da vitória. Mas é possível amadurecer e avançar, como defende Lutterbach nessa entrevista.  

O filme fala sobre direito ao aborto tendo como principal cenário grandes cidades na Argentina, no Brasil e na Colômbia. Não é um filme que se passa em clínica de aborto. Qual a mensagem que você quis passar ao usar as ruas e as praças como cenário ideal para o documentário?

A escolha de apresentar o espaço público das metrópoles quase como personagem onisciente vem da confirmação, trazida no argumento, de que as conquistas recentes na América Latina têm acontecido sobretudo a partir da presença massiva de meninas, mulheres e pessoas que gestam nas ruas, avenidas e praças. São grupos que se manifestam há décadas reivindicando avanços no campo dos direitos reprodutivos e que nunca deixaram de ocupar as ruas para lembrar sobre a urgência desse debate. Nos últimos anos, além de estar presente nas ruas, esse ativismo feminista de países como Argentina e Colômbia tomou também as redes de forma definitiva para garantir as vitórias que o filme registra. 

Verde-Esperanza fala sobre três países latinos que percorreram até aqui caminhos diferentes pela legalização do aborto, e o Brasil é o único entre esses onde o aborto ainda é criminalizado. O documentário pode nos ajudar a sair dessa posição constrangedora? Foi produzido também com esse objetivo?

Como pontua uma das entrevistadas, a Gisele Pereira, da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, ainda que as experiências de cada país sejam singulares, elas nos ensinam que é possível avançar, mesmo em um contexto tão conservador como o que atravessamos hoje na região. O filme inspira porque mostra de forma didática as principais estratégias utilizadas pelas feministas argentinas e colombianas nesses dois caminhos distintos: a apresentação de um projeto de lei pelo Executivo, no caso da Argentina, e levando uma demanda popular à Corte Constitucional, na Colômbia. À medida em que ouvimos as lideranças argentinas e colombianas a respeito da descriminalização do aborto conquistada fica nítido que as vitórias dependeram de um esforço permanente de mobilização não apenas de ativistas, mas de outras frentes da sociedade civil organizada, em especial profissionais da Saúde e do Direito. Nesse sentido, percebemos sim Verde-Esperanza como uma ferramenta que pode colaborar nesse processo de formação gradual de uma massa crítica que vá além dos grupos que historicamente estão no front batalhando pelo direito ao aborto seguro no Brasil.  

Como diretora e também roteirista-chefe do filme, você tem um lugar de observação muito privilegiado nessa obra, além de ter feito uma imersão profunda nos discursos sobre aborto legal na América Latina, por meio das entrevistas. O que você destacaria que precisa ser reproduzido em termos de mensagem e mobilização, a partir do documentário?

Algo que parece simples, mas não é: a disposição das pessoas em falar sobre o aborto no Brasil de forma mais aberta e em todos os espaços possíveis. Esse chamado é feito por outra entrevistada, a Maíra Marques, do projeto Milhas Pela Vida das Mulheres, que diz que o aborto precisa “sair do armário”.  Nós, mulheres, mal falamos desse assunto com nossas próprias amigas, e isso também precisa mudar para derrubar o que resta de estigma. Aborto é questão de saúde pública, como disse o presidente eleito Lula no começo de sua campanha, logo depois tendo que colocar panos quentes sobre a fala, temendo o impacto do tema. Mas é preciso sim falar em todos os espaços porque a mudança na lei e a chamada “descriminalização social” dependem de um apoio amplo da sociedade, e esse apoio só se constrói a partir de informação compartilhada, debates esclarecedores e trabalho coletivo e estratégico. 

Lançamento do documentário no Rio de Janeiro |Foto: Gabrielle Abreu

Quem é, na sua opinião, a audiência obrigatória desse filme?

