“Quando o Estado não resolve o caso Marielle, está dizendo: ‘podem matar mulheres políticas, que nós não vamos investigar’”

Marlise Matos, professora do Departamento de Ciência Política da UFMG, falou a Gênero e Número sobre os diversos aspectos da violência política contra mulheres e explicou por que considera os partidos verdadeiros obstáculos para a chegada delas a cargos eletivos

(Reprodução / YouTube)

Marlise Matos, professora do Departamento de Ciência Política da UFMG e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem) da mesma universidade, começou há 12 anos a se dedicar ao que ela chamava então de “sub-representação política das mulheres”. Após alguns anos de estudo e pesquisas sobre o tema, passou a falar em “exclusão política das mulheres”. E, recentemente, outro termo entrou em seu repertório: “execução política das mulheres”.

Isso porque, como ela tratou em uma apresentação no Seminário Internacional Equidade de Gênero: Representação Política de Mulheres, que aconteceu na Escola Nacional de Administração Pública (Enap) no dia 12 de junho, em Brasília, a violência política contra mulheres tem escalado na última década, culminando no “feminicídio político” da vereadora Marielle Franco, executada no dia 14 de março no Rio de Janeiro.

Em conversa com a Gênero e Número após sua fala no seminário, Matos falou sobre os diversos aspectos dessa violência e do escanteamento das mulheres dentro dos partidos, que ela considera verdadeiros obstáculos para a chegada delas a cargos eletivos. Mas ela avalia que, apesar dessa e de outras barreiras e do “desencantamento com a política, socialmente e midiaticamente produzido”, as eleições de 2018 abrem uma janela de oportunidade para as mulheres, especialmente as negras, as lésbicas, as periféricas – mulheres como Marielle Franco. “O eleitorado hoje está mais apto a votar nessas candidaturas do que jamais esteve”, acredita.

Gênero e Número: Você classificou os partidos como obstáculo para a eleição das mulheres. Pode falar um pouco mais sobre isso?

O jogo político é um jogo de soma zero: pra ter mais mulheres nesses cargos – por exemplo, [na Câmara dos Deputados] há 513 cadeiras, e temos 45 mulheres. Pra ter 50, 60, 70 mulheres, essa mesma quantidade de homens não vão se eleger. É um cálculo muito simples. Isso significa que essa sensibilização precisa partir de dentro dos partidos, para que compreendam que as mulheres estão na disputa de fato, para serem eleitas; elas não estão ali fazendo um ornamento para a lógica política-eleitoral, elas não estão ali pra embelezar o espaço político. Elas estão ali para tomar decisões políticas e atuarem como parlamentares.

Existe uma história permanente de invisibilização das mulheres dentro dos partidos, ainda que 40% das pessoas que são filiadas a partidos políticos hoje sejam mulheres. Quando a questão das mulheres ganhou tônica nos partidos, a fórmula de resolução foi criar pastas – o PSDB Mulher, o PT Mulher, o PMDB Mulher. Atribuiu-se a elas o lugar do gueto. Elas estão guetificadas dentro dos partidos. Elas ficam dentro daquelas secretarias, daquelas pastas, mas não têm impacto, não têm poder de agenda. A partir da discussão sobre paridade nos sindicatos, alguns partidos de esquerda começaram a colocar a questão da paridade também nos seus cargos de coordenação. Mas é possível contar nos dedos os partidos que converteram isso em uma norma dentro da estrutura partidária. E mesmo havendo uma estrutura no regimento do partido que define que tem que ter paridade nos órgãos de executiva, essa paridade também não é efetivamente concretizada. As mulheres que estão dentro dos partidos que têm essa previsão legal, estatutária, reclamam que os partidos descumprem essa normativa. É um processo em que se avança, mas se volta para trás não sei quantos passos. E quase sempre nosso avanço é legal, não cultural. Não se incide na mudança das mentalidades. Os homens brancos não querem largar o poder. É tão simples quanto isso. Eles querem continuar governando, querem que as suas futuras gerações, seus bisnetos, continuem governando. E em algum momento esse ciclo precisa ser interrompido, porque isso é um problema para a democracia, não é um problema das mulheres. E às vezes a ciência política trata como se fosse um problema de falta de ambição política das mulheres, o que não é absolutamente verdadeiro. Quando se olham as séries históricas das mulheres se candidatando, a curva é ascendente, as mulheres têm se candidatado. Elas só não são eleitas. E para mim, parte muito determinante desse insucesso eleitoral das mulheres tem a ver com a estrutura dos partidos, dominada e controlada por homens brancos.

