
“Minha equipe toda está bastante desgastada, até porque antes a gente trabalhava dois [dias de descanso] por um [plantão] e hoje, por causa da alta demanda e da falta de profissionais, é um por um. Vários profissionais adoeceram, mas continuaram trabalhando mesmo assim, seja porque sabiam que a equipe precisava deles, seja porque precisavam do dinheiro, pois muitos são de cooperativas: para receber precisam trabalhar. E alguns deles até foram a óbito, perdemos colegas.
Em outubro de 2019 estava mergulhada em uma depressão profunda, você nem me reconhecia. Em janeiro de 2020 consegui um trabalho e comecei a retomar minha vida. Mas dois meses depois veio a pandemia e isso me afetou de tal forma que eu não podia mais ver as pessoas morrendo nos hospitais e eu, enfermeira intensivista, em casa. Foi quando surgiu a oportunidade de atuar pelo programa emergencial do Ministério da Saúde e eu entrei. Ainda faço tratamento para depressão e posso estar cansada e tudo, mas quando eu chego lá e vejo que tem gente que precisa de mim, aquilo é como se fosse um remédio, uma adrenalina que eu não preciso nem de medicação. Eu esqueço meus problemas, meu cansaço e vou cuidar dos problemas dos pacientes, que são muito maiores.
Em 31 de dezembro eu pensava que estava numa guerra. Entrei na sala de emergência e ali eu chorei. Eu não tinha como ajudar aquelas pessoas, muita gente nos corredores, na ala de saída, em todos os espaços, tinha pessoas internadas em cadeiras, e a gente querendo acomodar todo mundo de alguma forma. Hoje cada enfermaria tem oito camas, mas no pico chegamos a colocar dez, algumas alas tinham 46 pacientes, e eu trabalhava em cinco alas. Era cansativo, mas o que mais me marcou foi a falta de oxigênio. Teve momentos em que nos diziam: ‘controlem o oxigênio porque só tem esse cilindro. Acabou, acabou’. E aquele desespero entre os colegas, eu tentando manter a calma para não desestruturar minha equipe e os pacientes. Foi a cena mais impactante que vi na vida.
As pessoas não veem o outro lado da moeda. Lembro de um dia que estava no plantão e chamei uma técnica, que estava sentada num canto durante o plantão dela. Aí uma colega se apresentou para cobrir a escala dela, porque ela tinha perdido o pai e a mãe no dia anterior e estava abatida. Ela perdeu o pai e a mãe para Covid e foi trabalhar porque precisava, mas que condição psicológica ela tem? E ainda sofre pressão dos superiores, dos pacientes, familiares…
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Ao longo desse um ano de pandemia não houve valorização dos profissionais de saúde.
Ao longo desse um ano de pandemia não houve valorização dos profissionais de saúde. Não resolveram os problemas dos hospitais nem da falta de médicos. Os técnicos não têm cama para descanso, brigam por colchão no chão para dormir e muitos dormem direto no chão. Não houve valorização e nem investimento efetivo e permanente na saúde, para que o caos da primeira onda não se repetisse. Entre a primeira e a segunda onda pararam os investimentos, até fecharam leitos. Tivemos a segunda onda em janeiro e agora, de novo, começam a fechar leitos. Aí vem a terceira e o que vai acontecer? A mesma coisa. Isso tudo é revoltante para quem trabalha arriscando a vida na linha de frente todos os dias, com medo de pegar o vírus e transmitir para sua família.
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Eu sempre falo que, quando o paciente fica doente, uma família inteira adoece junto. E, quando ele agrava, a equipe médica sofre junto com ele e a família. Também é muito impactante para a gente ver aquele paciente com quem temos um contato diário, acompanhando cada melhora, ver um quadro se agravar. Com a pandemia, comecei a olhar para as pequenas coisas da vida, como o oxigênio ou a presença de alguém que a gente ama. Por isso, procuro ser essa pessoa para os pacientes que estão em seus últimos momentos, porque, claro, tem casos em que a gente não pode fazer mais nada, a não ser dar a ele uma morfina para que ele não sinta dor, e estar ao lado deles.
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Com a pandemia, comecei a olhar para as pequenas coisas da vida, como o oxigênio ou a presença de alguém que a gente ama.
Semana retrasada um paciente faleceu e ele estava sozinho, porque não podia receber visitas. Nos últimos momentos eu segurei na mão dele, fiquei passando a mão na cabeça dele e dizendo que estava tudo bem, que ele poderia fazer a passagem, porque até a palavra morte a gente evita, ela machuca muito nessa hora. Me emocionei e, nessas horas, os outros pacientes veem: ‘nossa, eles não são máquinas’.”
Glenda Soares, enfermeira intensivista do HPS 28 de Agosto, um dos maiores hospitais de pronto-socorro de Manaus, em depoimento à repórter Monica Prestes