“Eu continuo fazendo reportagem, mas tive que abrir mão de algumas pautas”

Schirlei Alves é jornalista especializada em jornalismo investigativo e acumula ampla produção de reportagens sobre violência contra as mulheres. Atualmente é jornalista autônoma, colaborando como freelancer para diferentes veículos. É uma das 7 pessoas entrevistadas em profundidade para a pesquisa “O Impacto da Desinformação e da Violência Política na Internet contra jornalistas, Comunicadoras e Pessoas LGBT+”

Você pode falar sobre a sua formação, suas áreas de atuação como jornalista e comunicadora?

Eu sou formada há 13 anos e atuei sempre, a maior parte do tempo, como repórter. Fui editora também. Trabalhei nos principais veículos de comunicação de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, então trabalhei no A Notícia, no Diário Catarinense, na Zero Hora, no Diário Gaúcho, fazia participações nas rádios também. CBN diário e Rádio Gaúcha, trabalhei muito com jornalismo que tem como ponto de partida os direitos humanos. Trabalhei muito com situações de segurança pública. Quando eu comecei, eu fui para o Canadá. Fiz o meu estágio em um jornal lá que é o The Epoch Times, trabalhei três meses nesse jornal. Quando eu retornei, comecei a trabalhar numa TV local, passei para rádio, trabalhei numa rádio e aí depois eu comecei nesses veículos de jornal impresso. A Notícias do Dia foi o último veículo tradicional que eu trabalhei como editora, e sai em setembro de 2020. Passei a trabalhar exclusivamente como freelancer. Eu tenho escrito para o Intercept, o Joio e o Trigo. Eu já fiz matérias para a BBC, Estadão, Portal Catarinas. Acho que é isso. E agora eu estou participando também de um projeto da Agência Lupa, que é distribuição de informação checada para uma rede de rádios comunitárias e universitárias, e continuo fazendo as minhas matérias. Basicamente é isso.

Você percebe que há uma naturalização do discurso de ódio no meio jornalístico? E se sim, de que maneira?

Eu não mencionei antes que uma temática que eu trabalhei muito desde o início da minha carreira foi a violência contra a mulher, violência de gênero. Então esse sempre foi um assunto delicado de tratar mesmo dentro das Redações. Sempre tinha que ter uma justificativa, um super número para abordar o assunto. Sempre senti uma certa resistência. Vou dar um exemplo. Uma vez eu fui participar de um evento do Instituto Patrícia Galvão, em São Paulo, sobre cobertura de feminicídio. E aí aquela discussão foi muito importante para mim porque foi uma virada de chave. Isso já faz bastante tempo, a gente debatia o uso do termo “crime passional”, a gente usava muito. Jornalismo usava muito o termo “crime passional” e aí se entendeu que não cabia mais usar o “crime passional” que não fazia o menor sentido. O feminicídio, a Lei do Feminicídio, veio justamente acabar com essa ideia de passionalidade. E eu levei isso com uma certa empolgação para a Redação, pois eu imaginava que ia ser super bem aceita, e na verdade eu enfrentei várias resistências e tive que fazer um trabalho de um grande esforço exaustivo para explicar o porquê, né? Explicar tecnicamente por qual razão eu não deveria mais usar esse termo. Esse é um assunto que eu percebo que sempre tem um embate, provoca muito as emoções das pessoas. Eu fiz várias matérias investigativas, várias denúncias e obviamente isso incomoda pessoas e instituições. Então fui acostumada a ter que lidar com processo, mas era diferente porque o alvo eram os veículos.  A gente, repórter, tinha uma certa proteção. Tinha equipe jurídica do veículo para responder. E também havia uma escolha de “não quero que meu nome apareça na reportagem”. Às vezes a polícia abria uma investigação e te chamava pra prestar um depoimento. Mas de uns tempos pra cá, especialmente eu acho que durante o governo Bolsonaro, a gente tem percebido, eu tenho percebido, até mesmo olhando a situação dos colegas, que os ataques têm sido muito mais pessoais, voltados diretamente para o jornalista. E isso é uma forma de intimidar e de silenciar também o profissional. Especialmente quem trabalha como freelancer, como agora eu tô trabalhando. É algo que te deixa um pouco mais insegura.  Porque você não tem um veículo por trás de ti, e tu estás trabalhando sozinha. E claro que quando tu faz uma matéria para um veículo, aquele veículo também se responsabiliza, mas tu não faz parte daquele veículo. Depois do que aconteceu com a reportagem da Mariana [caso Mariana Ferrer, em que Schirlei realizou reportagem onde revelava a tese do “estupro culposo” e a humilhação vivenciada pela vítima diante da Justiça], por exemplo, todo o suporte jurídic, eu posso dizer que estou sendo bem atendida, mas quando tu vai fazer uma outra matéria, tu fica pensando duas vezes. Eu continuo fazendo reportagem, mas algumas pautas eu abri mão porque ia ter que bater de frente com os mesmos poderes aqui em Santa Catarina e eu falei “bom não é o momento para isso”. Orientei a pessoa que trouxe a denúncia para mim a procurar um outro jornalista. Talvez se fosse em um momento diferente eu teria coragem de pegar essas pautas e seguir fazendo o meu trabalho. Então acho que temos dois momentos distintos, eu pelo menos senti isso na minha carreira, essa diferença. 

