Tochas em manifestação pela descriminalização do aborto no Equador, em 2019 |Foto: Juan Manuel Ruales

Como vão os direitos reprodutivos na América Latina durante a pandemia do coronavírus

18 milhões de mulheres podem ficar sem acesso a métodos contraceptivos na região, segundo a ONU;  enquanto Argentina conta com ações oficiais para manter aborto legal e Colômbia investe no teleatendimento, falta de anticoncepcionais preocupa em países como Chile e Guatemala

 

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Ginecologia e obstetrícia por videochamada, aceleração do aborto legal, alertas de governos sobre saúde reprodutiva como atividade essencial, desabastecimento de contraceptivos, negação da pandemia. Assim alguns países da América Latina estão vivenciando a prestação destes serviços de saúde durante a crise causada pelo novo coronavírus. O Fundo de População da ONU estima que o aumento da pobreza na região e o desabastecimento de medicamentos podem deixar 18 milhões de mulheres sem nenhum método contraceptivo. 

Governos como o da Argentina e México emitiram comunicados alinhados com a Organização Mundial da Saúde (OMS), determinando que estes serviços constituem atividades que não podem ser paralisadas por causa da crise atual. Mas países como o Chile seguem os passos do Brasil e não tocam no assunto. 

“É a tempestade perfeita para as mulheres com maior necessidade de interromper a gravidez ou de não ter filhos. Os toques de recolher e o isolamento social complicaram o acesso a anticoncepcionais”, atesta Maria Antonieta Alcalde, diretora da Ipas para América Central e México. A organização internacional de direitos sexuais e reprodutivos tem pressionado governos a emitir um comunicado atestando que estes serviços devem ser mantidos pelo Estado durante a pandemia. A pressão funcionou no México, onde, semana passada, a administração de Andrés Manuel López Obrador finalmente cedeu e emitiu uma orientação oficial, inclusive para que o acesso a anticoncepcionais fosse garantido por três ou mais meses para as mulheres. 

Veja como está a situação em alguns países da região:

América Central

“Em condições normais, o acesso já é crítico. Temos a legislação mais conservadora e arcaica do mundo. A perseguição às mulheres é implacável. A covid-19 agrava isso em países onde o sistema de saúde é frágil e não prioriza as mulheres”, atesta a diretora da Ipas.

A situação mais preocupante é a da Nicarágua, onde há uma negação oficial da doença e medidas sequer foram tomadas para minimizar o contágio da população. O presidente Daniel Ortega não aparece em público há mais de um mês.  

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Em Honduras, as mulheres dependem da sorte para conseguir anticoncepcionais nos postos de saúde, já que cidadãos saem de casa uma vez por semana, em um sistema de escala, de acordo com o número de sua carteira de identidade. Se a usuária sair e não encontrar o anticoncepcional no posto próximo, ela fica sem ou precisa buscá-lo em um hospital. Na Guatemala, a Ipas informa que há preocupação com o abastecimento, sobretudo de anticoncepcionais de longa duração, como o implante.

Negação: Nicarágua não toma medidas de isolamento social, presidente não aparece há 40 dias e somente nove casos foram confirmados pelo governo | Foto: Governo da Nicarágua

Argentina

No país de onde partiu o movimento mais forte pela legalização do aborto na América do Sul, tanto governos de esquerda quanto de direita rapidamente se mobilizaram para garantir o acesso aos direitos reprodutivos durante a pandemia. A prefeitura de Buenos Aires, comandada pelo partido do ex-presidente Mauricio Macri, divulgou no dia 24 de março uma carta a hospitais e postos de saúde com recomendações específicas para garantir o acesso a anticoncepcionais e ao aborto legal. Já o governo da província de Buenos Aires determina que as consultas para realização do aborto legal sejam consideradas urgências e inclusive recomenda que o procedimento seja decidido logo no primeiro encontro com o médico. 

Em âmbito nacional, comandado pelo governo de centro-esquerda de Alberto Férnandez, a abordagem não é diferente. Um 0800 de Saúde Sexual fornece informações e tira dúvidas de usuárias, além de receber denúncias sobre províncias (estados) onde o direito ao aborto legal não esteja sendo respeitado. A linha foi disponibilizada pela Direção Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva, que faz parte do Ministério da Saúde.  

Na sociedade civil, a Rede de Profissionais da Saúde pelo Direito a Decidir divulgou uma lista de estabelecimentos que prestam este e outros serviços de saúde reprodutiva em todo o país, atualizando com informações sobre o funcionamento dos estabelecimentos durante a pandemia. 

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Bolívia

A presidenta da Mesa Nacional de Maternidade e Nascimento Seguro, Malena Morales, afirma que o grupo tem desenvolvido guias e protocolos sobre gravidez e anticoncepção, encaminhados às unidades de saúde. Embora o governo nacional não tenha emitido nenhum informe sobre a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos durante a pandemia, a boa notícia é que a Mesa reúne membros do Ministério da Saúde, além de organizações da sociedade civil.  

A Ipas Bolívia afirma que o registro de atendimentos médicos pós-aborto e de interrupção legal da gravidez (em caso de estupro; risco de vida para a gestante; e até as primeiras oito semanas de gestação se a grávida for estudante ou responsável por crianças e adultos com deficiência) caiu nos hospitais, mas atribui à dificuldade de acesso das pacientes, por causa da quarentena, já que o serviço, em geral, está normalizado. A organização também tem enviado anticoncepcionais para unidades de saúde com estoque baixo.  

Além da violência doméstica, as consequências do machismo nos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres preocupam  Morales: “O machismo é um gatilho para casos de violência sexual em casa, que se agrava quando as mulheres não têm acesso a anticoncepcionais”. 

