“Quando eu escrevo sobre Venezuela, já me preparo para não ler comentários”

Martha Raquel é jornalista, repórter com experiência em cobertura internacional e integrante do coletivo de mídia Jornalistas Livres. É uma das 7 pessoas entrevistadas em profundidade para a pesquisa “O Impacto da Desinformação e da Violência Política na Internet contra jornalistas, Comunicadoras e Pessoas LGBT+”. 

Você pode falar sobre a sua formação, suas áreas de atuação como jornalista e comunicadora?

Tenho 27 anos, nasci no interior de São Paulo, venho de uma família pobre, só fiz faculdade por conta do Prouni, então eu me formei em jornalismo pela PUC Campinas, morei em Campinas na época e estagiei na filial da Rede Globo lá, que é a EPTV Campinas. Também  numa agência  de publicidade, como revisora de texto. Logo que me formei, aquela fase em que a gente não sabe o que vai ser da vida porque precisa procurar emprego, eu acabei indo, pelos Jornalistas Livres, para Brasília, para cobrir o impeachment. Eu tinha 21 anos. Por conta dessa cobertura, o diretor de jornalismo da Rede TVT me ligou e me ofereceu um trabalho. Fiquei por três anos, primeiro como editora de texto, depois como repórter. E nesse tempo todo segui com os Jornalistas Livres. Mas eu já estava morando em São Paulo nessa época, eu voltei de Brasília direto pra São Paulo. Depois disso, recebi uma proposta de emprego para ir para Roraima, pelo Brasil de Fato. Fui como correspondente para escrever sobre a questão dos Yanomamis, sobre o garimpo, sobre a Venezuela também. Houve antes disso uma experiência importante: eu embarquei para a Bolívia para cobrir as eleições presidenciais lá, ainda pelo Jornalistas Livres. Não falava espanhol, nunca tinha saído do país sozinha, mas fui, em 2019. Lá eu recebi um convite para estar na Venezuela no mês seguinte, para participar de um congresso internacional de comunicações, como delegada internacional representando o Jornalistas Livres e também para participar de uma formação de jornalistas de toda a América Latina para a construção de uma rede latinoamericana de jornalismo independente. Em Roraima, comecei em fevereiro de 2020. Lá comecei a escrever sobre a questão de garimpo, sobre o MST lá em Roraima, sobre a questão indígena, sobre a relação da fronteira Brasil e Venezuela e aí estourou a pandemia. Passou a ser home office, período que fiquei em Salvador. Retornei apenas quando precisei ir para Venezuela para cobrir as eleições, em novembro de 2020. Então fui para lá pra cobrir as eleições parlamentares e depois acabei ficando em São Paulo de novo e continuei escrevendo sobre Roraima no Brasil de fato. Em julho de 2021, eu fui pra Venezuela mais uma vez para cobrir também um congresso dos povos do mundo, que marcava os 200 anos da batalha de Carabobo, e logo que eu voltei da Venezuela, saí do Brasil de fato e hoje eu trabalho na Secretaria de Comunicação do MST. Junto com os Jornalistas Livres, onde estou há seis anos.

Você percebe que há uma naturalização do discurso de ódio no meio jornalístico? E se sim, de que maneira?

