Pela primeira vez este ano, o evento de maior destaque no calendário literário nacional terá maioria feminina entre os convidados.
Por Natália Mazotte*
Foram necessários 15 anos para que a prestigiosa Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) formasse uma programação composta, em sua maioria, por mulheres. Em todas as edições do evento, a cada quatro convidados, apenas um nome foi feminino. Este ano, serão 24 autoras e 22 autores nos palcos do evento, que acontece de 26 a 30 de julho.
A Flip de 2017 também amplia a diversidade de vozes negras, que historicamente foram representadas por menos de 5% dos palestrantes: 25 em um total de 569. Seis mulheres negras compõem as mesas desta edição, o dobro do apresentado em todas as 14 anteriores somadas.
Os números evidenciam um esforço ativo da atual curadora do evento, Joselia Aguiar, de colocar a diversidade no centro do debate literário, o que vem ganhando fôlego desde 2014. “Há três anos, essa discussão praticamente não existia. Se alguém falasse disso, falaria sozinho. E as explicações são conservadoras: historicamente há mais homens escrevendo, fatores extraliterários não devem influenciar a escolha de autores”, afirmou em entrevista à Gênero e Número.
Segunda mulher a assumir a curadoria da Flip, Josélia precisou realizar uma pesquisa mais extensa para conseguir trazer novos nomes à cena. “Se eu me restringisse ao que grandes editoras, críticos ou jornais recomendam, conseguiria finalizar minhas escolhas muito mais rapidamente. Há um trabalho maior de buscar diversidade, conhecer novas obras e ver como elas dialogam. Esse esforço hoje pra mim é totalmente justificável, acho que o programa fica mais interessante. Mas outras pessoas podem preferir destacar nomes que estão mais à mão.”
A representatividade proposta pela organizacão do evento este ano, de fato, demanda ir além do mainstream literário, ainda composto predominantemente por homens brancos. É o que revela um estudo coordenado por Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB). Ao consultar 258 romances publicados entre 1990 e 2004 pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco, a pesquisadora encontrou 94% de autores brancos, 73% deles homens, do Rio de Janeiro e de São Paulo (47% e 21%, respectivamente).
A pesquisa ainda investigou a representação dos personagens nos romances brasileiros, e os números não diferem muito do perfil dos autores: maioria masculina (62%) e branca (92%). Embora já tenham superado os homens como público leitor no país, as mulheres, especialmente as mulheres negras, se veem menos refletidas nas obras literárias.
A representatividade das mesas da Flip desde que foi criada, portanto, não deixa de ser espelho de um mercado editorial pouco paritário em termos de gênero e raça.
Veja também: Levantamento – Gênero e Raça na Flip
Raízes históricas
O aumento da presença de autoras em Paraty é celebrado pela escritora Beatriz Bracher, co-fundadora da Editora 34. Com seis obras publicadas e diversos prêmios de literatura, é uma das cinco mulheres que, em 15 anos de Flip, foram convidadas a regressar aos palcos. Na ala masculina, 45 autores estiveram no festival mais de uma vez. “Nesses espaços, ter mais mulheres é muito importante, isso incentiva meninas a se enxergarem como potenciais autoras”, afirma.
Beatriz, contudo, não atribui aos editores a responsabilidade por catálogos predominantemente masculinos. “Vejo por mim e por meus colegas, estamos atentos e interessados em ter paridade de gênero e diversidade étnica. Mas chegam pouquíssimos originais. Os levantamentos se concentram em mostrar o número de publicações, mas só quem está dentro sabe o perfil das pessoas que enviam suas produções a uma editora”.
A dificuldade de ampliar o número de mulheres na literatura tem raízes históricas e decorre de práticas machistas que não são exclusivas deste campo cultural. O livro “Profissões para mulheres e outros artigos feministas” compila ensaios e reflexões da renomada escritora inglesa Virginia Woolf, nos quais ela expõe os empecilhos que o fato de ser mulher gera para a carreira literária: a falta de acesso à educação, o tempo reduzido pela maternidade e pelos trabalhos domésticos, as chances desiguais de autonomia financeira em um mercado de trabalho dominado por homens.
“É mais complexo que culpabilizar um setor. Os desafios envolvem a formação das mulheres e começam muito antes delas alcançarem as Editoras. Primeiro precisam ter autoconfiança para se autorizarem a serem escritoras. Deveríamos nos preocupar em atuar nesse ponto, em criar espaços para encorajar mais mulheres a se verem autoras”, ressalta Beatriz.
A escritora Martha Lopes concorda que o acesso posterior das mulheres à educação e a falta de segurança para colocar o que escrevem no mundo façam parte do problema, mas não exime o mercado editorial, que frequentemente reforça estereótipos sobre a produção literária feminina. “As casas editoriais têm uma série de estigmas sobre o tipo de literatura que uma mulher deve produzir: deve ter sempre romantismo, delicadeza, temas que envolvam maternidade, questões domésticas. É importante repensar o que é a literatura feminina. É recorrente a ideia de que homens escrevem para o mundo e mulheres escrevem só para mulheres”, afirma.