E quanto a esses discursos de ódio proferidos contra mídia, contra jornalista, você consegue identificar mais ou menos o perfil de quem prefere? Quem são essas pessoas que fazem esse discurso? 

Eu não posso falar de um modo geral, mas a partir das experiências que eu vivi, posso dizer que eu recebi uma avalanche de mensagens de ódio e é um ataque muito rápido e muito articulado. As mensagens são todas muito parecidas, os compartilhamentos de postagens prontas, digamos assim, montadas, como uma arte, sabe? Elas são compartilhadas em massa por vários perfis e eu via muitos perfis falsos e muitos perfis também que já tinham um histórico [de ataque]. Se você olhasse o histórico daquele perfil, você via que era um histórico de ataques a outras pessoas por outras pautas, por outras situações também. 

Você avalia que o bolsonarismo tem alguma relação com isso? Assim como o governo do Bolsonaro e os discursos de ódio? 

A gente tem visto situações em que o presidente incita esse discurso contra jornalistas. A gente vê o caso da Patrícia Campos Mello. Eu acho que encoraja as pessoas a reproduzirem esse tipo de discurso de ódio contra a imprensa. Era algo que já vinha acontecendo, não começou no governo Bolsonaro. Já era um movimento que vinha acontecendo, mas que se intensificou.

Você avalia que o contexto da pandemia escalou de alguma maneira a propagação de discursos de ódio?

Eu avalio que pode ter ajudado sim [a escalar]. Porque as pessoas estão muito mais presas à internet, conectadas ali. Mas eu acho que mexeu com os ânimos das pessoas também. Nunca é apenas uma coisa. Entendo que é um somatório de situações, mas eu acho que intensifica, eu acho que contribui, até porque estou trabalhando nesse projeto de checagem da Lupa, que citei anteriormente, e a gente percebe muita produção de informação falsa  relacionada à pandemia. Muita, muita, muita. Então a gente está o tempo inteiro tendo que verificar essas informações que são produzidas, fabricadas mesmo. Esse movimento de informação falsa ganhou um “plus”, digamos, com a pandemia. 

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Às vezes a gente faz um trabalho muito de formiguinha e a indústria da desinformação parece ter muito mais braço para produzir. A gente, enquanto jornalista, tem que aprender a atingir o público em massa.

E como você percebe o fenômeno da desinformação e o impacto disso na sociedade e na prática do jornalismo?