O obstáculo então seriam os homens brancos, não os partidos?

Sim, a lógica do domínio que eles exercem dentro dessas estruturas partidárias e o resto que orbita o entorno desses partidos. Algumas experiências estão tentando, de maneira muito inovadora – mas eu acho que isso é bem embrionário ainda, bem inicial – por exemplo, as ideias de mandatos de covereança, cogestão, cogovernança. Mandatos coletivos, como a Muitas, em Minas Gerais. As mulheres estão tentando romper com essas estruturas fazendo proposições que eu acho muito inventivas, mas elas esbarram sempre na lógica partidária. O sistema partidário é esse elo intermediário entre a sociedade organizada e o parlamento. Então não dá para prescindir do partido.

A sociedade civil continua se mobilizando, se organizando, no sentido de pensar em possibilidades de romper com essa barreira [nos partidos], que eu acho que é uma das mais importantes e preponderantes para continuar sustentando essa exclusão das mulheres.

Se o problema são os homens que dominam os partidos, não seria o caso de as mulheres criarem novos partidos?

Acho que é uma das formas. A gente já teve um partido feminino no Brasil, na época áurea dos anos 1930, quando aprovamos o sufrágio. Hoje seria inconstitucional; um partido não pode ter 100% de mulheres candidatas, porque existe a lei de cotas. A gente teria que ter 30% de homens. Mas eu adoraria estar fazendo essa discussão: quem seriam esses 30% de homens que participariam de uma chapa de um partido majoritariamente feminino. Esse é um caminho que está sendo construído. Acho que é uma saída, mas não acho que seja a única. A gente precisa também que esses partidos minimamente compreendam que quando você não tem um parlamento com um mínimo de representação de mulheres, ou de pessoas negras, ou de populações indígenas, ou de LGBTs, você não tem democracia, mas um jogo completamente tendencioso e enviesado. Porque a visão de mundo, a percepção, a agenda, a pauta, os valores são diferentes. Não porque existe uma essência na mulher ou na pessoa negra. Não é por essencialismo, mas porque são processos de socialização completamente distintos. Então a maneira como essas pessoas veem a política e vão contribuir para a política agrega à política um conteúdo plural que é necessário. Isso é democracia; o princípio do pluralismo é essencial para a democracia. Um parlamento com 90% de homens não é plural. Então esse bando de homens está decidindo sobre questões ou não colocando na agenda questões que são fundamentais para mais de 52% da população brasileira.

Você classificou o assassinato de Marielle Franco como feminicídio político. Pode falar um pouco mais sobre isso?

A constituição dos Estados latino-americanos, por condição do processo colonizador, é de um Estado autoritário e violento. O genocídio da juventude negra é um exemplo, ou o quanto nossas polícias são violentas, o quanto o Estado é violento em inúmeras dimensões. Na América Latina, quando as mulheres chegam a espaços de poder, junto com essa ascensão vem a violência, como uma forma de controle político. Violências de todos os níveis possíveis e imagináveis: desde processos mais simbólicos de estereotipação, como a ridicularização da vestimenta, do modo de falar, do sotaque; a invisibilidade da voz – a mulher toma o microfone na tribuna e eles viram de costas, não escutam o que ela está falando. Acham que elas estão ali de uma forma secundária, para servir um café na reunião, para ornar o ambiente. Nunca para discutir de fato as questões centrais, o conteúdo do que está sendo debatido e para terem uma contribuição real naquele processo. Desde isso até formas muito violentas, como um deputado dizer que uma deputada não mereceria sequer ser estuprada – e aí há uma ameaça velada de violência sexual. E essa mesma figura declarar que sua admissibilidade do impeachment se deve “ao coronel Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff”. Isso é de uma violência sem par, indescritível; trata-se de um torturador que colocou ratos nas vaginas das mulheres quando coordenou o DOI-CODI. Isso é uma sinalização para as mulheres ficarem quietas, fechadas nos seus próprios lugares. E como elas estão muito isoladas, elas são muito poucas, essa ameaça realmente é concreta. E isso pode escalar, como no caso de Marielle, para uma concretização de uma execução política.

