
A cientista social e mestre em sociologia pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) Ana Carolina Lourenço, de 28 anos, é uma das coordenadoras da Rede Umunna, que busca engajar mulheres negras no debate eleitoral e na política institucional. A rede lançou na última semana a plataforma Mulheres Negras Decidem, que apresenta dados e desconstrói mitos sobre a participação de mulheres negras na política. Lourenço também atua como coordenadora executiva da Fundação Cidadania Inteligente, uma organização que busca fortalecer a participação cidadã efetiva com o objetivo de consolidar democracias mais representativas e deliberativas.
Em conversa com a Gênero e Número, a socióloga falou sobre barreiras de elegibilidade de mulheres negras, financiamento público eleitoral, o “efeito Marielle Franco” e as expectativas de maior presença de mulheres negras nas eleições de 2018.
Gênero e Número - O sistema político brasileiro exclui mulheres negras?
Desde 1982, com a primeira grande eleição depois do golpe militar [de 1964], as mulheres negras disputaram o processo político. Lélia Gonzalez foi candidata a deputada federal e Benedita da Silva foi candidata a vereadora em 1982. Mas existe uma mudança no perfil das eleições e nas formas como as mulheres negras se mobilizam dentro dos processos eleitorais de 2016 para frente. A eleição de Marielle Franco (PSOL/RJ), Taliria Petrone (PSOL/RJ) e Áurea Carolina (PSOL/MG) foram marcos disso.
Em 2013, estávamos em meio ao desenvolvimento do debate sobre mulheres negras que é muito importante, mas que não significava ainda a construção de articulações de mulheres negras em torno de grandes candidaturas. E essa agenda virou um pouco em 2016, com o discurso do “não me representa” e pela maneira como mulheres e homens negros respondiam à crise institucional, que nos dá uma pista desse movimento. Esse momento político é anterior ao assassinato ea Marielle Franco, porque as mulheres negras começaram a se aproximar da política institucional quando perceberam que tiveram ganhos em diferentes capitais do Brasil nas eleições de 2016, o que gerou uma aproximação muito interessante. Muitas mulheres negras que participam do ciclo Mulheres Negras Decidem fizeram parte da campanha ou participaram de alguma atividade do mandato de Marielle Franco, por exemplo. Isso mostra como a consolidação de novos perfis políticos aproxima o ativismo da política institucional.
Tudo que estamos construindo agora tem a ver com o trabalho que vem de como os movimentos raciais e de direitos humanos responderam a junho de 2013 e às crises de representação política que tiveram o estopim no impeachment. E que sofreu um grande boom com o assassinato da vereadora Marielle Franco. Isso não é verificável, mas eu vejo muito mais mulheres negras interessadas e participando dos debates eleitorais após esse marco. É perceptível que temos agora um novo perfil de mulher negra que quer falar sobre política institucional, eleições e em quem vai votar.
Gênero e Número: Esse “efeito Marielle” estimulou mais candidaturas de mulheres negras?
Nas eleições de 2016, as mulheres negras foram aproximadamente 13% das candidaturas [eram de mulheres negras 14,2% das candidaturas a vereador e 0,13% a prefeito]. Todas as projeções políticas mostram que as mulheres não vão ultrapassar tanto a cota de 30%, se chegar a mais que isso já vai ser uma conquista histórica. Então não acho que vamos ter mais de 30% de mulheres candidatas, o que significa provavelmente que não vamos ter muito mais do que 13% de mulheres negras. Mas o que já estamos percebendo é uma projeção e maior visibilidade para as candidaturas de mulheres negras que utilizam a identidade racial como um ativo político. Então, mais do que mais candidaturas negras, temos mais candidaturas de mulheres negras competitivas e que usam a identidade racial como ativo político. Isso só é possível porque existe o outro lado, temos uma mídia que não tínhamos nas eleições de 2014 e de 2016, uma cobertura midiática que muito motivada pelo que aconteceu com Marielle olha mais para os dados sobre mulheres negras na política, temos setores públicos com dados mais qualificados e a regulação do financiamento para mulheres. Isso faz parte de um movimento amplo que envolve todos os setores da sociedade, como o setor público e o crescimento da mídia independente, que estão para além dos partidos e que dialogam com o “efeito Marielle”, mas que não é apenas isso.
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Gênero e Número - Diante dessa mobilização e dessa mudança de perfil, por que existe ainda essa dificuldade de eleger mulheres negras?
Até antes de 2010, tínhamos candidaturas de mulheres negras como quadros excepcionais. Por isso, o primeiro ponto para termos mulheres negras eleitas é termos um bom número de candidaturas deste grupo.
Outro ponto que é muito discutido no momento são as barreiras de elegibilidade [cálculo do total de eleitos/total de candidaturas]. Na última eleição, os homens brancos tiveram 30 vezes mais financiamento do que candidaturas de mulheres negras. Esse dado é gritante, mas precisamos entender porque ele acontece.
