Igualdade racial fica de lado na gestão de Damares

Em entrevista à Gênero e Número, Damares bota a culpa no Congresso, ri das cobranças e diz que governo Bolsonaro dá atenção a todos os brasileiros “no mesmo pé de igualdade”; ela gastou apenas R$ 6,5 milhões com ações de igualdade racial em três anos

Maria Martha Bruno

Marilia Ferrari

Agnes Sofia Guimarães Cruz

  • Prejuízo no combate ao racismo

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  • Damares ri e diz: “Não atendo prefeitos que só cuidam de brancos”

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  • Substituição de públicos

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Entre 2019 e março de 2022, convênios e acordos do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos totalizaram pouco mais de meio bilhão de reais, mas apenas 1,3% deste valor (R$ 6,5 milhões) foi firmado pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Convênios e acordos são contratos firmados pelo governo com organizações da sociedade civil e órgãos públicos, como governos estaduais e prefeituras, para transferência de recursos financeiros a serem usados para a execução de serviços. Os dados foram extraídos do Portal da Transparência e analisados pela Gênero e Número.  

A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial é hoje ocupada pelo advogado e oficial do Corpo de Bombeiros Paulo Roberto, ex-assessor de Jair Bolsonaro. Ele substituiu a jornalista Sandra Terena, exonerada em 2020, após a prisão de seu marido, o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio. Ele foi detido por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF), na investigação sobre o financiamento de atos antidemocráticos naquele ano. 

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Convênios na gestão Damares

Valores por secretaria do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos,

de acordo com o público-alvo

r$175

milhões

Idosos

r$116

milhões

direitos humanos

(proteção global)

criança,

adolescente

e juventude

r$108

milhões

r$58

milhões

mulheres

r$6,5

milhões

Igualdade

Racial

r$4,3

milhões

Pessoas com

deficiência

r$1

milhão

Família

fonte Portal da Transparência

Convênios na gestão Damares

Valores por secretaria do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, de acordo com o público-alvo

Idosos

r$175

milhões

direitos humanos (proteção global)

r$116

milhões

criança, adolescente e juventude

r$108

milhões

mulheres

r$58

milhões

Igualdade Racial

r$6,5

milhões

Pessoas com deficiência

r$4,3

milhões

Família

r$1

milhão

fonte Portal da

Transparência

Prejuízo no combate ao racismo

Os convênios firmados pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial entre 2019 e março de 2022, no valor de R$ 6,5 milhões, estão incluídos no orçamento geral do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos para as ações dedicadas à temática. Este orçamento totaliza quase R$ 20 milhões. Mas, de acordo com o relatório “A Conta do Desmonte”, lançado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em abril, os valores liberados por Damares variariam bastante nesses três anos.

 

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As ações destinadas à promoção da igualdade racial consumiram apenas R$ 2 milhões do ministério no ano passado. Em 2020, foram R$ 370,9 mil, oriundos de despesas comprometidas em anos anteriores. Já em 2019, o valor foi de pouco mais de R$ 17,6 milhões. No entanto, segundo o Inesc, o montante provavelmente é explicado pelo Plano Plurianual vigente no primeiro ano do governo Bolsonaro, mas elaborado ainda no governo de Dilma Rousseff e prevendo a inclusão dessas políticas. 

Carmela Zigoni, assessora política do Inesc, aponta as consequências do baixo fluxo de recursos para tratar de políticas de promoção de igualdade racial: “Esta verba serve para apoiar a construção de políticas também nos estados e municípios. E também é importante para que o próprio ministério promova ações intersetoriais, de diálogo com as áreas de segurança pública, justiça, assistência social para enfrentar o genocídio da população negra”. A violência policial, por exemplo, matou só em 2020 mais de 6.400 pessoas, quase 80% delas negras, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Outra consequência do baixo investimento em políticas de igualdade racial, segundo Carmela, é a redução do impacto em mudanças sociais relacionadas ao enfrentamento ao racismo: “Como o racismo é estrutural, é preciso criar formas de discutir este tema de modo capilarizado. Quando não há recursos para formar gestores e para criar espaços de diálogo, a discussão e o enfrentamento ao racismo ficam bem prejudicados”.