É muito difícil tu fazer o teu trabalho e ter que ficar justificando. Eu percebo que as pessoas ficam muito no título, não leem a matéria. Às vezes fazemos um super trabalho jornalístico, pode ser algo que exigiu uma grande pesquisa, onde você fica meses trabalhando em cima de uma história, e aí quando você vai ver a repercussão, é uma repercussão tão rasa. Não é pela preocupação com a crítica, a crítica é importante, mas quando você percebe é bem Às vezes o questionamento até vem do que está dentro da matéria, ela leu a matéria, não apenas o título, mas não entendeu. Eu sinto que às vezes a gente faz um trabalho muito de formiguinha e que a indústria da desinformação parece ter muito mais braço para produzir. A gente, enquanto jornalista, tem que aprender a atingir o público em massa. A gente vê a desinformação chegando até as pessoas pelo WhatsApp, a gente tem que começar a chegar pelo WhatsApp também, com as nossas informações, com o que a gente apura. E a gente tem que fazer frente a isso, mas me parece realmente uma luta desigual. Eu percebi isso quando eu fui atacada porque os ataques começaram da noite para o dia e foi uma avalanche, era muita coisa, não tinha nem como monitorar tudo aquilo, sabe. E a informação não chega da mesma forma, não chega com a mesma potência, com a mesma força. Então, a gente tem que estudar esse fenômeno e encontrar caminhos para que o jornalismo consiga atingir mais pessoas, quebrar um pouco essa ideia de “esse monstro” que algumas pessoas fazem da imprensa, do jornalismo. A gente tem muitos trabalhos de jornalistas independentes que estão fazendo, acho, que uma terceira via, trazendo outro tipo de jornalismo, com posicionamento. Mas é isso, tem um público, tem um nicho que atinge. Então com esse trabalho da Lupa, por exemplo, do qual estou fazendo parte, estamos chegando a rádios comunitárias em lugares de “desertos de notícia”. Em muitas cidades, essas rádios são o único veículo da cidade. Isso tem um impacto. E esse lugar do impacto do jornalismo é muito importante. Outro dia eu fiz uma matéria para o O Joio e o Trigo sobre um programa do Governo Federal que não estava funcionando aqui em Santa Catarina porque o Governo Estadual tava exigindo uma nota eletrônica, sendo que eram produtores rurais que mal tinham acesso a internet, uma coisa tão simples de se resolver que ninguém estava resolvendo. Então a gente fez uma matéria, mostrou a situação e ele voltou a funcionar, as pessoas puderam tirar suas notas lá de papel, vender os seus produtos e a vida dessas pessoas que foi impactada, né? Então, eu fico tão feliz com esses resultados, sabe? Eu acho que sempre tem um impacto, por mais que a gente esteja aí na luta contra a desinformação, mas sempre pode ter impacto na vida de alguém, de uma comunidade, então isso é válido também. 

Você percebe que há uma perda de confiança na mídia por parte da sociedade? Considerando a existência de diferentes tipos de mídias, a hegemônica, a local… 

Nos veículos em que eu trabalhei e que eram mais voltados ao público local, acho que as pessoas se identificam com o veículo. Quando elas têm uma história com o veículo, por exemplo. Trabalhei em rádio, então as pessoas parecem que são tuas amigas. Elas falam, elas ligam para a rádio, e como a tua voz entra na rádio todos os dias, as pessoas, ouvintes, sentem como se tu fosse parte da família. Acho que o impacto local é diferente do impacto de um veículo grande, nacional. São públicos diferentes, eu acho também. Mas como eu falei, isso é mesmo percepção, pois não estou estudando isso. Mas sabemos que existe essa movimentação de tentar descredibilizar [a imprensa], especialmente veículos grandes, de orientação às pessoas. Algo como “Ó, não assista tal emissora. Não leia tal jornal”, e isso acaba tendo impacto, mas às vezes quando chega com uma outra opção, “ó, dá uma olhada aqui”. Eu já fiz esse exercício de fazer essa proposta para alguns colegas ou pessoas da família, “ó, dá uma olhada nesse site, olha as notícias que eles tão produzindo, eu já escrevi para esse site. O trabalho deles é de tal forma, é consistente”. Ou “olha esse site aqui, esse pessoal ganhou um prêmio internacional, tem uma relevância, que tal dar uma olhadinha nesse nessa outra opção?”. Realmente o veículo local tem essa responsabilidade gigante nas mãos de chegar até as pessoas. Então penso que o caminho é encontrar estratégias para chegar [até a audiência] e dizer: “olha só, a gente está trazendo essa proposta aqui, o que você acha de acompanhar e ver o nosso trabalho”.

Como você acha que o poder público tem atuado nessa temática da liberdade de imprensa? 

