Antropóloga critica “postura salvadora do feminismo ocidental”

Pesquisadora da USP, Francirosy Barbosa afirma que é fundamental ouvir o que as afegãs querem porque suas prioridades não são as mesmas que as das mulheres ocidentais; segundo ela, a obrigatoriedade da burca e a proibição de frequentar a escola são radicalismos que não aparecem no Alcorão

Com a tomada do poder em Cabul pelo Talibã na última semana, muito tem se falado sobre o futuro das mulheres afegãs. Veículos de imprensa internacionais e agências de notícias noticiam que as mulheres na  capital do Afeganistão não saem mais de casa e muitas  estão aterrorizadas com a perspectiva de viver sob o domínio do grupo e com a possibilidade de perder os direitos sociais e econômicos que conquistaram nas últimas duas décadas. Até o momento, o Talibã tem tentado passar uma imagem de “moderado”, mas os afegãos não estão convencidos de que o grupo fará um governo diferente daquele que instaurou entre 1996 e 2001, quando adotou uma visão extremamente rigorosa da lei islâmica (sharia) e impôs restrições de locomoção, estudo e trabalho para as mulheres. Na primeira entrevista coletiva do Talibã desde que voltou ao poder, o porta-voz do grupo, Zabihullah Mujahid,  afirmou que vão respeitar os direitos das mulheres, desde que dentro das normas da lei islâmica, sem especificar como será feito.  

Em entrevista à Gênero e Número, Francirosy Campos Barbosa, antropóloga,  pesquisadora no Departamento de  Psicologia Social na Universidade de São Paulo e pós-doutoranda pela Universidade de Oxford fala sobre a incerteza do impacto da  ascensão do grupo em relação aos direitos das mulheres afegãs, explica o uso da burca por muçulmanas e critica a postura de “salvadoras” do feminismo ocidental diante das mulheres afegãs e muçulmanas.

 “Precisamos parar com essa ideia de que precisamos “salvar” outras mulheres. As afegãs têm suas próprias agendas, seus movimentos, e o que é necessário é apoiar o movimento das mulheres afegãs (…) O que as ocidentais fazem é um “feminismo sinhá”. Se não estiverem vestidas como elas, não são vistas como mulheres livres. É um feminismo que dita regras de como as mulheres devem ser”, critica.

Leia a entrevista completa:

Qual o impacto da ascensão do grupo ao poder para os direitos das mulheres conquistados nos últimos 20 anos?

Não foi uma surpresa a tomada de poder do Talibã. Foi uma retomada pensada e amarrada. Esse Talibã de agora não é o mesmo de 2001, mas ao mesmo tempo, é muito cedo para dizer o que ele é. Devemos esperar um pouco mais para entender quem é esse e como ele vai se manter no poder. As mulheres, por já terem sofrido com o Talibã antes, é claro que vão se esconder nesse momento até terem certeza do que vai acontecer. Elas estão se precavendo. O que vai acontecer só o tempo dirá.

Os talibãs têm dito repetidamente que os direitos das mulheres serão protegidos sob seu governo. É possível acreditar nesse tom moderado do grupo terrorista sobre as mulheres?

É possível. Como estamos em um outro contexto, 20 anos depois da primeira tomada do poder, muita coisa mudou nesse período. Não estou dizendo que o Talibã mudou a ponto de criar a sociedade que eu quero viver, mas eu sei que não é o mesmo grupo de antes. Se eles preservarem os direitos e conquistas das mulheres, já é um avanço.

Precisamos entender se vai ser um estado teocrático, por exemplo, em que as mulheres devem usar lenço e não burcas.  A obrigatoriedade de as mulheres usarem burcas ou não estudarem não é do estado teocrático, é radicalismo. Não é nem fundamentalismo religioso, porque seguir os fundamentos da religião não tem problema, a questão é o extremismo. O islã não proíbe as mulheres de estudarem, pelo contrário, estimula as mulheres a buscarem conhecimento. Eu não imagino que o Talibã vai sair fechando as escolas para as mulheres, mas também não posso afirmar que isso não vai acontecer. Ainda está tudo incerto.

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Um dos pontos de discussão sobre as restrições dos direitos das mulheres com a tomada do poder pelo Talibã é a possível obrigatoriedade do uso da burca (traje que cobre completamente o corpo da mulher, com uma treliça estreita à altura dos olhos). Qual a sua avaliação sobre isso?

