“O trabalho doméstico é hereditário para as mulheres pretas”

Historiadora e rapper compila relatos de trabalhadoras domésticas em livro e mostra a herança familiar e escravocrata desse trabalho

Preta-Rara durante o lançamento do seu livro na Festa Literária das Periferias | Foto: Marina S Alves e Thais Ayomide/FLUP

"A senzala moderna é o quartinho da empregada”. É com essa analogia e subtítulo que a historiadora e rapper Preta-Rara lança o seu primeiro livro intitulado “Eu, Empregada Doméstica“ (Ed. Letramento), três anos após o surgimento de sua página no Facebook, de mesmo nome, onde ela recebe e publica relatos dessas trabalhadoras. A obra foi lançada durante a Festa Literária das Periferias (FLUP), no Rio de Janeiro.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), do IBGE, mostra que o país possui 6,24 milhões de empregados domésticos. Seis anos depois da aprovação da PEC das Domésticas (66/2012), lei que ampliou os direitos trabalhistas desses trabalhadores, a categoria cresce, mas o número de profissionais com carteira assinada em 2018 foi o menor desde 2012: apenas 28,4%.

Em entrevista à Gênero e Número, Preta-Rara falou sobre a história da sua família com o trabalho doméstico, o papel importante da educação para romper o ciclo e fez um balanço da PEC. “Foi no trabalho doméstico que eu entendi como o Brasil ainda tem esse ranço colonial. Compreendi ainda o quanto as trabalhadoras domésticas são vistas como propriedade privada dos patrões. O que eram as mulheres pretas escravizadas, hoje são as empregadas domésticas”, analisa.

Leia trechos da entrevista a seguir:

Gênero e Número: Como surgiu a ideia de criar a página e, a partir dela, transformar os relatos em livro?

A página foi criada em 2016, a partir dos meus relatos. Naquele ano, eu postei minha experiência como empregada doméstica e recebi muitas histórias iguais ou parecidas com a minha. Sendo historiadora, percebi a autenticidade e qualidade desses relatos e por isso criei a página. Só que no processo, eu vi que as redes sociais têm data de validade – o Orkut “já foi” e o Facebook está cambaleando -, então percebi que esses relatos não poderiam ficar só nas redes, mas tinham que ser mais concretizados. A partir disso, selecionei alguns e resolvi fazer o livro. Ele reúne relatos das trabalhadoras domésticas enviados de forma anônima. São inéditos, nunca foram postados na página, que tem mais de 5 mil relatos atualmente. No livro, trago essa narrativa de quanto o trabalho doméstico é hereditário para as mulheres pretas, por isso trago também o relato da minha avó, da minha mãe e o meu relato.

Gênero e Número: Quando começou a trabalhar como empregada doméstica e como foi esse período?

O trabalho doméstico não é uma opção para as mulheres pretas. Eu entrei nesse ramo porque demorei para entender que currículo com boa aparência nunca é personificado em uma pessoa preta. Eu entregava diversos currículos e nunca era chamada para trabalhar. O único lugar que me recebeu de braços abertos foi o trabalho doméstico. E eu sei que se acontecer alguma coisa na minha vida e eu precisar trabalhar, esse lugar vai estar à minha espera. Eu fui empregada doméstica durante sete anos por conta disso – comecei com 18 anos. Ali eu entendi como o Brasil ainda tem esse ranço colonial e essa questão do ato de servir. Compreendi ainda o quanto as trabalhadoras domésticas são vistas como propriedade privada desses patrões. O que eram as mulheres pretas escravizadas, hoje são as empregadas domésticas. No mesmo requinte de crueldade, de racismo recreativo, falam que você é “da família”, mas apagam todos os seus direitos trabalhistas. Essa frase para mim é muito dilacerante e problemática. Por muito tempo acreditei que já que eu era “da família” e não deveria reclamar e nem exigir meus direitos, deveria deixar a situação como estava.

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Currículo com boa aparência nunca é personificado em uma pessoa preta

Gênero e Número: Você foi a última mulher de sua família a trabalhar como doméstica e a primeira a chegar à universidade. Qual o impacto do atual desmonte da educação pública na redução do gap social impulsionada pelas cotas? 

As políticas públicas na educação foram muito importantes durante a gestão de Lula. Foi quando acreditamos que poderíamos ocupar a universidade não só para limpar, fazer a segurança ou a comida, mas para estar dentro da sala de aula enquanto aluno e professor, criadores da sua própria narrativa e protagonizando sua própria história. A educação é fundamental, mas também tem que estar atrelada a políticas públicas, porque vivemos em um país desigual em que a educação não chega para todos. No Brasil, o nível de analfabetismo das trabalhadoras domésticas é gigantesco. Em outros países, as pessoas que ocupam esse lugar em sua maioria são universitárias que querem arcar com seus estudos. No nosso país, é um cargo inferiorizado, em que não podem ter nível superior. Eu lembro que quando falava para uma ex-patroa que queria entrar na universidade ela me dizia que minha família estava predestinada a servir. A educação me possibilitou romper esse ciclo familiar e hereditário.

Gênero e Número: O subtítulo do livro “A senzala moderna é o quartinho de empregada” faz  uma relação direta entre o trabalho doméstico e a herança do período escravocrata.  Como se dá essa relação?

O nosso país é racista. Se a classe trabalhadora das domésticas não fosse de mulheres pretas, nós já teríamos avançado muito. É uma classe que ninguém liga. Só se importa quando ela falta ou não limpa direito, porque aí as pessoas percebem o valor do trabalho. Por isso, temos esse grande atraso em garantir direitos para essa classe. Antes da PEC das Domésticas, o Estado brasileiro não via o trabalho doméstico como qualquer outro. Então o próprio Estado já nos apaga. As leis existem, mas não há fiscalização.

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O que eram as mulheres pretas escravizadas, hoje são as empregadas domésticas.

Gênero e Número: A deputada federal Benedita da Silva, uma das responsáveis pela PEC das Domésticas e também ex-empregada, assinou a orelha de seu livro. Que balanço você faz da PEC, seis anos após sua promulgação e em um cenário de precarização cada vez maior do mercado de trabalho?

A PEC é uma ferramenta importante, mas não há fiscalização necessária e na própria lei há algumas lacunas. Recebo muitos relatos de patrões que registraram empregadas domésticas e depois fizeram acordos com elas para tirar o registro em carteira e pagá-las como diarista, por exemplo. Como diarista, a trabalhadora não tem direitos assegurados, não tem direito a férias, licença médica ou maternidade. Infelizmente, a PEC não garante os direitos para todas as trabalhadoras domésticas.

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O próprio Estado já nos apaga. As leis existem, mas não há fiscalização.

Gênero e Número: Você diz que pretende gerar incômodo com suas discussões e que o livro parte desse lugar. Como tem sido a recepção da obra?

Várias trabalhadoras domésticas têm comparecido aos lançamentos e podemos conversar nessas ocasiões. Tanto o livro quanto a página são um canal onde elas podem falar livremente de forma anônima. Eu fico feliz com o incômodo que vem gerando. Esse livro é para todos. Os patrões não se manifestaram sobre o livro ainda, mas sobre a página sim. Uma mulher veio falar comigo em um dos meus shows. Ela disse que da mesma forma que falo que o trabalho doméstico é hereditário, ser patrão também é. E que tem revisto suas atitudes com relação ao modo como trata suas trabalhadoras.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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