 

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Igualdade racial na gestão Damares

Gasto da ex-ministra com promoção da igualdade racial caiu 88% entre 2019 e 2021

r$ 17 mi

r$ 2 mi

2021

2019

Em 2020, o Ministério da Mulher, Família e Direitos

Humanos gastou apenas

R$ 371 mil, referente a

compromissos firmados

em anos anteriores

fonte Siga Brasil / Inesc

foto marcelo casal/ agência brasil

Igualdade racial na gestão Damares

Gasto da ex-ministra com promoção da igualdade racial caiu 88% entre 2019 e 2021

r$ 17 mi

2019

Em 2020, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos gastou apenas

r$ 371 mil, referente a compromissos firmados em anos anteriores

r$ 2 mi

2021

fonte Siga Brasil / Inesc

foto marcelo casal/

agência brasil

Damares ri e diz: “Não atendo prefeitos que só cuidam de brancos”

Titular da pasta desde o início do governo de Jair Bolsonaro até 31 de março de 2022, Damares Alves coloca na conta do Congresso Nacional a escassez de recursos para a igualdade racial. “A gente executa [verbas] e sobrevive por meio de emendas parlamentares. E eles liberam recursos para fazer enfrentamento a este tema?”

No entanto, tanto os valores analisados pela Gênero e Número, quanto pelo Inesc não são de emendas parlamentares, mas do orçamento do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que, por sua vez, determina exatamente onde devem ser alocados. Nos convênios, por exemplo, o governo federal faz parcerias com o setor público (prefeituras, municípios) e com entidades da sociedade civil via editais, licitações e contratos emergenciais. Já no caso das emendas, são deputados e senadores quem decidem o destino do dinheiro.  

Damares Alves saiu do cargo no final de março, prazo final para descompatibilização de políticos do Poder Executivo que pretendem disputar as eleições em 2022. Ligada às igrejas do Evangelho Quadrangular e Batista da Lagoinha, a ex-ministra se filiou ao Republicanos (partido vinculado à Igreja Universal do Reino de Deus) e é pré-candidata ao Senado pelo Distrito Federal. Quem comanda atualmente o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos é Cristiane Britto, antes secretária-executiva e número 2 de Damares.  

A ex-ministra garante que sua gestão não fez discriminação entre públicos: “Quando atendo a uma instituição que cuida de crianças, não são só crianças brancas, mas negras, indígenas e com deficiência. Quando eu atendo um prefeito, não é um prefeito que está só fazendo gestão para pessoas brancas [risos]. Nós damos atenção a todos os brasileiros, no mesmo pé de igualdade, independende de sua cor, raça, religião ou sexualidade”. 

As declarações de Damares Alves estão alinhadas com os comentários da pasta sobre a agenda da ex-ministra, ocupada por mais compromissos com homens que com mulheres, e com poucos eventos diretamente relacionados à igualdade racial. Segundo o ministério, as políticas e ações são transversais e não atendem a segmentos específicos. A pasta não respondeu à reportagem sobre os dados do orçamento e dos convênios. 

Damares também disse à reportagem que não há como medir o impacto das ações de promoção da igualdade racial pelo dinheiro dispensado às políticas e ações: “Quando fazemos uma parceria com o Ministério da Justiça, em que vamos treinar todos os agentes de segurança pública no Brasil para enfrentar o racismo, tem como mensurar financeiramente? Não tem. Mas estamos fazendo”. 

Ela se refere ao acordo de cooperação técnica com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, firmado em junho do ano passado, para capacitar agentes sobre desigualdade étnica-racial. Segundo o governo, o acordo pretende “banir possíveis casos de racismo e injúria racial na interação com cidadãos afrodescendentes, em consequência da atividade policial”. 

