ENTREVISTA: “Se eu não estiver na política, quem vai falar por mim? É uma necessidade”

Primeira reverenda trans da América Latina, Alexya Salvador é vice de Sâmia Bomfim na chapa que busca a indicação do PSOL para a prefeitura de São Paulo; as duas disputam com Boulos e Erundina o direito de representar o partido nas eleições municipais

Por Lola Ferreira*

Uma mulher negra, mãe de três filhos, reverenda de uma igreja evangélica e professora da rede pública de ensino. As credenciais de Alexya Salvador resumem um perfil aclamado pela direita e disputado pela esquerda, de alguém que sabe conversar com as chamadas bases da população e estabelecer políticas públicas urgentes. Sabendo disso, e de sua importância neste cenário, Alexya é pré-candidata a vice-prefeita na chapa que pretende disputar pelo PSOL, encabeçada pela deputada federal Sâmia Bomfim, a prefeitura de São Paulo.

Com prévias marcadas para os dias 18 e 19 de julho, o partido ainda tem uma outra chapa pré-candidata, de Guilherme Boulos e Luiza Erundina, com esta como vice. Filiados do partido apontam que a disputa, hoje, está em pé de igualdade, e que não há como definir de antemão quem tem mais chance de disputar a eleição do fim do ano.

Mas, para Alexya, colocar-se nesse lugar de disputa já é um marco. E ela está acostumada a ser pioneira: é a primeira reverenda transgênero da América Latina, a primeira mulher trans a adotar crianças e, agora, quer ser a primeira mulher trans no Executivo municipal de uma cidade, até então comandada por homens “cis, brancos e heteronormativos”, como faz questão de dizer. 

“Se eu não estiver na política partidária, quem vai falar por mim, gritar por mim, olhar para mim e entender que sou uma cidadã que, embora tenha deveres, também tem direitos? É uma necessidade”, afirma.

Desde que anunciou sua pré-candidatura na chapa com Sâmia, enfrenta ataques nas redes sociais, mas já se diz acostumada, exatamente pelo pioneirismo em pautas até então dominadas pela cisgeneridade. “Cabe a mim manter a serenidade para fazer esse embate, que acaba sendo uma guerra. Tenho que usar armas diferentes. Eles estão vindo com ódio, perseguição, e eu no caminho do amor, na paz.”

Leia a entrevista completa.

É a primeira proposta de chapa exclusivamente de mulheres, e você é uma mulher trans. Na atual conjuntura política, como você avalia o impacto dessa chapa na corrida eleitoral para a Prefeitura de São Paulo?

É um grande desafio porque é uma cidade que, na maioria das vezes, foi comandada por homens cis, brancos, heteronormativos, e agora estamos vendo um levante feminino muito forte, em São Paulo e no mundo. As mulheres estão buscando e ocupando seu lugar na sociedade. E eu vivencio duas realidades. A primeira por ser uma mulher trans evangélica, e isso já tem causado nas redes sociais um tumulto muito grande, porque as pessoas usam meu lugar de existência para me deslegitimar, dizendo que política e religião não se misturam. Dizem que eu quero misturar, mas eu busco garantir o estado laico de direito, uma vez que religiosos na política eram motivo de vergonha até então, exatamente por misturarem e colocarem seus dogmas no ambiente político.

E a segunda é como mulher, porque as mulheres têm que ocupar esse lugar, levar suas demandas. As mulheres têm que decidir o que fazer. Então a gente tenta furar essa bolha, porque se não ocuparmos esse lugar, homens não farão políticas públicas que atendam a todos de forma satisfatória.

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Quais são as principais propostas da chapa e por que, na sua visão, essa é a melhor opção para a cidade de São Paulo hoje?

É construir uma política que seja voltada para todas as bases, todas as minorias. Queremos trazer essas pessoas para o cenário político, dar voz, entender as demandas e priorizá-las. Vamos olhar para a periferia, para a mulher, para os indígenas. Nós entendemos que uma política que abraça a todos tem que ser feita, e isso não é dar privilégios. 

Você já tem uma atuação política bem marcada, sem envolvimento com a política partidária antes da eleição de 2018 [Alexya concorreu à Câmara dos Deputados]. Por que julga ser importante sua entrada na política partidária neste Brasil de 2020?

Se eu também não estiver nesses lugares, essas pautas políticas não são trazidas ou faladas. E tem o recorte de ser uma mulher trans. Quando a gente pensa que o Brasil é o país que mais mata travestis e ainda não tem a criminalização da transfobia, entendemos que o Legislativo pouco se importa em criar leis nesse sentido. Todos os projetos encaminhados, a bancada da Bíblia barra, porque existe uma intenção: que as travestis e a população LGBT+ seja exterminada, silenciada e morta. Se eu não estiver na política partidária, quem vai falar por mim, gritar por mim, olhar pra mim e entender que sou uma cidadã, que embora tenha deveres, também tem direitos? É uma necessidade.

