“A alimentação ancestral é a cultura que resiste”, Sandra Chaves, coordenadora da Rede PENSSAN

Pesquisadora defende que é preciso “reaprender a comer” e aponta caminhos para uma alimentação sustentável

Foto de uma mulher negra de cabelo cacheado grisalho e curto. Seu rosto está inclinado para a esquerda e ela está séria.
Sandra Chaves, coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN)

Há mais de 40 anos, a nutricionista Sandra Chaves pesquisa sistemas alimentares. Os anos na academia permitiram o contato com pesquisas sobre alimentação de povos indígenas e de terreiro, que atribuem outros significados à comida.

Segundo a coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), mais do que uma fonte de nutrientes, nesses sistemas, a comida precisa ser sustentável, ou seja, sua produção não pode promover a degradação ambiental. Diante disso, ela reforça a importância de incentivar a alimentação ancestral como forma de mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

Na segunda entrevista da série que integra o projeto Caminhos da Alimentação: o que chega à mesa das mulheres negras, Chaves lembra que é preciso “reaprender a comer”.

Leia  a entrevista:

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Qual é o papel da alimentação na história da evolução da espécie humana?

A produção de alimentos foi exatamente a razão pela qual os seres humanos formaram comunidades e deixaram de ser nômades. Alguns estudiosos da antropologia, baseados na teoria darwinista, mostram que a própria conformação do corpo humano é fruto da evolução alimentar. Segundo essa teoria evolucionista, eles não eram eretos e, à medida em que sentiram a necessidade de buscar alimentos em pontos mais altos, a postura física foi mudando. O desenvolvimento do maxilar teve a ver com a passagem do herbívoro para o carnívoro. Nós não podemos pensar a história da humanidade sem pensar no alimento, que é o nosso combustível. E essa mudança não envolve apenas o aspecto nutricional, mas também social e cultural. Nos reunimos em torno da alimentação, festejamos com alimentação.

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Falar de sistema alimentar é falar de nutrição, mas também de tradição, história, saúde e doença. Exatamente essa é a circunstância a que estamos chegando na sociedade, ou seja, falar de alimento atrelado à doença.

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Qual momento marca uma mudança na evolução da cultura alimentar do ser humano?

O processamento dos alimentos é uma demanda que surge a partir da complexificação da sociedade. A salga ou a desidratação são os primeiros métodos de processamento, que permitiam guardar os alimentos. Dando um salto grande na história, no século XX, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, muita tecnologia alimentar foi desenvolvida para garantir o alimento dos soldados em campo e o mínimo de alimentação para as pessoas que estavam na cidade. Muitos processos industriais foram desenvolvidos nessa época e a tecnologia teve um papel importante.

A gente não é contra a tecnologia alimentar. O problema é quando começamos a construir um pseudo alimento, que quase não tem alimento, que tem aditivos alimentares. O problema é quando a gente criminaliza a manteiga, de origem animal, e valoriza a margarina, que é um derivado e chegou a ter 147 aditivos alimentares. A gente precisa resgatar aqui o conceito do Marxismo clássico do fetiche da mercadoria. Fetiche por esse alimento embalado e agraciado com o marketing alimentar que foi valorizado, enquanto os alimentos in natura foram criminalizados.

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O consumo de ultraprocessados entre as camadas mais pobres do Brasil tem crescido. Para as mulheres chefes de família, mães solo, esses alimentos se tornam a alternativa mais viável. A senhora considera essa tendência o momento de consagração do consumo desses alimentos no Brasil?

A combinação dos interesses da indústria com o crescimento da tecnologia alimentar e o marketing consagrou esse modelo de consumo. Além disso, nós fomos desconstruindo o que a gente chamava de sistema alimentar curto, ou seja, eu produzo o que consumo ou consumo algo que é produzido perto de mim.

Nós temos uma aglomeração de pessoas, às vezes com muitas dificuldades de acesso a saneamento básico, acesso limitado a água e sem terra para produzir seu alimento. Os estudos sobre ambientes alimentares mostram que já há a divisão de oásis, pântanos e desertos alimentares. O oásis é aquele ambiente alimentar onde você tem uma grande oferta de comida de verdade, de alimentos in natura. Os pântanos têm mais ou menos metade de ofertas de hortifruti e de processados e nos desertos predominam a oferta de alimentos ultraprocessados.