Nos últimos tempos, trabalhando em alguns veículos tradicionais, eu percebi mais influência do poder público nas decisões das pautas. Já acompanhei situações, e isso foi bem recente, onde ouvi “não, não vamos bater nesse nessa instituição porque a gente está tendo uma relação mais amigável”. Então eu percebi isso, aconteceu comigo de pautas serem barradas por  essa influência mais velada,  digamos assim, de patrocínio, enfim, de ter essa essa ligação com instituição pública. E claro, quando o poder público processa um jornalista, é uma forma de intimidar o trabalho dessa pessoa. Então eu acho que a gente tem visto mais ações judiciais movidas contra jornalistas, e eu acho que isso impacta, sim, no trabalho. Acho que isso mina um pouco o trabalho. Então de certa forma tem uma interferência, né? Eu estou também respondendo a processos, então é algo que te breca um pouco. Eu acho que barra um pouco a tua atuação. Às vezes até manifestações por meio de nota que trazem uma ideia, que movimenta uma ideia contrária ao trabalho do jornalista. Muitas vezes o fato de não se posicionar também, tem esse outro aspecto. Eu percebo que é muito difícil de conseguir um contraponto do poder público nos tempos atuais. É comum não conseguir entrevistar mais ninguém, é tudo por nota. Então também digo que isso de você não conseguir mais ter acesso ao poder público é bem prejudicial para o trabalho, para o exercício do trabalho do jornalista. Essa interferência [na liberdade de expressão] pode ocorrer de diversas formas. 

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Nunca tive medo de ser jornalista, nunca tive medo, sempre fui muito corajosa, sempre fiz muitas matérias, denúncias, sabe, envolvendo diferentes instituições de poder, mas pela primeira vez eu me senti intimidada e senti que havia um movimento para me calar mesmo”

Você poderia falar sobre ataques que sofreu na internet, o teor, o nível, o conteúdo, principalmente nos últimos cinco anos?

Antes do caso  Mariana Ferrer, eu não lembro de ter tido, de ter sofrido uma violência específica assim. Tiveram algumas situações pontuais, de algumas matérias, de ter manifestação nas redes sociais, de pessoas que não gostaram da reportagem. Mas eram coisas muito sutis. Nesse caso Mariana Ferrer foi bem violento, e eu de fato me senti vítima de uma a violência virtual. Foi uma avalanche, como já falei, de mensagens de ódio, de cunho misógino também, mensagens que questionavam  minha sanidade mental, o meu profissionalismo e insinuando várias coisas, como “ah, tu está sendo paga pra isso”. Foram diferentes formas de violência, até algumas mensagens com tom de ameaça, como “você merece uma bala na cabeça”, “o que é teu ta guardado”. Então são coisas que intimidam bastante porque é um volume muito grande, foi um volume muito grande, foram dois meses ininterruptos de mensagens todos os dias, me marcavam em post todos os dias. Vasculharam a minha vida, encontraram fotos minhas, vídeos, fizeram montagens, compartilharam meu endereço de e-mail e essas pessoas faziam convites para me atacarem. Era assim: “Ó, essa é a jornalista fulana de tal, essas são as redes dela, esse é o e-mail dela, vai lá, ataca ela”. Então tinha esse convite assim, e isso é muito assustador porque parece que não tem limite. Nos dias em que foi mais intenso, fiquei até com medo de sair de casa porque aqui em Florianópolis teve um ataque a um escritório, eu não sei muito bem o que aconteceu, mas acho que tacaram pedra, enfim, um escritório. Pensaram que era o escritório que defendia Mariana Ferrer e não era. Fiquei um tempo na casa da minha mãe por uma questão de segurança. Então foi muito intenso, foi algo inédito, que eu nunca tinha vivido, nunca imaginei que eu fosse viver na minha vida dessa forma. Nunca tive medo de ser jornalista, nunca tive medo, sempre fui muito corajosa, sempre fiz muitas matérias, denúncias, sabe, envolvendo diferentes instituições de poder, mas pela primeira vez eu me senti intimidada e senti que havia um movimento para me calar mesmo. E nesse caso específico eu acho que incomodou muito o fato de se discutir o que é consentimento. Acho que esse tema mexe muito, a gente está vendo agora o caso do Nego do Borel ali na Fazenda [programa A Fazenda], né? E eu acho que os argumentos são muito parecidos. Então havia um ódio muito grande contra Mariana e isso acabou se estendendo pra mim também. Porque já tinha uma rede articulada que atacava ela. Então essas pessoas acabaram me vendo como segundo alvo porque tinham pessoas que já vinham fazendo esses ataques. Essa foi a experiência mais drástica que eu tive, como eu falei, mudou minha forma de trabalhar, eu passei a assinar matérias com colegas, porque é uma forma também de dividir responsabilidade, uma forma de eu me sentir mais segura também. Eu não vou dizer que eu não tenho mais coragem, eu continuo, sim, sendo corajosa e fazendo os trabalhos, mas com muito mais certa cautela, sabe? Então, acho que isso impactou minha vida de diversas formas. Embora tenha tido um impacto muito positivo paras vítimas, com os desdobramentos de projetos de lei, de resolução do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] para a proteção das vítimas de violência sexual. Fiquei muito feliz com esses desdobramentos. 