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Substituição de públicos

Para Jacqueline Moraes Teixeira, professora da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole da universidade, a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial começou a ser esvaziada na gestão de Michel Temer, após o impeachment de Dilma Rousseff (2016). Nos governos do PT, a pasta chegou a ter status de ministério. A professora explica desta forma a atenção e os recursos dispensados a crianças, jovens e idosos no governo Bolsonaro pelo ministério antes comandado por Damares Alves:

“Negar, substituir e desarticular políticas voltadas para a população negra — historicamente invisibilizada pelo Estado e alvo de violências — em nome de políticas importantes para jovens e idosos, também muito afetados pela vulnerabilidade social, é parte de uma disputa pelos direitos humanos. E essa disputa se faz quase que por um mecanismo de substituição, que tenta gerar mais engajamento com determinadas identidades políticas que outras”. 

A Secretaria de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa recebeu a maior parte dos dos recursos dos convênios na gestão de Damares Alves: 34%, equivalentes a R$ 175 milhões. Em seguida está a Secretaria de Proteção Global, com 22%, ou R$ 116 milhões. Esta pasta é relacionada à área de direitos humanos, já que abriga coordenações de combate à discriminação, à tortura e ao trabalho escravo e o Departamento de Promoção de Direitos Humanos. O ministério conta com outras cinco secretarias, sendo que a que menos recebeu recursos nos convênios foi a de Pessoas com Deficiência: 0,86% do total, isto é, R$ 4,3 milhões.  

“Os direitos humanos são vistos como uma plataforma importante para a direita. Achava-se que as agendas e a própria pasta dos direitos humanos seriam abandonadas, mas ocorreu o contrário. A direita tem investido nas políticas públicas relacionadas aos direitos humanos para disputar a opinião pública e pensar no engajamento de suas próprias pautas”, analisa Jacqueline Moraes. 

O Ministério Público Federal abriu inquérito em outubro de 2021 para investigar por que Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos gastou apenas 44% do orçamento previsto. Em 2020, segundo o Inesc, a Secretaria de Políticas Nacionais para Mulheres teve o maior valor autorizado para ser gasto desde 2017, R$ 124 milhões, mas usou apenas 30% do valor. À época, Damares rebateu a acusação em sua conta no Instagram: “O orçamento foi empenhado com sucesso, mas é claro que não vou liberar dinheiro para o telhado da obra se a construtora não fizer antes as paredes”. A então ministra também se mostrou indignada com as cobranças sobre a baixa execução. 

*Maria Martha Bruno é editora, Agnes Sofia Guimarães é repórter e Marilia Ferrari é diretora de arte da Gênero e Número

Maria Martha Bruno

Jornalista multimídia, com experiência na cobertura de política e cultura, integra a equipe da Gênero e Número desde 2018. Durante três anos, foi produtora da NBC News, onde trabalhou majoritariamente para o principal noticiário da emissora, o “NBC Nightly News”. Entre 2016 e 2020, colaborou com a Al Jazeera English, como produtora de TV. Foi repórter e editora da Rádio CBN e correspondente do UOL em Buenos Aires. Jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição, e atualmente cursa o programa de Doutorado em Comunicação na Texas A&M University, nos EUA.

Marilia Ferrari

Arquiteta e urbanista formada pela Universidade de São Paulo (FAU-USP), trabalha na Gênero e Número desde 2017, onde hoje atua como vice-presidente e diretora de design e inovação. Fascinada por criar sistemas, acumula projetos de comunicação visual para organizações do terceiro setor e movimentos sociais.

Agnes Sofia Guimarães Cruz

Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Segurança Pública. Já publicou em sites como Agência Pública, Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e também atua como consultora de projetos de pesquisa e orientados por dados. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.

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