Sim. Vou relatar três casos que me recordo. Escrever sobre a Venezuela é muito difícil no nosso país. Então toda vez que eu assino uma reportagem sobre a Venezuela, eu mostro o cenário porque a grande maioria dos veículos fala sobre a Venezuela sem estar no país. E nas minhas reportagens eu busco rebater o que eles falam. Então quando eu escrevo sobre a Venezuela, eu já me preparo para não ler comentários, que não são só de ódio à Venezuela, mas também a mim, como mulher. Então vai desde me mandar para Cuba, para a Venezuela, a procurar fotos minhas na Internet, comentar fotos minhas. Já me atacaram pela sexualidade, porque eu sou lésbica. Já aconteceu de eu bloquear comentários na reportagem. Um outro caso que recordo de viver esse ódio foi quando a [ex-presidente] Dilma estava no processo de ser afastada e eu fui fazer uma cobertura em Campinas. Ela teve um almoço em Campinas e, por ironia da vida, eu fui trabalhar com uma camiseta vermelha e eu apanhei, eu levei uma paulada na cabeça. Tem uma foto que é justamente o pau batendo na minha cabeça e os óculos voando. Isso porque uma mulher disse que eu não era jornalista, que eu era uma petista infiltrada, que eu queria ficar no lugar dos repórteres, que era mais próximo. E aí eu estou recebendo uma paulada na cabeça. Um mês antes eu havia feito um treinamento no exército de Campinas para jornalistas em situação de conflito. E quem acompanha o(a) presidente é o Exército. Então o tenente que estava acompanhando a Dilma me conhecia. Foi ele quem interveio, tirou a mulher e disse que eu poderia registrar um boletim de ocorrências. Eu acabei não registrando.

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Na cobertura sobre o garimpo e a questão indígena, eu confesso que enquanto eu estive em Roraima no território eu não escrevi sobre o tema. Eu colhi muita informação, eu visitei os abrigos do exército, da ONU, eu conheci lideranças Yanomami, mas eu não escrevi, eu deixei para escrever depois que eu já estava fora do território

E em Roraima, já no governo Bolsonaro, fui cobrir um ato a favor de Jair Bolsonaro. Eu, mulher com cara de criança, porque eu tenho 27 anos, mas eu tenho cara de 18. Estava fotografando, entrevistando, gravando, e começaram a perguntar o meu nome. Começaram a interagir, eu tive que trancar todas as minhas redes sociais, tirar todas as minhas fotos, tanto que hoje minhas redes são todas trancadas, e começaram a me mapear pela cidade, porque Boa Vista é uma cidade muito bolsonarista. Então num dia normal para você ir no mercado você cruza com dez pessoas com camiseta do Bolsonaro. É um lugar muito difícil de se estar, sabe? Nesse dia eu nem terminei de cobrir o ato e fui embora antes, entrei no Uber e fui embora. Pedi pro Uber dar umas voltas porque fiquei com medo de alguém ter me seguido. Além disso, desses momentos mais pesados, na cobertura sobre o garimpo e a questão indígena, eu confesso que enquanto eu estive em Roraima no território eu não escrevi sobre o tema. Eu colhi muita informação, eu visitei os abrigos do exército, da ONU, eu conheci lideranças Yanomami, mas eu não escrevi, eu deixei para escrever depois que eu já estava fora do território. Por quê? Porque eu conheço jornalistas que já tiveram suas fotos circulando, que já foram jurados de morte. Eu tenho um amigo que é fotógrafo, que circulam imagens da filha dele, da esposa dele. Fiquei pouco mais de um mês em Roraima por causa da pandemia. Mas o plano era que se eu escrevesse alguma reportagem, eu não assinasse porque iam me achar com o meu nome, que que já não é tão comum. Eu não assinei reportagem nenhuma lá, e estando aqui já recebi pedidos de jornalistas que moram lá falando “olha, eu te dou todas as informações, eu te dou imagens, eu te dou tudo, mas eu não posso escrever sobre” e aí já publiquei reportagens que basicamente me deram prontas, eu só redigi o texto, mas toda a apuração estava feita porque as pessoas tinham medo de de publicar sobre isso. Então tiveram esses três momentos, essas três situações que eu acho que foram bem marcantes. 

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Você vai publicar uma reportagem e você já se prepara para o que pode vir. Minhas redes sociais hoje estão todas trancadas. Meu Twitter é profissional. Eu no Twitter não publico nada além dos links das minhas reportagens

E no governo Bolsonaro isso piorou muito mais né? Porque é como se o presidente desse um aval pras pessoas atacarem as outras. Quando o presidente ataca, ele está dizendo que tudo bem atacar. E isso piorou muito, muito mesmo. Então esse caso, a primeira vez que aconteceu isso comigo foi nessa situação da [ex-presidente] Dilma. Eu já trabalhava com jornalismo há três, quatro anos e foi a primeira vez. E depois do governo Bolsonaro isso se intensificou. Então, é isso. Você vai publicar uma reportagem e você já se prepara para o que pode vir. Minhas redes sociais hoje são todas trancadas. Meu Twitter é profissional. Eu no Twitter não publico nada além dos links das minhas reportagens porque é isso: você não pode fazer um comentário que você é atacado, é ameaçada.