Especialmente esses grupos citados: médicas/os, advogadas/os, ativistas, além de professoras/es e estudantes. Verde-Esperanza é um documento histórico que localiza em que estágio se encontra a luta pelo aborto seguro e legal no Brasil, ao mesmo tempo em que detalha os principais desafios enfrentados pelas vizinhas e a maneira brilhante como elas construíram argumentos para mobilizar esses agentes da sociedade civil e a opinião pública em seus países, condição fundamental para que as mudanças se concretizassem. 

Verde-Esperanza foi pensado inicialmente para ser um filme de até 20 minutos, mas o documentário em exibição tem mais de 40 minutos, traz entrevistas de lideranças dos movimentos de mulheres nos três países, de profissionais da saúde, dá voz inclusive a homens aliados dessa luta. Esse formato se impôs pelo contexto, por outro aspecto ou foi uma decisão sua, como diretora?

Depois das filmagens na Colômbia e na Argentina ficou claro que a gente tinha em mãos um material muito relevante e que seria praticamente impossível costurar as narrativas dos três países em apenas 20 minutos. A riqueza do material  e a urgência do tema de certa forma impuseram o formato de média-metragem. Houve um desejo de filmar mais algumas sequências no Brasil, em hospitais e clínicas daqui, mas por limitações de tempo e recursos isso não foi possível. Não descartamos a possibilidade de fazer um segundo corte do filme com essas novas captações e estamos no momento em busca de recursos para tentar realizar essa versão de longa-metragem.

Com a derrota do governo Bolsonaro nas urnas, o governo que mais atacou os direitos das mulheres e das pessoas que gestam desde a redemocratização, é possível agora pensar em exibir Verde-Esperanza em espaços e redutos da política institucional em Brasília? Esse seria um objetivo ou é pensado para uma abordagem mais didática?

Desde o lançamento, em setembro, estamos organizando algumas sessões gratuitas do filme aqui no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Florianópolis e a próxima cidade para onde vamos levar o filme será Brasília. Consideramos fundamental aquecer esse debate no ambiente onde se encontram alguns dos principais atores capazes de operar as mudanças que podem vir a ampliar os direitos reprodutivos no Brasil. É em Brasília, no STF, que se encontra a peça jurídica mais importante da luta pelo direito ao aborto seguro, a ADPF 442, ação proposta em 2017 pelo PSOL, com apoio do Instituo Anis, que propõe a descriminalização [do aborto] até o terceiro mês [de gravidez]. Essa ação tem como relatora a ministra Rosa Weber, que vai se aposentar em outubro de 2023 e deve encaminhar a pauta antes de deixar o Supremo. Isso não significa que o julgamento esteja próximo de acontecer, mas talvez este seja um momento favorável para uma nova etapa do debate. Desde a audiência pública realizada em 2018, que deixou a ADPF pronta para julgamento, a pauta não avançou.

Lançamento do documentário no Rio de Janeiro |Foto: Gabrielle Abreu

Apesar de termos um debate ativo sobre direitos reprodutivos no Brasil e em outros países da América Latina, e mesmo que existam iniciativas de diálogo entre mulheres que estão no front desse movimento pela legalização, não há tantos materiais como este filme disponíveis. Como você buscou uma unidade para falar de América Latina, e não de países de forma isolada?

Acho que a costura feita com o texto em off, narrado pela atriz Ana Flávia Cavalcanti, ajuda a costurar esse diálogo entre os países da região. Os trechos narrados procuram dar um tom um pouco mais ensaístico ao filme, que é, na essência, muito informativo. A construção de um inventário de imagens urbanas feito de cenas que se repetem nas metrópoles latino-americanas, e também dos gestos das meninas e mulheres que transitam por essas cidades, foi outra busca da direção por uma unidade narrativa. 

Quem leu essa Entrevista também viu:

Giulliana Bianconi

É jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco, cofundadora e diretora da Gênero e Número. Atualmente também se dedica a pesquisar e a escrever sobre movimentos de mulheres e sobre desigualdades de gênero e raça na América Latina. Possui especialização em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.

Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.

Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.

A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.

Quero apoiar ver mais