Movimentos por mudanças
A discussão de gênero ganhou espaço na Flip em 2014, depois da divulgação de um programa que incluía apenas 7 mulheres entre 43 autores. Martha e a editora Laura Folgueira iniciaram uma campanha virtual com a hashtag #KDmulheres?” e organizaram rodas de conversa durante o evento. No ano seguinte, a participação feminina no festival dobrou, e em 2016, atingiu praticamente a paridade, mas as críticas ficaram por conta da ausência de escritoras negras. O curador da Flip em 2016, Paulo Werneck, reconheceu a falha.
O movimento “KDmulheres?” se tornou um portal que hoje abriga uma série de entrevistas com autoras nacionais que tiveram trabalho relevante e ficaram apagadas na história. Outras iniciativas também despontaram para jogar luz à literatura produzida por mulheres, como a newsletter “Mulheres que escrevem“, o blog “Veredas” e os clubes de leitura “Leia mulheres” e “Leia mulheres negras“.
“Fiquei muito satisfeita de ver a curadoria, e fez muita diferença colocar uma mulher como curadora, essa sensibilidade aparece. Mas a gente continua batendo no debate interseccional, ter mais mulheres negras, indígenas, e pluralizar cada vez mais essa programação. Tem muita coisa boa sendo produzida na cena independente”, conclui Martha.
Mulheres na Flip: veja as autoras presentes nas edições do evento
Adelaide Ivánova
Deborah Levy
Josely Vianna Baptista
Natalia Borges Polesso
Ana Maria Gonçalves
Diamela Eltit
Laura Maria dos Santos
Niéde Guidon
Ana Miranda
Djaimilia Pereira de Almeida
Leila Guerriero
Noemi Jaffe
Beatriz Resende
Grace Passô
Lilia Schwarcz
Pilar del Río
Carol Rodrigues
Ivanildes Kerexu Pereira
Luciana Hidalgo
Prisca Agustoni
Conceição Evaristo
Joana Gorjão Henriques
Maria Valéria Rezende
Scholastique Mukasonga
Aline Abreu
Gabriela Wiener
Laura Liuzzi
Patrícia Campos Mello
Tati Bernardi
Ana Luísa Lacombe
Helen Macdonald
Lúcia Leitão
Paula Sibilia
Valeria Luiselli
Angela Lago
Heloisa Buarque de Hollanda
Maria Esther Maciel
Roberta Estrela D'Alva
Vilma Arêas
Annita Costa Malufe
Juliana Frank
Marília Garcia
Selma Maria
Blandina & Lollo
Kate Tempest
Palavra Cantada
Suzana Herculano-Houzel
Eliane Potiguara
Laura Castilhos
Patricia Auerbach
Svetlana Aleksiévitch
Alessandra Pontes Roscoe
Eliane Robert Moraes
Rita Carelli
Alexandra Lucas Coelho
Heloisa M. Starling
Simone Matias
Ana Luisa Escorel
Karina Buhr
Sophie Hannah
Ayelet Waldman
Katjusch Hœ
Stella Maris Rezende
Beatriz Sarlo
Luciana Sandroni
Diléa Frate
Matilde Campilho
Claudia Andujar
Graciela Mochkofsky
Eleanor Catton
Jhumpa Lahiri
Eliane Brum
Elif Batuman
Fernanda Torres
Diléa Frate
Alice Sant’Anna
Lydia Davis
Ana Martins Marques
Maria Bethânia
Bruna Beber
Marina de Mello e Souza
Cleonice Berardinelli
Miúcha
Jeanne-Marie Gagnebin
Lila Azam Zanganeh
Dulce Maria Cardoso
Zoé Valdés
Jackie Kay
Jennifer Egan
Laerte Coutinho
Paloma Vidal
Silvia Castrillón
Carol Ann Duffy
Kamila Shamsie
Laura Restrepo
Marcia Camargos
Pola Oloixarac
Angela Alonso
Pauline Melville
Azar Nafisi
Wendy Guerra
Beatriz Bracher
Carola Saavedra
Isabel Allende
Maria Lúcia P. Burke
Carol Ann Duffy
Xinran
Kamila Shamsie
Catherine Millet
Edna O’Brien
Sophie Calle
Tatiana Salem Levy
Adriana Lunardi
Lucrecia Martel
Ana Maria Machado
Vanessa Barbara
Chimamanda Ngozi Adichie
Zoe Heller
Cíntia Moscovich
Elisabeth Roudinesco
Inês Pedrosa
Ahdaf Soueif
Kiran Desai
Nadine Gordimer
Adélia Prado
Astrid Cabral
Lillian Ross
Myriam Fraga
Nicole Krauss
Toni Morrison
Beatriz Bracher
Vilma Arêas
Beatriz Sarlo
Claudia Roquette-Pinto
Isabel Fonseca
Jeanette Winterson
Marina Colasanti
Adriana Lisboa
Isabel Fonseca
Lídia Jorge
Lygia Fagundes Telles
Margaret Atwood
Rosa Montero
Adriana Falcão
Ana Maria Machado
Patrícia Melo
*Colaboraram Isis Reis e Vicky Régia.
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