Antropóloga critica “postura salvadora do feminismo ocidental”

Pesquisadora da USP, Francirosy Barbosa afirma que é fundamental ouvir o que as afegãs querem porque suas prioridades não são as mesmas que as das mulheres ocidentais; segundo ela, a obrigatoriedade da burca e a proibição de frequentar a escola são radicalismos que não aparecem no Alcorão

Afghan women attend one of the almost three thousand literacy courses supported by the United Nations Children's Fund for nearly seventy eight thousand women last year. 29/Apr/2008. Bamyan, Afghanistan. UN Photo/Sebastian Rich. www.unmultimedia.org/photo/

Com a tomada do poder em Cabul pelo Talibã na última semana, muito tem se falado sobre o futuro das mulheres afegãs. Veículos de imprensa internacionais e agências de notícias noticiam que as mulheres na  capital do Afeganistão não saem mais de casa e muitas  estão aterrorizadas com a perspectiva de viver sob o domínio do grupo e com a possibilidade de perder os direitos sociais e econômicos que conquistaram nas últimas duas décadas. Até o momento, o Talibã tem tentado passar uma imagem de “moderado”, mas os afegãos não estão convencidos de que o grupo fará um governo diferente daquele que instaurou entre 1996 e 2001, quando adotou uma visão extremamente rigorosa da lei islâmica (sharia) e impôs restrições de locomoção, estudo e trabalho para as mulheres. Na primeira entrevista coletiva do Talibã desde que voltou ao poder, o porta-voz do grupo, Zabihullah Mujahid,  afirmou que vão respeitar os direitos das mulheres, desde que dentro das normas da lei islâmica, sem especificar como será feito.  

Em entrevista à Gênero e Número, Francirosy Campos Barbosa, antropóloga,  pesquisadora no Departamento de  Psicologia Social na Universidade de São Paulo e pós-doutoranda pela Universidade de Oxford fala sobre a incerteza do impacto da  ascensão do grupo em relação aos direitos das mulheres afegãs, explica o uso da burca por muçulmanas e critica a postura de “salvadoras” do feminismo ocidental diante das mulheres afegãs e muçulmanas.

 “Precisamos parar com essa ideia de que precisamos “salvar” outras mulheres. As afegãs têm suas próprias agendas, seus movimentos, e o que é necessário é apoiar o movimento das mulheres afegãs (…) O que as ocidentais fazem é um “feminismo sinhá”. Se não estiverem vestidas como elas, não são vistas como mulheres livres. É um feminismo que dita regras de como as mulheres devem ser”, critica.

Leia a entrevista completa:

Qual o impacto da ascensão do grupo ao poder para os direitos das mulheres conquistados nos últimos 20 anos?

Não foi uma surpresa a tomada de poder do Talibã. Foi uma retomada pensada e amarrada. Esse Talibã de agora não é o mesmo de 2001, mas ao mesmo tempo, é muito cedo para dizer o que ele é. Devemos esperar um pouco mais para entender quem é esse e como ele vai se manter no poder. As mulheres, por já terem sofrido com o Talibã antes, é claro que vão se esconder nesse momento até terem certeza do que vai acontecer. Elas estão se precavendo. O que vai acontecer só o tempo dirá.

Os talibãs têm dito repetidamente que os direitos das mulheres serão protegidos sob seu governo. É possível acreditar nesse tom moderado do grupo terrorista sobre as mulheres?

É possível. Como estamos em um outro contexto, 20 anos depois da primeira tomada do poder, muita coisa mudou nesse período. Não estou dizendo que o Talibã mudou a ponto de criar a sociedade que eu quero viver, mas eu sei que não é o mesmo grupo de antes. Se eles preservarem os direitos e conquistas das mulheres, já é um avanço.

Precisamos entender se vai ser um estado teocrático, por exemplo, em que as mulheres devem usar lenço e não burcas.  A obrigatoriedade de as mulheres usarem burcas ou não estudarem não é do estado teocrático, é radicalismo. Não é nem fundamentalismo religioso, porque seguir os fundamentos da religião não tem problema, a questão é o extremismo. O islã não proíbe as mulheres de estudarem, pelo contrário, estimula as mulheres a buscarem conhecimento. Eu não imagino que o Talibã vai sair fechando as escolas para as mulheres, mas também não posso afirmar que isso não vai acontecer. Ainda está tudo incerto.

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Um dos pontos de discussão sobre as restrições dos direitos das mulheres com a tomada do poder pelo Talibã é a possível obrigatoriedade do uso da burca (traje que cobre completamente o corpo da mulher, com uma treliça estreita à altura dos olhos). Qual a sua avaliação sobre isso?