Gênero e Número - O que seriam essas barreiras de elegibilidade para mulheres negras?
A principal barreira da elegibilidade é o financiamento, já que campanhas e alcance dependem de dinheiro. É interessante porque tanto o parlamento negro nas Américas quanto a plataforma de justiça eleitoral do Black Lives Matter defendem a criação de fundos públicos para resolver o problema de baixo financiamento de campanhas negras. O Brasil é o país que tem o mais longo uso de financiamento público de campanhas da América Latina, só que o nosso financiamento público é regulamentado de forma a não olhar para as questões paritárias e de diversidade. A primeira vez que ele vai olhar para isso é este ano, com a decisão dos 30% para candidaturas femininas.
Mais do que a escolha dos partidos de manter o processo de sub-representação a partir do financiamento, o que atrapalha a construção de uma democracia onde setores da sociedade estejam melhor representados, no contexto político atual isso vai produzir um fortalecimento do avanço de candidaturas conservadoras. As mulheres negras que poderiam estar sendo organizadas a partir dos grandes quadros a candidaturas para deputada estadual e federal, que se tivessem mais recursos fariam mais trabalho de base e territorial e estariam percorrendo todo o Estado, estão sendo paralisadas por falta de financiamento.
A segunda barreira tem a ver com a visibilidade, que tem relação com as estratégias partidárias. A maior parte das candidaturas de mulheres negras está concentrada em cargos do Legislativo que têm menos visibilidade, como vereadoras e deputadas estaduais, e há um número muito baixo para senadora e governadora. Os cargos com mais acesso a dinheiro e cobertura da mídia são ocupados por homens brancos, o que gera essa dificuldade de visibilidade para mulheres negras. É uma caixa de problemas que pede uma caixa de soluções.
Além disso, as chamadas “regras do jogo político” e estruturas sociais atuam e afastam as mulheres negras dos perfis políticos favoráveis. O que por si só já gera uma desigualdade muito grande. Temos basicamente duas estruturas agindo o tempo todo, uma que é referente às regras eleitorais e outra que tem a ver com o racismo e a desigualdade na sociedade. Esses dois aspectos são importantes e precisam ser controlados, principalmente a estrutura eleitoral, que precisa de uma atuação forte e clara porque existe essa estrutura social perversa que age sobre esse grupo.
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Gênero e Número - Dentro desse cenário, como é possível estimular e fortalecer a presença de mulheres negras na política?
Estamos acompanhando nesse momento como os partidos políticos estão distribuindo os recursos das campanhas e muitos já apontaram que vão direcionar mais recursos para as candidaturas que já têm mandato, o que já exclui mulheres negras, que são o menor grupo em termos de mandato. Então, já temos indícios que neste ano a distribuição de recursos não vai ser favorável a mulheres negras. Mais uma vez, vamos começar um processo eleitoral em uma grande desigualdade. Nesse sentido, a única resposta possível é um nível de mobilização e atuação política em torno das candidaturas de mulheres negras que precisa ser superior aos outros processos. A melhor maneira de fortalecer a candidatura de mulheres negras é deixar claro para a mídia e ativistas que as condições de partida no 15 de agosto, que é quando começa o processo eleitoral, serão desiguais para mulheres negras. Elas vão ter menos tempo de televisão, menos dinheiro e menos visibilidade. Isso é importante de ser pontuado. Em seguida deve-se criar estratégias, como o movimento negro e feminista tem conseguido uma série de conquistas nos últimos anos, que é redobrar o esforço, maximizar os recursos, fazer campanhas mais criativas, mandatos coletivos, financiamento coletivo. Essas são algumas das respostas possíveis a candidaturas que partem da desigualdade.
Gênero e Número - Qual é a sua expectativa para as eleições de 2018 para as mulheres negras na Câmara Federal e no Senado?
As regras eleitorais não são favoráveis e as formas como os partidos vão utilizar os recursos não apontam como favoráveis à renovação política. É necessário um levante da sociedade civil para que o processo seja o contrário. Como uma grande otimista, acredito que esse levante pode acontecer e pode ser liderado por mulheres negras. Existe uma série de condições e fatores que podem possibilitar isso. Temos mulheres negras disputando cargos do Legislativo com um perfil político forte, o que ajuda a organizar a militância. Podemos eleger mais mulheres negras com o perfil de Marielle Franco, Taliria Petrone e Áurea Carolina para cargos do Legislativo estadual e federal, por exemplo. Podemos transformar as eleições de 2018 em um novo marco de como as pessoas lidam com política. Sempre que o desafio é grande, tende a crescer nossa capacidade de ação e resposta. Acho que a corrida presidencial vai dar muito o tom da vitória que vamos narrar, porque uma Câmara federal de melhor qualidade que a de 2014 é uma vitória importante, mas pode ser esmagada com a eleição de um candidato como o [Jair] Bolsonaro (PSL/RJ).
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*Vitória Régia da Silva é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
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