Marielle foi executada porque se envolveu com uma discussão que ameaça os donos do poder: o tráfico de drogas e as milícias no Rio de Janeiro. Já se vão oitenta e tantos dias [a conversa aconteceu no dia 12/06] sem nenhuma decisão da Polícia Civil sobre por que ela foi assinada e por quem. E não vamos ter, infelizmente, essa resposta, porque há uma conivência do Estado com esse assassinato. É uma violência política também praticada com a omissão do Estado, porque não agir também é agir politicamente. Quando o Estado não resolve o caso de Marielle, ele está dizendo: “podem matar as mulheres políticas, que nós não vamos investigar”. É essa a mensagem que reverbera nesse campo político.

Qual é a sua expectativa para as eleições de 2018 para as mulheres na Câmara e no Senado?

Acho que quando se tem um desencantamento tão massivo, que é socialmente e midiaticamente produzido, inclusive – esse desencantamento com a política é fruto do lavajatismo, ou seja, dessa lavagem cerebral da corrupção a que somos submetidos 24 horas por dia, 365 dias por ano. Existe corrupção no Brasil desde a colonização, não é novidade a existência da corrupção no sistema político brasileiro. Mas virou o problema por excelência do Brasil. Na minha opinião é um problema grave, mas não é o problema democrático brasileiro por excelência. Mas diante desse cenário de desencanto, em que as pessoas estão achando a política uó, ninguém quer saber da política, todo mundo rejeita a política e os partidos, o que é possível nesse momento é a fissura, a janela de oportunidades para candidaturas contra-hegemônicas. Então é possível nesse contexto que se consiga [eleger mulheres] justamente porque as pessoas estão tão desencantadas que o reencantamento se dá por “vamos chutar o balde e eleger gente completamente diferente, que não faz parte desse conluio, dessa corrupção toda”. É uma janela aberta, que eu acho que a gente deveria, apesar do contexto adverso e da minha pouca expectativa de transformação no cenário de curto prazo, investir esforços. Eu mesma tenho investido esforços, participando de formação política para empoderar candidaturas de mulheres – mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres periféricas, mulheres como Marielle Franco. São essas que eu acho que a gente precisa colocar nesses espaços. E acho que existe uma chance real, e é importante aproveitar essa chance. O eleitorado hoje está mais apto a votar nessas candidaturas do que jamais esteve.

Você acha que os partidos vão abrir espaços para essas mulheres, mulheres como Marielle?

Os partidos que são atavicamente conservadores estão recrutando mulheres do capital político delegado, as mulheres que têm pai político, irmão, marido, tio, padrinhos políticos. Estamos vendo também esse crescimento, de partidos que, como também fazem esse diagnóstico da necessidade de renovar a cena política, vão colocar mulheres, mas mulheres alinhadas a um processo de domínio dos homens, que vão estar lá ocupando a mesma posição, a mesma forma de exercer o poder do que os homens. A sociedade civil, os movimentos de mulheres e os movimentos feministas têm que nesse momento falar publicamente sobre isso. Não é só votar em mulheres, mas votar em mulheres de luta, comprometidas com uma agenda de transformação das relações de gênero. A gente precisa de mulheres que entendam que o Brasil vive um novo contexto social e cultural e que esse Brasil precisa refletir também no seu parlamento essa experiência de mundo que as mulheres e os homens que vivem uma outra condição já estão colocando.

Mais sobre Política 2018: https://www.generonumero.media/politica-2018

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Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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