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A gente publicou [a matéria] e começou a repercussão a crescer, a crescer, crescer: na sexta-feira eu dormi de um jeito e no sábado eu acordei de outro, completamente assustada com o que estava acontecendo, sem entender nada.

Você teve algum apoio e suporte jurídico nesse caso Mariana Ferrer? E você chegou a recorrer nas plataformas, nos meios digitais em que esses ataques aconteceram? 

O apoio jurídico eu recebi do Intercept, pela equipe jurídica deles. Então quanto a isso, foi desde o início apoio editorial, apoio jurídico, acho que quanto a isso não tive nenhum problema, foi bem tranquilo mesmo. O mais difícil é lidar emocionalmente mesmo com tudo isso. Houve uma articulação grande das redes, das instituições, a Repórteres sem Fronteiras foi uma que se manifestou, a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) foi, talvez, a primeira instituição que me deu apoio. E foi além da publicação de nota. Me ligavam todas as semanas para saber como é que eu estava, se eu precisava de alguma coisa, também me ofereceram suporte jurídico, mas aí como eu já tinha do Intercept não havia necessidade. Ainda assim recebi algumas orientações por telefone, com relação aos ataques nas redes. A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) também, o sindicato aqui dos jornalistas de Santa Catarina, foram muitas instituições assim que me deram esse suporte. A Artigo 19, com quem fiz várias reuniões. Foi muito legal isso. Só que o time das instituições não é o mesmo time da rede de ódio, sabe? Então, até falei isso em alguns eventos. Que a articulação seja mais rápida, e seja maior. Porque a rede de ódio é muito rápida, como eu já contei, foi da noite para o dia. Eu dormi de um jeito e acordei de outro. Eu lembro disso, do exato momento em que isso aconteceu. A gente publicou [a matéria] e começou a repercussão a crescer, a crescer, crescer: na sexta-feira eu dormi de um jeito e no sábado eu acordei de outro, completamente assustada com o que estava acontecendo, sem entender nada. Eu participei de uma reunião na ONU também, foi uma reunião virtual que reuniu várias instituições justamente para discutir sobre a proteção de jornalistas. Como que a gente vai agir a partir de agora? Porque além do meu caso, tiveram vários outros. Outras mulheres, principalmente. Foi um ano muito violento.  Eu até participei de um evento da Federação Nacional dos Jornalistas em que eu falei: “olha, vocês precisam muito olhar para o jornalista autônomo” porque a gente está tendo cada vez mais profissionais trabalhando por conta, a gente sabe que vaga em veículos está cada vez mais escassa. Faço parte de um  grupo  no WhatsApp, de jornalistas do Brasil inteiro, então a gente discute muito sobre a nossa profissão e eu vejo que tem muita gente trabalhando sozinho. E as instituições precisam olhar para esses jornalistas porque muitas investigações às vezes partem dessas pessoas. E aí como é que vai ser a proteção delas, né? Não só juridicamente, mas emocionalmente, de uma rede apoio, Para que a gente também sinta seguro de continuar fazendo o nosso trabalho.

Você acha que a questão de gênero, o fato de ser mulher ou  ser LGBT+, implica em algum tipo de violência específica no jornalismo? 