 

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Ativistas feministas, trans e negras têm sido alvo de diversos ataques de ódio nas redes, e com muitas fake news. Como você está se preparando para lidar com eventuais ataques durante a eleição?

Eu já sofro ataques há anos. Desde 2015, quando apareci na imprensa, esses ataques começaram nas redes. Há matérias horrorosas que deslegitimam minha vivência, minha maternidade. As coisas podem se intensificar no processo eleitoral, mas eu lido naturalmente, não espero nada da sociedade cisgênera, fundamentalista, heteronormativa. Tenho me preparado buscando recursos internos na fé, na minha família, na minha comunidade de fé. 

Eu também me preparo entendendo que acaba sendo um movimento natural, porque tudo que entendem que é diferente, num primeiro momento, querem rechaçar. Cabe a mim manter a serenidade para fazer esse embate, que acaba sendo uma guerra. Tenho que usar armas diferentes, eles estão vindo com ódio, perseguição, e eu no caminho do amor, na paz. Não respondo com ódio, respondo com sabedoria, porque se eu não fizer isso, entro no jogo deles. E não vou dar esse “gostinho” de dizerem que eu também sou odiosa, não passa pela minha vida responder ódio com ódio. 

Alexya é reverenda em São Paulo e pretende mudar a concepção da religião atrelada ao conservadorismo dentro da política | Foto: Arquivo pessoal

A influência da religião na política brasileira está ainda mais evidente nos últimos anos, mas com um viés predominantemente conservador. Qual é a sua contribuição, de uma mulher religiosa que também busca combater a LGBTfobia, para o debate político?

A minha função primordial é buscar mudar essa concepção sobre LGBTs, que já está tão enraizada dentro de todos esses cenários políticos. As pessoas têm que entender que a vida da comunidade LGBT+ é um direito que deve ser garantido. Eu já vi várias pessoas usando da religião e o nome de Deus para não fazer políticas para LGBT+, dizendo que é privilégio e que Deus condena. Então eu penso que a minha presença é um contraponto, para dizer que ali não é um espaço religioso, é um espaço político e, por ser político, entendendo que a Constituição garante que todos são iguais, por que ainda diminuímos algumas identidades e corpos?

Há políticas que silenciam e demonizam, que perpetuam na sociedade esse sentimento de LGBT+ ser “menos”, não ter sentimento nem necessidades políticas. A minha contribuição é gritar para eles que a prática política feita desta forma é a manutenção desse regime de escravidão que perpetua no Brasil. Eu vou lutar por isso. Se vou conseguir, não sei, mas eu vou falar coisas que eles não estão habituados a ouvir.

 

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Você explicou, em entrevista recente, sobre Jesus ser transgênero, do divino para o humano. Por que acha que ainda há tanta rejeição a qualquer mínima associação de Jesus com a transgeneridade?

A igreja perpetuou esse estereótipo de Jesus branco, loiro e de olhos azuis como única verdade de fé ou existência no mundo. As pessoas se esquecem que Jesus transita do gênero divino para o gênero humano, mostrando para nós que ele, por amor, por abraçar a obra que o próprio Deus criou, se apresenta em todos os corpos. 

Pensar nesse Jesus estereotipado é manutenção da branquitude, porque diz que só a branquitude merece o amor de Deus. Quando pensamos num Jesus trans, isso choca, inclusive pessoas trans, que diariamente vêm dizendo que eu não posso falar isso, que é um pecado. 

Jesus é de todos os povos, de todas as nações, culturas. A manutenção desse patriarcado cisgênero, heteronormativo e branco se torna arma de silenciamento e opressão, e tudo aquilo que está fora desse Jesus tem que ser morto. Eu recebo ameaças de morte toda semana, e eu sei que vou receber mais a partir de agora, porque tudo aquilo que está fora dessa concepção tem que ser morto, silenciado, excluído. 

Também tem o fato que sexualizaram tudo. Já associam Jesus trans a uma vida sexual pecaminosa, mas é pessoa, identidade, lugar no mundo. Eu pago muito por dizer isso ainda, porque eu mostro que Jesus é igual a nós, um ser que sentiu dor, medo, pavor, fome e frio. É claro que ele não pecou, mas é igual a nós.

*Lola Ferreira é repórter da Gênero e Número.

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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