E quanto a esses discursos de ódio proferidos contra mídia, contra jornalista, partem de grupos? Quem são essas pessoas que fazem esses discursos? 

Olha, eu acho que questionar o jornalismo é importante e que todos fazem, mas há formas de se fazer isso. Tem grupos que fazem isso de forma ameaçadora, que fazem isso para intimidar, para silenciar e aí eu estou falando claramente dos bolsonaristas porque são pessoas que usam imagens de bandeira do Brasil, do [Sergio] Moro, do [Jair] Bolsonaro, mas são pessoas que não se identificam. Perfis que não parecem verdadeiros, o que é diferente por exemplo, de algumas redes como o TikTok. O TikTok é uma rede onde eu já fiz vídeos sobre a Venezuela quando estava lá no país. E lá também tem perfis bolsonaristas, mas os perfis são de pessoas. Dificilmente você vai ver uma foto com o desenho do Bolsonaro ou do Moro ou bandeira do Brasil. Muitas vezes a gente denuncia para as plataformas, mas continuam lá. Eu lembro de uma vez que eu fiz um vídeo e eu estava na casa de uma amiga, em Salvador. É uma casa grande, uma casa bonita e falavam que eu tinha invadido aquela casa porque eu era uma petista que queria pagar de rica. Então eles iam descobrir onde era aquela casa em Salvador.  Então, tudo isso vai te colocando numa autocensura também. Porque você fala, “estou aqui, eu estou na casa de uma amiga e eu vou colocar ela em risco também, além de me colocar em risco”. Você começa a se preocupar não só por você, mas pelas pessoas que estão à sua volta. E é isso, eu acho que sim, questionar a mídia é importante, mas que hoje em dia existe uma cultura de descredibilização da mídia. E é como se os jornalistas fossem apenas colunistas que emitem suas opiniões quando na verdade nós estamos trabalhando com dados. Nós estamos trabalhando com informações verdadeiras. Nós estamos trabalhando com análise. Então esse descrédito do jornalismo faz com que esses ataques fiquem muito mais fortes e direcionados porque eles acham que aquilo que você está falando é só meramente a sua opinião, então quem tem que ser combatido é você. Então está muito difícil ser jornalista.

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As pessoas se sentiram mais motivadas a debater, mas não debater de uma forma saudável. Mas nessa forma de ataque, de ameaça, de intimidação, de tentar silenciar, e de certa forma conseguiram. Eu mesmo passei a me policiar muito mais.

Você avalia que o contexto da pandemia escalou de alguma maneira a propagação de discursos de ódio? 

Claro, com certeza, porque quando a gente começa com um presidente que minimiza tudo, quando você faz reportagens que denunciam o descaso com a pandemia, por exemplo, caem [as reportagens] novamente naquele lugar de acharem que é apenas a sua opinião. Como o presidente fala o que quer e não sofre nenhuma sanção, não tem consequência nenhuma pra ele, e ele impõe sigilo sobre a sua carteira de vacinação, chama de gripezinha [a covid], imita pessoas sem ar, um desrespeito total com as famílias…e quando esse tipo de coisa acontece e não tem nenhum tipo de consequência, passa um sentimento de que tudo bem, você pode fazer o que você quiser porque se o presidente está fazendo e não tem consequência para ele, por que vai ter pra você? E aí na pandemia as pessoas também ficaram muito mais online, e a internet dá essa sensação de que você pode falar o que você quiser do jeito que você quiser para quem você quiser. As pessoas se sentiram mais motivadas a debater, mas não debater de uma forma saudável. Mas nessa forma de ataque, de ameaça, de intimidação, de tentar silenciar, e de certa forma conseguiram. Eu mesmo passei a me policiar muito mais. Em rede social, eu adoro Twitter, mas eu não abro a minha boca, não falo nada. Publico os links das minhas reportagens e fim. Então eu acho muito pesado essa autocensura que a gente está tendo por conta dessas situações que foram agravadas, sim, durante a pandemia.