Com certeza. Mulheres e pessoas LGBTs são mais atacadas e vivenciam um ataque diferente porque vem com esse cunho misógino. As mensagens que eu recebi tinham isso “ah, sua vagabunda, sua puta, sua piranha”. Nada a ver com o material, com a reportagem, com o assunto. Tinha umas mensagens até que citavam o órgão genital feminino, então para que isso? E aí e essa coisa de questionar a tua capacidade profissional por ser mulher, eu sentia muito isso. “Ah, sua burra, ah, tu é louca”. Então esse discurso ele vem muito forte assim, é reproduzido há muitos anos. Hoje, com mais consciência, até eu consigo perceber, esse ataque de cunho misógino muito forte. E acompanhando outras colegas, em eventos em que elas também foram atacadas, foi tudo muito parecido. Passaram por situações muito parecidas de ter o seu profissionalismo questionado e muito nesse viés por ser mulher, a sua capacidade intelectual. É diferente dos ataques que acontecem com os homens. Eu acho que não tem muito esse viés da capacidade, né, essa coisa do da loucura “ah, porque você é louca”, enfim, acho que é muito forte isso. 

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Eu percebi que o tema que abordei no caso Mariana Ferrer provocou muito a ira das pessoas, porque as mensagens traziam muito esse ódio, essa raiva de estar discutindo isso. Eu acho que pra mim ficou muito claro, olhando depois, fazendo um garimpo das mensagens que eu recebi, que o que incomodou foi a discussão sobre consentimento

E você acredita que o vínculo empregatício, o tamanho da empresa, o alcance da mídia e o tema que está sendo publicado influenciam na possibilidade de sofrer algum tipo de ataque? 

Sim. Quando é um veículo pequeno, com alcance menor, veículo local, o impacto dele vai ser menor porque ele vai chegar a menos pessoas, a um público específico. Agora se é um veículo que tem uma abrangência nacional, que tem um público maior ou que tem uma atuação maior nas redes sociais, o impacto vai ser maior, a visibilidade, a repercussão. O vínculo empregatício eu não sei…As pessoas que fazem esses ataques não têm muito essa percepção do vínculo. Eu percebi que o tema que abordei no caso Mariana Ferrer provocou muito a ira das pessoas, porque as mensagens traziam muito esse ódio, essa raiva de estar discutindo isso. Eu acho que pra mim ficou muito claro, olhando depois, fazendo um garimpo das mensagens que eu recebi, que o que incomodou foi a discussão sobre consentimento. “Como assim agora a gente vai discutir se pode transar com uma mulher bêbada? Não quero discutir isso. Por que você está trazendo essa discussão?”, e muita raiva à vítima.

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Foram diferentes formas de violência, até algumas mensagens com tom de ameaça, como "você merece uma bala na cabeça", "o que é teu ta guardado". Então são coisas que intimidam bastante porque é um volume muito grande, foi um volume muito grande. Foram dois meses ininterruptos de mensagens todos os dias, me marcavam em post todos os dias

E para você a eleição do Bolsonaro como presidente afetou na violência e nos ataques contra jornalistas? 

Eu percebi esse movimento [de ataque] mais forte a partir das eleições de 2018 mesmo, entre colegas comecei a receber mensagens que eu não recebia antes, descredibilizando meu trabalho, trabalho de outros jornalistas. Foi algo que me surpreendeu, eu não imaginava que isso viria daquela forma, mas depois, a gente acompanhando, a gente percebeu que já era uma articulação que vinha acontecendo nos bastidores, antes mesmo de Bolsonaro, e se intensificou porque como ele também traz isso no discurso, acaba dando o aval para que as pessoas reproduzam esses discursos. Eu percebi algumas vezes que vinha um questionamento que não vinha antes, sem nem tentar ouvir ou dialogar. Algo muito sem diálogo, um ataque muito reproduzido, muito igual, as pessoas falarem as mesmas coisas, questionarem as mesmas coisas e eu tentar puxar para um diálogo, algo como “tá, então vamos conversar, vamos  trocar uma ideia”, mas esse diálogo não acontecia. Então eu senti que mudou um pouco isso. Às vezes eu faço uma matéria sobre direitos humanos, violência contra a mulher, e vêm questionar, mas não querem dialogar, não vêm com a intenção de diálogo, já vêm fazendo a crítica e não aceitam conversar. Eu sempre faço esse exercício: vou perder cinco minutos com a pessoa e vou tentar  estabelecer um diálogo, uma conversa. E não acontece. Nem evolui. Então é muito uma reprodução de um discurso que eu acho que as pessoas nem param pra pensar e refletir, tentar entender.

Sobre o período da pandemia, você avalia que afetou nessa violência contra jornalistas? 