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Chile

Até o fechamento desta reportagem, não havia recomendação oficial do governo chileno. No país, o aborto só foi aprovado em 2017, nos casos de risco de morte para a mãe, inviabilidade fetal e estupro. Como no Brasil, partem do Ministério das Mulheres e da Igualdade de Gênero muitas iniciativas sobre a violência doméstica em tempos de quarentena, mas nenhuma palavra sobre direitos reprodutivos. 

“O panorama é desalentador. Não há proteção em tempos de quarentena”, afirma Debora Solis, diretora-executiva da Associação Chilena de Proteção à Família (Aprofa). Fundada em 1965, a organização promove iniciativas e políticas relacionadas a saúde e educação sexual e afirma que não há qualquer ação do governo de Sebastián Piñera para apoiar o trabalho de entes civis neste sentido.

Debora Solis: Panorama desalentador e temor de falta de anticoncepcionais | Foto: Divulgação Aprofa

O desabastecimento também já preocupa. Solis diz que a Aprofa importa camisinhas, mas que, por enquanto, só tem estoque para mais um mês e meio. “Todos os recursos financeiros do país estão orientados à pandemia e os métodos contraceptivos ficaram para trás”, atesta. 

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Colômbia

O Ministério da Saúde e Proteção Social emitiu um documento sobre a saúde de gestantes, recém-nascidos e lactantes durante a pandemia. No texto, o governo informa que as unidades de saúde “farão adequações em seus modelos de prestação [de serviço] para garantir a interrupção voluntária da gravidez”. No país, o aborto é permitido nos mesmos casos em que o Brasil, mas inclui ainda o risco à saúde mental da mulher, precedente importante para ampliar o direito. 

A organização Profamilia, com mais de 30 unidades especializadas em planejamento familiar e saúde sexual e reprodutiva, reforçou o teleatendimento e cancelou cirurgias ginecológicas eletivas. A Oriéntame, outra instituição de referência na realização do aborto legal, disponibilizou o serviço de interrupção voluntária da gravidez em casa. A paciente deve ligar para o profissional de saúde, que fará uma avaliação clínica, analisará exames e fará a prescrição do medicamento, que deve ser pago pela usuária e depois entregue pelos correios.

Instituição colombiana de aborto legal indica usuárias a teleconsultas e uso de misoprostol em casa | Foto: Oriéntame

Equador

“Anticoncepcionais, informação e serviços (inclusive a contracepção de emergência) para salvar vidas devem estar disponíveis e acessíveis em resposta à pandemia da covid-19” e é preciso “verificar de maneira periódica o abastecimento de métodos contraceptivos”. O Ministério da Saúde Pública do país — que em 2019 negou o acesso ao aborto em casos de estupro e o permite apenas se a vida e a saúde da mulher estiverem em risco ou em estupros de mulheres com deficiência mental — emitiu um documento com as diretrizes acima na semana passada. 

“Sabemos que um dos problemas principais da América Latina é a diferença entre a quantidade e qualidade de leis e a sua implementação. Portanto, apesar do que diz o ministério, as mulheres não estão tendo acesso a anticoncepcionais e sequer a atendimento médico no caso de complicações obstétricas”, alerta Ana Vera, advogada e membro da organização feminista Surkuna, de apoio e proteção de direitos humanos com foco em direitos sexuais e reprodutivos.  

“Não acredito que nem mesmo que os abortos legais estejam sendo realizados, porque a implementação da lei é difícil até em condições normais. E com a situação da covid-19, o atendimento médico está absolutamente restringido. Então pensar que uma mulher que não corre risco de vida será atendida com um aborto terapêutico não é real”, analisa. 

México

Desde o início da pandemia, a organização feminista Las Libres, que há 20 anos trabalha com promoção e defesa dos direitos das mulheres, tem recebido mais solicitações de toda a região sobre a realização de aborto seguro. As demandas chegam de países com legislação semelhante ao Brasil, como Argentina e Chile, e daqueles onde o procedimento é totalmente proibido, como El Salvador e Nicarágua. A Las Libres encaminha as mulheres a organizações locais que possam fornecer atendimento (onde o aborto é legalizado em algumas circunstâncias) ou a organizações que possam acolhê-las (nos países de proibição total). 

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Verónica Cruz, diretora da instituição, afirma que na Cidade do México, onde o aborto é legalizado em qualquer condição até 12 semanas de gestação, aumentaram as teleconsultas nas clínicas que prestam o serviço. O uso do misoprostol foi privilegiado para evitar procedimentos mais invasivos. “As clínicas dão o medicamento e depois fazem uma revisão para verificar se as pacientes estão bem. É a melhor opção, pois os serviços não estão com suas equipes completas”, conta. 

ONG mexicana Las Libres registrou aumento de pedidos de ajuda de mulheres de outros países da América Latina | Foto: Las Libres

Uma petição online criada pela organização conservadora Pasos por La Vida já recolheu mais de 3 mil assinaturas pedindo o fechamento das clínicas de aborto na capital do país durante a pandemia. O pedido é direcionado à prefeita da Cidade do México.

Maria Martha Bruno

Jornalista multimídia, com experiência na cobertura de política e cultura, integra a equipe da Gênero e Número desde 2018. Durante três anos, foi produtora da NBC News, onde trabalhou majoritariamente para o principal noticiário da emissora, o “NBC Nightly News”. Entre 2016 e 2020, colaborou com a Al Jazeera English, como produtora de TV. Foi repórter e editora da Rádio CBN e correspondente do UOL em Buenos Aires. Jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição, e atualmente cursa o programa de Doutorado em Comunicação na Texas A&M University, nos EUA.

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