Você percebe que há uma perda de confiança na mídia por parte da sociedade? Considerando a existência de diferentes tipos de mídias.

Com certeza. Apesar de eu achar que hoje é uma descredibilização geral, quando você fala de mídia independente, por exemplo, é como se tratasse você como um grupo de amigos que brincam de fazer jornalismo. Então eu acredito, sim, que quando você fala de jornalismo independente, as pessoas tratem como só um coleguismo, como uma brincadeira, um passatempo, um hobby e não como jornalismo de verdade, mas é com fatos e dados que a gente vai se consolidando. O Jornalistas Livres já realizou coberturas incríveis e uma cobertura que eu me orgulho muito de ter feito foi essa da Bolívia que contei anteriormente. Porque chegou um momento em que eu era a única jornalista brasileira lá. Os jornalistas que foram ficaram para o domingo de votação e para segunda e eu acabei acompanhando todo o processo do Golpe porque eu já tinha me programado para ficar alguns dias a mais porque eu sabia que a apuração lá era com voto de papel e eu queria acompanhar toda a apuração porque também sabia que estavam tentando criar esse clima de fraude. Então é assim que a gente consegue se consolidar também e ganhar reconhecimento e ganhar credibilidade. Mas sim, no geral, a mídia independente é descredibilizada. A grande mídia também passa por isso. Então chamam a Folha de S. Paulo de esquerdista, o que não faz nenhum sentido, mas eu acho que quando se trata de mídia independente é muito pior o cenário. 

Então você acredita que há esse tratamento diferente para mídia independente e grande mídia,? Estaria isso relacionado a alguma questão específica?

Eu acho que sim, e há a questão da formação. No Jornalistas Livres, para você fazer parte, você não precisa ter formação em jornalismo, por exemplo. Todo mundo pode ser um comunicador. Comunicação é uma coisa que a gente aprende na prática e não necessariamente dentro de uma faculdade, até porque o diploma de jornalismo hoje não é obrigatório. Muitas pessoas tentam descredibilizar esse trabalho, como “ah, você não sabe o que está fazendo, você não tem formação”. Eu mesma aprendi muito mais dentro do Jornalistas Livres do que na faculdade, sendo muito sincera. Eu aprendi na prática com repórteres incríveis que tinham 20, 30 anos de carreira e que me ensinaram muito. Comunicação é isso, não é só formação, não é só sala de aula, mas acho que isso também pode ser usado contra a gente.

Como você acha que o poder público tem atuado nessa temática da liberdade de imprensa? 

É complicado. Como não há uma boa regulamentação, o que eu posso dizer? Vou dar um exemplo: a Veja. Recebi recentemente uma proposta para trabalhar na Veja. Eu jamais trabalharia na Veja. A Veja cria um fato, ela não fala da onde veio aquela fonte, e ela coloca isso na capa da revista que vende no país inteiro. Isso não é questionado, isso não é cobrado. Então, claro que eu sou a favor da liberdade de expressão, mas eu acho que tem que ter ética, tem que ter responsabilidade. Hoje em dia eu sinto que nós estamos muito reféns também das redes sociais, e nas redes sociais a gente está jogando o jogo dos outros. A gente pode trabalhar o quanto a gente quiser, da melhor forma possível, que na hora que eles quiserem desligar o botãozinho, eles desligam e acabou. Então acho que é importante que os veículos também se fortaleçam em seus próprios sites e saiam da mão das grandes corporações. Nós tivemos recentemente um perfil do Instagram do Jornalistas Livres desativado de um dia para o outro, sem qualquer justificativa e quase perdemos esse perfil. Acho que já havia 620 mil seguidores. Conseguimos reaver a conta, mas não foi explicado até agora porque a conta foi tirada do ar e nós continuamos com o aviso de que ela pode ser retirada novamente a qualquer momento. Então, você vive à mercê de uma grande corporação que decide quando ela muda o interruptor e acaba com todo o seu trabalho. Para encerrar, sou a favor da liberdade de expressão, mas acho que é naquela linha do não mentir e não ofender. No momento em que você mente, você ofende e não é liberdade de expressão.

