Número de registros ainda não reflete a realidade, mas campanhas pretendem encorajar denúncia e diminuir prática | Foto: Não é Não / Divulgação

Com campanhas e hashtags, debate online sobre assédio quadruplica nos últimos três anos

Pesquisa “A voz das redes” constata aumento no debate online sobre assédio, mas quem sofre a violência é quem menos fala: do universo de interações e menções sobre o tema, apenas 3% corresponderam às vítimas; campanhas e iniciativas buscam conscientizar e apoiar mulheres e pressionar poder público a agir a respeito

Por Vitória Régia da Silva*

Vitória Régia da Silva

  • Campanhas movimentam as redes

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  • Tema tem se destacado no carnaval

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  • Desafios para avançar no debate

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O debate virtual sobre assédio tem sido fomentado no Brasil nos últimos anos por campanhas, hashtags e pela coragem das mulheres em denunciar nas redes situações de violência que vivenciaram. A força dessa conversa coletiva foi medida recentemente por uma pesquisa que constatou que as menções sobre assédio nas redes sociais brasileiras cresceram 324% nos últimos três anos.

De acordo com a pesquisa “A voz das redes”, do Instituto Avon em parceria com a Folks Netnográfica, em 2017 o assédio foi o 26º assunto mais comentado na internet no país. A pesquisa analisou posts em três redes sociais – Facebook, Twitter e Instagram – e coletou 14 milhões de menções relacionadas aos temas assédio e violência contra mulheres feitas entre 2015 e 2017.

O levantamento, que buscou entender como este debate se intensificou no ambiente digital e o papel das redes no enfrentamento à violência contra as mulheres, também apontou o fortalecimento do assédio virtual, que cresceu 26.000% nos últimos três anos. “Notamos que a internet é, ao mesmo tempo, um canal rico em oportunidades de ajuda às vítimas, mas também um meio crescentemente utilizado para um novo tipo de assédio, o digital”, disse Daniela Grelin, diretora do Instituto Avon, a Gênero e Número. O instituto tem investido nos últimos 14 anos no enfrentamento à violência contra as mulheres. Para Grelin, a internet “representa uma das mais poderosas ferramentas de fortalecimento das vítimas e um novo inimigo a combater”.

A pesquisa também apontou que quem sofre a violência é quem menos fala nas redes. Do universo de interações e menções sobre assédio e violência, apenas 3% corresponderam às vítimas. Quem pauta esta discussão na internet, segundo a pesquisa, são mulheres brancas (66%), entre 18 e 24 anos (73%), de classe B e C (67%), enquanto as vítimas que relatam nas redes episódios de assédio e violência são em sua maioria mulheres negras (80%), de 25 a 44 anos (73%) e de classe C e D (77%).

“Em geral, a maioria delas usa o meio online para buscar o esclarecimento de dúvidas sobre seus casos, dicas que ajudem no processo de rompimento com o agressor e, felizmente, muitas se tornam ‘voluntárias digitais’ para dar suporte a outras mulheres”, disse Grelin.

Jornalistas esportivas lançam campanha contra ataques machistas. Foto: Divulgação

Campanhas movimentam as redes

As campanhas virtuais de conscientização e combate ao assédio são grandes responsáveis pelo aumento do debate sobre o tema nas redes. No período analisado pela pesquisa, várias hashtags moveram conversas sobre o assédio e a violência contra mulheres em diferentes contextos.

Uma delas foi a campanha #MexeuComUmaMexeuComTodas, criada a partir da denúncia da figurinista Su Tonani sobre o assédio que sofreu por parte do ator José Mayer nos bastidores de uma novela da Rede Globo. O relato, publicado no blog #AgoraÉQueSãoElas, motivou a campanha, que moveu mais de 173 mil tuítes de quase 88 mil usuários entre os dias 27 de março e 5 de abril de 2017, segundo levantamento do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic/Ufes) publicado pela Gênero e Número.

