Patricia Hill Collins desafia interseccionalidade em novo livro

Na segunda parte da entrevista com Patricia Hill Collins, ela fala sobre a revogação do aborto nos EUA e usa Paulo Freire e eugenia para desafiar a interseccionalidade, conceito que virou jargão entre acadêmicos e ativistas

Texto: Maria Martha Bruno e Vitória Régia da Silva
Imagens: Marilia Ferrari

Em uma hora e meia de conversa com uma pensadora do porte de Patricia Hill Collins, a Gênero e Número teve o privilégio de ganhar uma aula grátis com uma mente brilhante. Ao falar sobre seu livro mais recente, “Bem Mais que Ideias”, lançado no Brasil pela Editora Boitempo este ano, ela passou por Paulo Freire para explicar como a eugenia dos nazistas também foi baseada na interseccionalidade. A equivalência é fruto de sua inquietação com um conceito que virou lugar-comum e que, em tempos de fortalecimento da extrema-direita, precisa ser problematizado.

Ao comentar a revogação da decisão que garantia o aborto nos Estados Unidos, Hill Collins alerta para os perigos de se acreditar que direitos adquiridos não podem ser derrubados. “As pessoas tiram as coisas de você. E se você é uma pessoa pobre, você sabe disso ainda mais: as pessoas tiram coisas de você o tempo todo. Não é justo, mas o poder é assim.”

Confira a segunda parte da entrevista especial.

Depois da decisão que revogou o direito ao aborto nos EUA, aumentou a apreensão sobre a garantia dos direitos das pessoas negras e LGBTQIA+?

Legislar sobre algo não significa que a gente vai garantir o que a gente quer. A revogação da legalização do aborto foi muito chocante para muitas jovens nos EUA. Mas não foi para muitas de nós, que não havíamos nascido com essa legislação em vigor. Além do mais, você pode ter o direito e não ter como exercer esse direito. Estamos em uma época em que os direitos formais estão sendo retirados.

Então, acho que isso tudo tem sido muito bom para as jovens perceberem que a gente não mantêm o que a gente tem. As pessoas tiram as coisas de você. E se você é uma pessoa pobre, você sabe disso ainda mais: as pessoas tiram coisas de você o tempo todo. Não é justo, mas o poder é assim.

Para a academia e a mídia, os direitos adquiridos e a democracia estavam assegurados. Como estamos falhando ao pensar e comunicar ambos?

Isso não é culpa dos jornalistas. Nós, com nossos próprios dados, nos tornamos parte de um grande plano de marketing. O tipo de notícia que recebemos e como isso molda nossa discussão acostuma as pessoas à democracia de um jeito ruim, porque nos diz que todas as respostas são fáceis, que tudo vem em “soundbites”, em dois segundos. Como se fossem “nuggets” da verdade. Isso idiotiza a gente.  

De certa forma, fomos empurrados para isso, por causa do lucro ou falta de lucro da mídia, de como a mídia é estruturada. E isso certamente teve um grande impacto nos jornalistas. 

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Acho que houve pressões semelhantes na academia, onde o aluno é cada vez mais consumidor. Na linguagem da academia, eles não dizem exatamente a palavra consumidor. Ainda não chegamos lá. Mas os alunos são as pessoas a quem servimos. É uma forma meio invertida de dizer: “Faça o que é popular, porque você será avaliado com base em se seus alunos estão felizes ou se eles podem se integrar à sociedade do jeito que ela é. Vamos avaliar você como membro do corpo docente, não porque vocês assumirá posições impopulares ou fará perguntas difíceis. Mas por causa da estrutura da nossa instituição”.

Agora, quando você olha para esses dois tipos de instituições [mídia e academia], eu acho que elas estão reagindo a um conjunto semelhante de pressões. São as pressões do capitalismo para crescer em certos mercados.

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Estamos em uma época em que os direitos formais estão sendo retirados. Tudo tem sido muito bom para as jovens perceberem que a gente não mantêm o que a gente tem. Se você é pessoa pobre, as pessoas tiram coisas de você o tempo todo. Não é justo, mas o poder é assim.

Em “Bem Mais que Ideias”, você fala sobre como a interseccionalidade se relaciona com o conceito de justiça social. Como ambas podem ou não ser equivalentes?

Minha preocupação era que as pessoas que estão trabalhando com interseccionalidade estivessem achando automaticamente que isso fosse justiça social. Em uma das minhas palestras no Brasil, falei um pouco sobre Paulo Freire. No livro “Pedagogia da Esperança”, ele faz uma retrospectiva de sua carreira e faz perguntas sobre seu pensamento inicial. Ele reflete sobre seu próprio mundo intelectual e político, que é o que eu acho que todos devemos fazer.

É muito importante a gente sempre desafiar nosso próprio pensamento. As pessoas reivindicavam a interseccionalidade para todos os tipos de projetos, e que muitas vezes eles não tinham nada a ver com isso.  

Para mim, justiça social é uma visão do mundo em que queremos viver. Um mundo justo, igualitário e onde as pessoas possam ser humanas em toda a sua capacidade. A interseccionalidade faz um trabalho muito bom ao criticar o mundo em que vivemos, ao falar sobre como as categorias de raça, classe e gênero funcionam juntas. Você pode escapar de uma delas e pensar: “Agora eu tenho dinheiro, então não sou mais pobre e as pessoas vão me tratar melhor”. Mas se você é mulher, alguém ainda pode te cantar na rua.

Como você chegou na eugenia para questionar o conceito de interseccionalidade?

Este livro é para acadêmicos que muitas vezes pensam que têm todas as respostas certas sobre tudo o tempo todo. Eu tive uma abordagem muito conservadora. Pensei: “vou encontrar um discurso que seja completamente interseccional, mas não sobre justiça social”. Isso se chama contrafactual. Então escrevi boa parte de um dos capítulos sobre o movimento eugenista.

O nazismo implementou políticas de eugenia em sua totalidade. Se a gente pensar sobre o que eles fizeram, quem eles perseguiram e como eles perseguiram, teremos uma boa noção de uma análise interseccional sem justiça social. Esta foi uma análise interseccional que foi contra a justiça social e foi bastante eficaz, justamente porque era interseccional.

Havia um Dia das Mães para mulheres brancas arianas alemãs, que eram encorajadas a ter mais filhos. Havia uma política reprodutiva para elas e uma glorificação da maternidade. Mas com os nazistas também houve o assassinato de outras mulheres e de seus filhos, porque eles não eram do tipo certo. Portanto, essa foi claramente uma política interseccional de raça e gênero.

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Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É gerente de jornalismo e vice-presidente da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de seis anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

Maria Martha Bruno

Jornalista multimídia, com experiência na cobertura de política e cultura, integra a equipe da Gênero e Número desde 2018. Durante três anos, foi produtora da NBC News, onde trabalhou majoritariamente para o principal noticiário da emissora, o “NBC Nightly News”. Entre 2016 e 2020, colaborou com a Al Jazeera English, como produtora de TV. Foi repórter e editora da Rádio CBN e correspondente do UOL em Buenos Aires. Jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição, e atualmente cursa o programa de Doutorado em Comunicação na Texas A&M University, nos EUA.

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