O uso da burca não é um fundamento da religião. É uma vestimenta daquele contexto. Por incrível que pareça, foi uma invenção das mulheres pachto, etnia da qual emerge o Talibã. Elas inventaram porque, na região que estavam, as mulheres eram minoria e não queriam ser notadas ao sair nas ruas. É uma questão cultural. Quando o Talibã toma posse, ele começa a obrigar as mulheres a usar essa vestimenta. Mas isso não quer dizer que todas devem se vestir assim. O Alcorão [livro sagrado dos mulçumanos] fala sobre se vestir e se comportar modestamente em público, e no caso das mulheres, sobre cobrir a cabeça para sair de casa, mas é cobrir com um lenço, e não o uso da burca e nem cobrir o rosto, mãos e pés. As mulheres têm livre arbítrio, assim como em outras religiões monoteístas, para usarem ou não o lenço.  Existem mulheres que não usam lenço, e isso não quer dizer que elas não praticam a religião. 

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O que as ocidentais fazem é um “feminismo sinhá”; se não estiverem vestidas como elas,  não são vistas como mulheres livres. É um feminismo que dita regras de como as mulheres devem ser. Falta uma aproximação real do feminismo ocidental com as mulheres muçulmanas.

A salvação das mulheres afegãs vem do ocidente?

De jeito nenhum. Temos que parar com essa ideia de que precisamos “salvar” outras mulheres. As afegãs têm suas próprias agendas, seus movimentos, e o que é necessário é apoiar o movimento dessas mulheres. No Brasil, chegaram a montar um grupo de whatsapp para “salvar” as afegãs. É para rir. Não é possível que existam mulheres que tenham a prepotência de achar que vão salvar as mulheres afegãs. 

O que as ocidentais fazem é um “feminismo sinhá”; se não estiverem vestidas como elas,  não são vistas como mulheres livres. Na França, as mulheres muçulmanas são proibidas de usar burquinis [um maiô usado por muçulmanas que cobre da cabeça aos pés] nas praias. Por isso, as feministas não lutam. É um feminismo que dita regras de como as mulheres devem ser. Falta uma aproximação real do feminismo ocidental com as mulheres muçulmanas. 

E para as que quiserem ajudar, primeiro é necessário ouvir o que as afegãs querem. E muitas vezes as suas demandas vão ser diferentes das de  mulheres ocidentais. É preciso respeitar isso. Se elas não quiserem tirar a burca, é um direito delas. Não podemos tirar a força e o protagonismo delas. O protagonismo não é nosso. 

"Precisamos parar com essa ideia de que precisamos  'salvar' outras mulheres", destaca a pesquisadora Francirosy Barbosa | Foto: Arquivo Pessoal

A situação do Afeganistão pode levar a um aumento da islamofobia em outros países, como o Brasil?

A minha grande pesquisa nesse momento é a islamofobia. O maior gatilho de islamofobia que tivemos na história foi o 11 de setembro, mas toda vez que tem algum atentado essa reação contra muçulmanos volta com força. Com a volta do Talibã ao poder agora, começam a sair reportagens e informações deturpadas sobre o islamismo. E quem não conhece a religião e a cultura vai absorver essas informações, reforçando estereótipos, preconceito e violência. O trabalho que fazemos na academia é exatamente para tentar romper com isso. Ainda assim é difícil. E a islamofobia sempre reverbera no Brasil. Não temos como fugir. Já estamos percebendo isso.

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A obrigatoriedade de as mulheres usarem burcas ou não estudarem não é do estado teocrático, é radicalismo. Não é nem fundamentalismo religioso, porque seguir os fundamentos da religião não tem problema, a questão é o extremismo. O islã não proíbe as mulheres de estudarem, pelo contrário, estimula as mulheres a buscarem conhecimento.

Como a islamofobia impacta a vida das mulheres muçulmanas?

Para os ocidentais, as mulheres muçulmanas são coitadas, oprimidas, inferiores. Até a sua sexualidade é colocada em xeque, como se fossem proibidas de ter prazer.  As pessoas começam a criar imaginários da religião com base na falta de conhecimento.

O nome “feminismo islâmico” é um nome dado pelos ocidentais, e não pelas muçulmanas, a partir da luta das mulheres pelos seus direitos. Isso gera uma confusão na comunidade, porque alguns muçulmanos acham que feminismo islâmico é algo da religião e não um movimento social. As feministas islâmicas não necessariamente querem as mesmas coisas que as feministas seculares. Dentro do próprio feminismo islâmico existem vários tipos de feminismo.

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Como falar de violência e opressão de grupos, principalmente mulheres e população LGBT+, por fundamentalistas islâmicos sem culpabilizar toda a cultura islâmica? 

A única maneira é que as pessoas estudem e busquem informações, ouçam pesquisadores e as pessoas muçulmanas. A falta de conhecimento só traz ruído e leva a maior islamofobia. Já é possível perceber o aumento da islamofobia nesse momento. As pessoas não fazem distinção entre Talibã, terrorismo e islamismo. No Brasil, veem uma mulher de lenço e acham que faz parte do mesmo grupo e pensamento. É por isso que temos que ter cuidado com as informações que passamos adiante, porque gera islamofobia e violência contra as nossas mulheres. É assustador.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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