Difícil dizer isso. Mas avalio que a pandemia intensificou tudo, tudo, acho que todas as emoções estiveram à flor da pele, tudo ficou muito maior, todas as opiniões ficaram maiores, acho que as pessoas passaram mais tempo em casa e passaram mais a opinar nas redes sociais, a falar mais nas redes sociais, mas talvez o que elas falam nas redes sociais não falariam pessoalmente. E o que sabemos é que as pessoas têm consumido muito rede social. Muito, muito, muito. A gente olha os videozinhos do Instagram, todo mundo dançando a mesma musiquinha, todo mundo fazendo a mesma performance. Então, é algo que se reproduz muito e não se tem muita reflexão. Acho que a reflexão…está um pouco prejudicada. Precisa haver uma pesquisa pra gente afirmar qualquer coisa sobre isso, mas eu acredito que a pandemia intensificou tudo, inclusive essas redes de ódio.

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“O meu [perfil] no Twitter eu também fechei depois dos ataques. E isso é algo que eu não sei explicar muito o porquê. Eu ainda preciso entender porque é algo emocional. Eu criei um bloqueio”

Atualmente você se sente segura exercendo a profissão de jornalista?

Eu me sinto menos segura do que eu já me senti há uns anos atrás. Eu nunca tive medo de nada, eu sempre fui muito muito corajosa e tudo o que vinha de pauta, que eu achava que tinha um ponto de atenção ali, que precisava investigar, eu sempre fui muito atrás.  Sempre fui muito de fuçar e de querer trazer as situações à tona, as denúncias, enfim. Agora eu acho que continuo sendo corajosa, mas é diferente. Acho que com mais cautela, com mais preocupação,como eu mencionei. Eu fiz um Instagram profissional, e eu recém tinha feito o perfil, sem pretensão nenhuma de me tornar influencer,  eu só queria compartilhar um pouco além da reportagem, trazer algumas informações sobre violência de gênero. E estava super legal assim. Muitas mulheres vinham procurar e tirar dúvida, e querendo saber mais, e eu fazendo essa ponte com  especialistas. “Ah, então eu vou trazer alguém pra falar sobre determinado tema”. Então eu estava nesse movimento, de trazer um pouco mais de informação pra quem me acompanha, pra quem já acompanha o meu trabalho. Mas depois do que aconteceu [dos ataques de ódio], eu perdi a vontade, fechei o perfil, não fiz mais, não produzi mais nenhum vídeo. Só compartilho algumas coisas que eu acho interessante, mas eu perdi a vontade de fazer. O meu [perfil no] Twitter eu também fechei. E isso é algo que eu não sei explicar muito o porquê. Eu ainda preciso entender porque é algo emocional. Eu criei um bloqueio, realmente mexeu demais comigo. Então quando eu olho para rede social, penso “ai, não quero”. Foi algo que mudou muito a minha forma de pensar, meu jeito de agir. Eu fechei as redes sociais e não sei quando que eu vou abrir de novo. Eu sei que essa é a intenção dessas pessoas também, de provocar esse desequilíbrio,  silenciar. Não é fácil ficar falando disso. Eu já pensei em parar [de falar]. Outro dia estava conversando com meu namorado, eu falei para ele “eu não vou mais dar entrevista, cheguei no meu limite, estou cansada”, mas eu sei da importância de falar sobre isso, sabe? Eu acho que é um dever também como jornalista falar e trazer essa perspectiva de quem vivenciou isso. Mas é emocionalmente desgastante. Eu participei de um evento em que uma pessoa falou algo como “mas quando a gente fala, a gente cura”. E eu acho que tem uma linha tênue, que entre a cura e tu reviver aquilo de novo, existe um sofrimento. E eu trabalhei muito com violência de gênero, violência contra a mulher, então eu passava isso do outro lado, de estar ouvindo a vítima que estava vivendo tudo aquilo de novo quando ela estava contando a história dela, então agora eu estou sentindo isso na pele. O quão difícil também é reviver, lembrar de tudo, pensar nisso tudo de novo, cada vez que a gente fala sobre o assunto. Para a gente encontrar caminhos, a gente precisa da pesquisa, do estudo, enfim, dessa articulação da rede, das instituições para pensar em alternativas para que o jornalismo continue acontecendo.

Agnes Sofia Guimarães Cruz

Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Segurança Pública. Já publicou em sites como Agência Pública, Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e também atua como consultora de projetos de pesquisa e orientados por dados. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.

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