Antes disso, em outubro de 2015, a hashtag #MeuPrimeiroAssédio foi mencionada mais de 82 mil vezes em menos de uma semana no Twitter, segundo análise da ONG Think Olga. A organização promoveu a campanha em reação a comentários de teor sexual postados na rede por espectadores do programa MasterChef Jr sobre uma participante do programa, então com 12 anos de idade. As mulheres responderam compartilhando os primeiros episódios de assédio que sofreram – que aconteceram, em média, quando elas tinham 9 anos de idade, de acordo com a análise da Think Olga.

A campanha mais recente é a #DeixaElaTrabalhar, uma iniciativa de jornalistas que trabalham com esporte contra o machismo e o assédio às profissionais no exercício da profissão em estádios, no ambiente de trabalho, nas redações e nas redes sociais. O movimento surgiu no fim de março após casos de assédio contra a repórter do Esporte Interativo Bruna Dealtry, beijada à força por um torcedor durante uma transmissão ao vivo, e a repórter da Rádio Gaúcha Renata de Medeiros, insultada por um torcedor enquanto cobria uma partida de futebol.

Tema tem se destacado no carnaval

No carnaval, período em que o assédio contra mulheres é mais visível e presente, ganha mídia com campanhas e iniciativas articuladas entre organizações de mulheres e órgãos públicos, o tema foi um dos mais mencionados no Twitter, de acordo com levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP-FGV) referente a posts sobre o Rio de Janeiro. No pré-carnaval, entre 26 de janeiro e 6 de fevereiro, o assédio mobilizou 55% do debate na categoria segurança e violência na capital carioca, superando até mesmo menções a roubos e furtos. Já nos dias do carnaval, o tema foi eclipsado pelo anúncio da intervenção federal na segurança no Rio de Janeiro, mas ainda assim ficou em terceiro lugar com cerca de 9,88% das menções no Twitter.

Essa foi a primeira vez que o DAPP olhou para as menções sobre assédio em seus levantamentos sobre segurança e violência no Rio. “O assédio é uma questão de segurança que precisa ser colocada”, disse a pesquisadora Ana Luísa Azevedo, uma das responsáveis pelo estudo, a Gênero e Número. Ela destacou que a intervenção federal “acabou diluindo a discussão sobre assédio, que saiu da liderança dos temas de segurança, mas ainda ocupava um lugar importante nas redes”.

Para a pesquisadora, os números são um reflexo de como as campanhas contra assédio, realizadas por organizações e grupos de defesa de mulheres e disseminadas nas redes, têm um papel importante ao fomentar o debate sobre a violência contra elas. “As campanhas tornam mais propício que as mulheres venham a relatar suas experiências com assédio e violência”, acredita Azevedo. “A população comprou as ideias das campanhas e formou uma espécie de corrente de ajuda em que a maior parte dos comentários foi de apoio [às mulheres] e conscientização contra o assédio”, analisa a pesquisadora.

Mulheres aderem a campanha contra assédio no Carnaval em fev.2018 Foto: Divulgação/ Não é não

Várias iniciativas pautaram o combate ao assédio durante o Carnaval, tanto nas redes como nas ruas. Uma delas foi a #AconteceuNoCarnaval, que incentivou que as mulheres relatassem no site da campanha casos de assédio na folia, com o objetivo de coletar dados sobre o problema em diversas cidades e pressionar o Poder Público a agir a respeito. A ação começou em 2017 em Recife e Olinda, mas em 2018 aconteceu a nível nacional, promovida pelas redes Meu Recife, Minha Sampa, Minha Porto Alegre, Meu Rio, Minha Jampa, Minha Ouro Preto, Minha Igarassu e pelas ONGs Mete a Colher e Women Friendly.

“A questão do assédio é complexa porque envolve uma mudança de cultura, e para trabalharmos essa mudança o tema precisa viralizar nas redes”, disse Karolina Bergamo, mobilizadora do Minha Sampa e uma das responsáveis pela campanha. “É importante fazer campanha o ano inteiro, mas existe uma cultura na nossa sociedade de que tudo é permitido no Carnaval, o que tem um papel muito importante no aumento da violência contra as mulheres. Por isso precisamos falar mais e intensamente durante essa época”, acredita.