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A gente sempre se reúne, conversa, checa com o advogado e aí toma as melhores medidas. Em casos mais graves acionamos também os parceiros porque a articulação é tudo.

Você contou alguma das suas experiências com os ataques de ódio, e eu queria saber se você teve apoio ou suporte nas situações que mencionou. 

Sim, tive suporte. Houve uma situação que eu acabei não comentando antes. Eu fui cobrir uma ocupação de escola em São Paulo e acabei presa. E isso foi antes do início de 2019. Mas naquela época nós tivemos apoio dos advogados…Advogados pela democracia. E a partir daquele ano, quando aconteceram esses ataques de ódio, a gente sempre se reuniu no Jornalistas Livres para decidir se a gente quer oficializar ou não essa questão do boletim de ocorrência. Se a gente vai fechar perfil etc. Nós tivemos os jornalistas unidos também em casos de pessoas que tiveram seus dados divulgados em dossiês. Então, a gente sempre se reúne, conversa, checa com o advogado e aí toma as melhores medidas. Em casos mais graves acionamos também os parceiros porque a articulação é tudo. Até o momento, o nosso direcionamento tem sido para não assinar as reportagens ou trancar os comentários ou não marcar o perfil, por exemplo. Quando vai publicar alguma coisa no Instagram, não marca o meu perfil para que não cheguem até mim, entende? Ou eu tenho um segundo nome que às vezes eu assino para que não reconheçam o outro nome, então a gente vai desenvolvendo alguns mecanismos para fugir disso.

As situações que você viveu de alguma forma atingiram seus familiares?

Não, porque eu não tenho familiares nas redes sociais. Já é um cuidado que eu tenho. Não tenho absolutamente ninguém da família nas minhas redes sociais. Converso com a minha mãe por aplicativo de mensagem instantânea mesmo, a gente troca fotos por lá, mas em rede social não tenho absolutamente ninguém da família.

E você já chegou a pensar ou viu necessidade de procurar alguma ajuda especializada para lidar com alguma situação que tenha te impactado mais?

Eu fui fazer um curso de jornalismo investigativo, mas eu sabia que tinha um módulo de segurança digital e emocional. Então eu fiz esse curso em 2021. Foram seis meses de curso, foi por um projeto da Unesco com a Universidade Internacional do Chile. E aí eu confesso que eu fui fazer esse curso mais por conta desse módulo, justamente para aprender mecanismos de segurança nas redes e mecanismo de segurança emocional. Porque não é só a parte técnica, você precisa ter cabeça para encarar tudo isso. Então muita gente já me perguntou se eu pensei em parar de escrever sobre esses assuntos e eu falei que eu não sei se eu teria coragem de escrever estando, nos territórios, distante de lá eu tenho [coragem], mas estando lá eu acho que eu não aguentaria essa bronca não. Porque é real ameaça, as pessoas falam: “olha eu sei a sua foto, eu sei a rua que você mora, eu sei aonde você vai onde são as suas reuniões de trabalho, o café que você costuma trabalhar”, então você fica com medo, ainda mais em Boa Vista, em Roraima, que é uma cidade muito pequena para ser uma capital. E por exemplo tem um café que é coworking. Então se eu trabalho num café é dali. Entendeu? Então você fica muito manjada na cidade. E isso dá medo. Então estando longe eu me sinto segura pra escrever, mas com esses cuidados.