O trágico é que nos países onde foram feitos esses estudos, os desertos alimentares, vivem as populações mais vulnerabilizadas. Isso por causa da desigualdade, pela falta de acesso a renda, a condições de saneamento e porque esse tipo de alimento é de baixo custo. Você tem um biscoito recheado, com bastante açúcar, que custa R$2, e um molho de alface, que custa R$4. Quantas crianças vão se sentir mais saciadas com um molho de alface do que com um biscoito recheado?

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Há estudos clássicos que mostram que quanto mais baixa a renda da pessoa, menor é o acesso a informação alimentar. Então, as pessoas vão preferir um alimento que as deixam totalmente satisfeitas. É o famoso ‘alimento que dá sustância’, mas que, muitas vezes, não é um alimento saudável.

A senhora considera que os agricultores, assentados da reforma agrária, povos de terreiro e quilombolas representam o que ainda resiste daquela alimentação tradicional, ancestral, que faz parte da evolução dos seres humanos. Percebe que esses grupos são mais fortes na região Nordeste?

A alimentação ancestral, protagonizada pelas assentadas da reforma agrária, quilombolas e indígenas, é a cultura que resiste, a tradição que resiste.  Ela não foi contaminada por esses sabores, por esse marketing. Apesar da tragédia que foi a pandemia, ela lançou luz sobre a força desse sistema alimentar. É impressionante como a produção agroecológica conseguiu se manter e até crescer nesse cenário tão difícil que o Brasil enfrentou.

Hoje, nós temos Armazéns do Campo, Armazém de Raízes, temos feiras agroecológicas em várias capitais. Ainda é pouco, mas já é um reconhecimento. Outro problema é que, infelizmente, numa capital como Salvador, por exemplo, as feiras agroecológicas estão nos bairros de classe média e média alta, não nos bairros mais populares. O que, hoje, o capital [sistema]  chama de Plantas Alimentícias não Convencionais (Pancs), na verdade, são os alimentos que fazem parte dos quintais da infância na alimentação ancestral. É a nossa comida do quintal. É a folha de taioba, a bertalha, o bredo, que foram abandonados pelo que vem no pacote, na caixinha, no vidro.

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A produção de indígenas e quilombolas tem outro significado, outra forma de pensar o alimento, preocupa-se com o solo, com a origem da água. Conhecendo a alimentação dos povos de terreiro é possível entender o que é energia vital, o que é ancestralidade no alimento. Há uma preocupação com a origem daquele alimento, pois não se pode oferecer qualquer coisa para o orixá.

Quais políticas públicas devem ser adotadas para ampliar o consumo de alimentos in natura e reduzir o consumo de ultraprocessados?

O projeto do capital é se espalhar. A mercantilização do alimento é uma das estratégias de crescimento do capital. Mas isso depende também da ausência de políticas públicas do Estado, favorecendo a produção e o consumo de alimentos in natura.

Os estudos sobre desertos alimentares mostraram que é preciso levar a produção agroecológica para mais perto das populações vulneráveis, garantindo preços acessíveis. É preciso fortalecer o consumo de alimentos in natura nas escolas, nos albergues, nos asilos, em todos os espaços em que os programas públicos possam favorecer o acesso a esse tipo de comida.

Outro ponto relevante envolve o modelo de produção. Eu sou nutricionista e professora há 44 anos e nunca vi se debater tanto sobre a relação entre sistema alimentar e problemas ambientais. Está cada vez mais claro que a forma como nos alimentamos tem a ver com o avanço das mudanças climáticas. Alguma mudança precisa acontecer ou vai ocorrer uma implosão. Nós precisamos fazer o caminho de volta. Temos que incentivar produções como as dos assentados da reforma agrária, temos que reaprender a comer, a viver em sociedade, não só na vida virtual. O futuro é ancestral.

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Adriana Amâncio

Jornalista formada pela Universidade Joaquim Nabuco (PE) com 25 anos de experiência em assessoria de comunicação e reportagem nas áreas de direitos humanos, gênero e meio ambiente. É da equipe Inclusão e Diversidade do Colabora – jornalismo sustentável, e já assinou matérias em veículos como o O Joio e o Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo, ((o)) Eco e Saiba Mais e assinou reportagens para o The Brazilian Report nas eleições 2022. Venceu o edital “Primeira Infância e a cobertura das eleições”, realizado pelos veículos Nós, Mulheres da Periferia, Alma Preta Jornalismo, Amazônia Real e Marco Zero Conteúdo, com o apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Já recebeu o Prêmio Sassá de Direitos Humanos, além de ser premiada por As Amazonas, Abraji e pela Embaixada dos Estados Unidos com o podcast “Cidadãs das Águas”, no curso Podcast: o seu conteúdo para o mundo.

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