O site da campanha recebeu 325 relatos no período do último Carnaval, sendo 116 referentes a episódios de assédio ocorridos em 2018. Os tipos de violência mais relatadas por mulheres foi agressão física (35), seguido de passada de mão (27) e agressão verbal (11). Mulheres brancas foram as que mais relataram casos de assédio no site (64 relatos) e a faixa etária mais afetada e que mais se pronunciou foram jovens de 15 a 19 anos.

A campanha irá apresentar relatórios com os dados categorizados a secretarias estaduais e municipais de Políticas para as Mulheres, assim como às secretarias de Defesa Social dos Estados, para exigir do poder público políticas para prevenir a violência contra mulheres no Carnaval.

 

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Outras iniciativas relevantes foram registradas no carnaval, e contribuem para fazer o debate render mesmo após a folia. Com o lema “Uma mina ajuda a outra”, a campanha Folia com Respeito promoveu a união entre as mulheres no Carnaval contra o assédio. A iniciativa de um grupo de 34 blocos de carnaval de rua de Brasília foi financiada por meio de uma vaquinha online, que arrecadou R$ 1 mil para a produção das peças publicitárias.

“A ideia da campanha surgiu da necessidade de uma ação que abordasse o tema da violência e o assédio durante o carnaval”, disse Leticia Helena, diretora da campanha, a Gênero e Número. “Como integrante de um bloco de carnaval, sempre estive atenta aos relatos de violência que as foliãs e foliões compartilhavam na página dos blocos no dia seguinte. Como essa preocupação era compartilhada com diversos outros blocos começamos a pensar juntos e várias ideias foram colocadas, dentre elas a Folia com Respeito.” Em vídeos e fotos publicadas nas redes sociais, a campanha oferecia orientações para as mulheres durante o carnaval e as peças da campanha orientaram as foliãs a prestar atenção se outras mulheres poderiam estar em risco.

“Muita gente sofreu, lutou e morreu sem esse direito para que conseguíssemos isso. A melhor forma que encontramos de honrar e celebrar isso foi nos casando”, disse à Gênero e Número o jornalista Alexandre Gaspari, de 45 anos, casado com o professor universitário brasiliense Ivan Amaro, de 51 anos. Eles se conheceram em 2006 e namoraram à distância por dois anos, até que decidiram morar juntos.

O desfile do bloco carioca Orquestra Voadora, um dos mais badalados na programação de blocos de rua da cidade, levou esse debate às ruas ao trazer uma tenda de atendimento às mulheres para o seu cortejo. Em uma parceria com o coletivo feminista Todas por Todas, o espaço contou com advogadas e psicólogas para acolher as mulheres afetadas e receber denúncias de assédio e agressão.

Segundo Juliana Storino, integrante da Orquestra, a ação do bloco foi um marco. “Uma tenda de acolhimento à mulheres vítimas de violência no meio de um bloco de carnaval representa muito. Mostra que a gente não está de brincadeira quando fala que não vai mais tolerar esses tipos de abuso”, acredita.

Desafios para avançar no debate

Mesmo com o tema em pauta, ainda existem dificuldades para avançar nas conversas virtuais, conforme indica a pesquisa “A voz das redes”. Das 14 milhões de menções computadas, apenas três milhões foram discussões aprofundadas sobre os relatos ou de auxílio às vítimas. Em mais da metade dos casos (55%), o teor das conversas sobre assédio foi de gradação, com questionamentos sobre a veracidade dos relatos ou se o caso configurava ou não assédio.

“O assédio acaba se inserindo em discussões gerais e raramente se mantém com o mesmo foco do ínicio, pois sofre com gradações e desqualificações”, disse Daniela Grelin, diretora do Instituto Avon. Já os relatos sobre violência são pouco contestados pelos usuários que interagem nas redes, observou ela. Ainda assim, apenas 90 mil menções – 0,6% do total avaliado na pesquisa – corresponderam a conversas sobre relatos de violência.

Além do teor das discussões, o engajamento de um grupo específico de usuários também é preocupante. Os homens que participam das conversas são majoritariamente agressivos e desqualificadores dos relatos apresentados: assim agem 61% deles, segundo a pesquisa. Apenas 10% deles oferecem apoio às vítimas ou buscam pacificar as discussões.

*Vitória Régia da Silva é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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