O uso da burca não é um fundamento da religião. É uma vestimenta daquele contexto. Por incrível que pareça, foi uma invenção das mulheres pachto, etnia da qual emerge o Talibã. Elas inventaram porque, na região que estavam, as mulheres eram minoria e não queriam ser notadas ao sair nas ruas. É uma questão cultural. Quando o Talibã toma posse, ele começa a obrigar as mulheres a usar essa vestimenta. Mas isso não quer dizer que todas devem se vestir assim. O Alcorão [livro sagrado dos mulçumanos] fala sobre se vestir e se comportar modestamente em público, e no caso das mulheres, sobre cobrir a cabeça para sair de casa, mas é cobrir com um lenço, e não o uso da burca e nem cobrir o rosto, mãos e pés. As mulheres têm livre arbítrio, assim como em outras religiões monoteístas, para usarem ou não o lenço.  Existem mulheres que não usam lenço, e isso não quer dizer que elas não praticam a religião. 

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O que as ocidentais fazem é um “feminismo sinhá”; se não estiverem vestidas como elas,  não são vistas como mulheres livres. É um feminismo que dita regras de como as mulheres devem ser. Falta uma aproximação real do feminismo ocidental com as mulheres muçulmanas.

A salvação das mulheres afegãs vem do ocidente?

De jeito nenhum. Temos que parar com essa ideia de que precisamos “salvar” outras mulheres. As afegãs têm suas próprias agendas, seus movimentos, e o que é necessário é apoiar o movimento dessas mulheres. No Brasil, chegaram a montar um grupo de whatsapp para “salvar” as afegãs. É para rir. Não é possível que existam mulheres que tenham a prepotência de achar que vão salvar as mulheres afegãs. 

O que as ocidentais fazem é um “feminismo sinhá”; se não estiverem vestidas como elas,  não são vistas como mulheres livres. Na França, as mulheres muçulmanas são proibidas de usar burquinis [um maiô usado por muçulmanas que cobre da cabeça aos pés] nas praias. Por isso, as feministas não lutam. É um feminismo que dita regras de como as mulheres devem ser. Falta uma aproximação real do feminismo ocidental com as mulheres muçulmanas. 

E para as que quiserem ajudar, primeiro é necessário ouvir o que as afegãs querem. E muitas vezes as suas demandas vão ser diferentes das de  mulheres ocidentais. É preciso respeitar isso. Se elas não quiserem tirar a burca, é um direito delas. Não podemos tirar a força e o protagonismo delas. O protagonismo não é nosso. 

"Precisamos parar com essa ideia de que precisamos  'salvar' outras mulheres", destaca a pesquisadora Francirosy Barbosa | Foto: Arquivo Pessoal

A situação do Afeganistão pode levar a um aumento da islamofobia em outros países, como o Brasil?

A minha grande pesquisa nesse momento é a islamofobia. O maior gatilho de islamofobia que tivemos na história foi o 11 de setembro, mas toda vez que tem algum atentado essa reação contra muçulmanos volta com força. Com a volta do Talibã ao poder agora, começam a sair reportagens e informações deturpadas sobre o islamismo. E quem não conhece a religião e a cultura vai absorver essas informações, reforçando estereótipos, preconceito e violência. O trabalho que fazemos na academia é exatamente para tentar romper com isso. Ainda assim é difícil. E a islamofobia sempre reverbera no Brasil. Não temos como fugir. Já estamos percebendo isso.

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A obrigatoriedade de as mulheres usarem burcas ou não estudarem não é do estado teocrático, é radicalismo. Não é nem fundamentalismo religioso, porque seguir os fundamentos da religião não tem problema, a questão é o extremismo. O islã não proíbe as mulheres de estudarem, pelo contrário, estimula as mulheres a buscarem conhecimento.

Como a islamofobia impacta a vida das mulheres muçulmanas?

Para os ocidentais, as mulheres muçulmanas são coitadas, oprimidas, inferiores. Até a sua sexualidade é colocada em xeque, como se fossem proibidas de ter prazer.  As pessoas começam a criar imaginários da religião com base na falta de conhecimento.

O nome “feminismo islâmico” é um nome dado pelos ocidentais, e não pelas muçulmanas, a partir da luta das mulheres pelos seus direitos. Isso gera uma confusão na comunidade, porque alguns muçulmanos acham que feminismo islâmico é algo da religião e não um movimento social. As feministas islâmicas não necessariamente querem as mesmas coisas que as feministas seculares. Dentro do próprio feminismo islâmico existem vários tipos de feminismo.

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Como falar de violência e opressão de grupos, principalmente mulheres e população LGBT+, por fundamentalistas islâmicos sem culpabilizar toda a cultura islâmica? 

A única maneira é que as pessoas estudem e busquem informações, ouçam pesquisadores e as pessoas muçulmanas. A falta de conhecimento só traz ruído e leva a maior islamofobia. Já é possível perceber o aumento da islamofobia nesse momento. As pessoas não fazem distinção entre Talibã, terrorismo e islamismo. No Brasil, veem uma mulher de lenço e acham que faz parte do mesmo grupo e pensamento. É por isso que temos que ter cuidado com as informações que passamos adiante, porque gera islamofobia e violência contra as nossas mulheres. É assustador.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É gerente de jornalismo e vice-presidente da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de seis anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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