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A gente tem medo de andar na rua independente da nossa profissão, só por ser mulher. Sendo lésbica, duplamente, porque as lésbicas sofrem o tempo todo ameaças de estupro corretivo, dizem “que elas nunca experimentaram o homem certo”.

Você acha que a questão de gênero, o fato de ser mulher ou  ser LGBT+, implica em algum tipo de violência específica no jornalismo? 

Eu tenho uma ex-namorada que é jornalista também, lésbica e que ela tinha um blog sobre a Rússia. Ela deixou de atuar no jornalismo por conta das ameaças que ela sofria. Ela era uma lésbica não assumida e falavam que sabiam disso e que falariam para família dela se ela não parasse de escrever essas “coisas comunistas”. E aí ela simplesmente deixou. Hoje ela atua em outra área, ela trabalha com marketing, não tem mais o blog. E enfim. Saiu do jornalismo por conta desse medo mesmo. No caso dela foi uma questão de sexualidade mesmo porque usaram disso pra ameaçá-la, para intimidá-la, pra tentar silenciá-la e infelizmente conseguiram né? A gente já vive numa sociedade que é extremamente machista e misógina, em que ser mulher não é fácil. A gente tem medo de andar na rua independente da nossa profissão, só por ser mulher. Sendo lésbica, duplamente, porque as lésbicas sofrem o tempo todo ameaças de estupro corretivo, dizem “que elas nunca experimentaram o homem certo”. Então já é uma dupla violência aí e aí isso já te atinge na esfera pessoal. E quando isso te atinge também na esfera profissional é muito pesado. Então eu já vivi situações de lesfobia em trabalho também. E olha que eu só trabalhei em lugar de esquerda, é muito complicado e é uma coisa que mexe muito comigo, mexe muito porque toda a minha vivência também está pautada na minha sexualidade. Eu nunca escondi que eu sou lésbica, nunca chamei namorada de amiga, não vou me esconder, mas é sempre muito complicado porque é sempre viver essa agonia, essa angústia, é violência em dobro. Quando os bolsonaristas descobrem que você é lésbica, o discurso muda. Então já não é “você é burra, você é ignorante, você é vendida, você é comunista”. Uma coisa que já me falaram é que eu escrevia as minhas reportagens porque eu tinha inveja do pau dos caras, porque eu queria ter um pau e eu não tinha. Então era por isso que a minha amargura na hora de escrever uma reportagem, denunciar violências, era por conta disso. É uma violência muito pesada isso. 

Você já  precisou recorrer a alguma plataforma digital nesses casos em que você sofreu ataques? Se sim, teve retorno?

Eu já cheguei a denunciar para as redes sociais, mas nunca aconteceu nada [de resolução], então como eu tinha o controle das redes, das minhas pessoais ou das do Jornalistas Livres, eu mesmo apagava, eu mesmo bloqueava. Meu primeiro passo é sempre bloquear, mas as plataformas diziam que as denúncias não tinham violado nenhuma norma da comunidade. E você acha que existem meios eficazes de denúncia? Falam que são pessoas que analisam os conteúdos e eu acho que é impossível uma pessoa ver uma uma ameaça de estupro e falar que aquilo não viola. Então eu acho que primeiro tem que começar com uma regulamentação das mídias. Para que a gente não fique tanto na mão dessas plataformas. Não retiram comentários de ameaça, de ameaça contra a vida, então fazem o que  querem [as plataformas]. Acho que o sindicato [de jornalistas] tem um papel importantíssimo e, além disso, tem uma rede bem articulada para ajudar em possíveis denúncias. Então é como se você tivesse que estar o tempo todo preparada. O meu sonho é não precisar das redes sociais. Porque eu me sinto muito refém delas. Mas infelizmente precisamos. Principalmente na pandemia, quando todo mundo esteve online. 

Agnes Sofia Guimarães Cruz

Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Justiça Reprodutiva. Já publicou em sites como Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e está à frente da equipe de comunicação do Instituto de Referência Negra Peregum. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.

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