No palco de Francia Márquez, com Marielle “presente”, imaginei uma presidente negra no Brasil

Em 2018 elegemos um número expressivo de candidatas negras pelo Brasil. Em 2020 seguimos a mesma lógica. Agora, em 2022, precisamos garantir que nossas mulheres negras sejam eleitas e permaneçam vivas. Vivas para se movimentarem, decidirem e construírem um futuro melhor para sociedade brasileira 

Já nos tiraram tudo, menos nossa vontade de vencer!
Francia Márquez, 2022

  • Por Anielle Franco

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Por Anielle Franco

Esta foi a frase que ouvi ao participar do evento de encerramento da campanha de Francia Márquez, vice-presidenta eleita na Colômbia, em março deste ano, junto a uma comitiva do movimento negro brasileiro pela América Latina.

Eu não tinha noção do que me esperava nessa viagem, mas ter encontrado e trocado experiências com Francia me guiou a um futuro de esperança possível. Ter ficado ao lado dela me trouxe muitos pensamentos. Primeiro eu pensei o quanto seria significativo se ela fosse eleita, e ela foi. Depois pensei que mesmo tendo recebido inúmeras ameaças durante toda a campanha eleitoral, ela estava ali, radiante, forte, firme como uma rocha, ecoando palavras revolucionárias aos seus eleitores e ao povo colombiano. Como diz Audre Lorde em Irmã Outsider, “Nossa força, nosso medo, nossa raiva, nos alimenta para seguirmos adiante”.

Quando chegamos ao local do evento, ela me olhou nos olhos, me abraçou e disse: “Suba no palco comigo”. Antes desse dia, eu já sabia que ela era uma das vozes da Colômbia que reivindicavam justiça por Marielle. Ela, assim como tantas mulheres negras defensoras de direitos humanos, se reconhecia na história de Marielle e frisava todo o tempo a importância que minha irmã tinha para as mulheres negras, em todo o mundo, e em especial nos países da América Latina.

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Ao olhar Francia nos olhos, segurar sua mão e gritar junto com ela, sentir a energia daquelas pessoas que estavam esperançosas pela mudança, pensei em como seria lindo eleger uma presidenta ou vice-presidenta negra no Brasil.

Ali, olhando pra ela, eu me dei conta de que poderia ser qualquer mulher negra, ativista, decidida a mudar o rumo do país. Só não poderia ser minha irmã, Marielle Franco, vereadora eleita em 2016 e assassinada no dia 14 de Março de 2018 em um crime que até hoje ainda não temos resposta.

Na semana em que comemoramos os 30 anos do Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, relembrar meus passos por países latino-americanos me faz reconectar com aquilo que eu só ouvi falar a partir de minhas mais velhas. Na semana que marca o 1º Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe, que ocorreu em 1992 na República Dominicana, também saúdo minhas ancestrais brasileiras, como Tereza de Benguela, que dá o nome da data no calendário de nosso Brasil e que foi uma importante liderança quilombola no século XVIII.

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Se pararmos para pensar no percurso histórico do nosso país e na história de lutas e vitórias políticas no Brasil, nós, mulheres negras, sempre lideramos e contribuímos com os principais processos de transformação em nossa sociedade, e fizemos isso a partir e com apoio de movimentos sociais e partidos políticos.

Ainda assim, o que vimos ao longo da história foi termos essas contribuições propositalmente esquecidas e secundarizadas. Mulheres negras foram sistematicamente vulnerabilizadas, se tornando alvos constantes de diferentes violências. Desde a violência obstétrica, passando pela violência policial com casos brutais de assassinatos de filhos, irmãos ou companheiros, chegando à violência política de gênero e raça, quando ousam lutar por algo diferente no ambiente institucional. 

Enquanto não tivermos políticas públicas voltadas para nossos corpos, não teremos dignidade para viver em nosso país. Enquanto assistirmos operações policiais que têm como resultado o assassinato de centenas de pessoas em favelas e regiões periféricas de nossa cidade, não podemos dizer que vivemos em um país digno para todas as pessoas. Precisamos fazer política a partir de nossos corpos. Não dá mais para fazerem sem nós ou sem que seja a partir de nós. Em 2018 elegemos um número expressivo de candidatas negras pelo Brasil. Em 2020 seguimos a mesma lógica. Por isso, agora, em 2022, precisamos garantir que nossas mulheres negras sejam eleitas e permaneçam vivas. Vivas para se movimentarem, decidirem e construírem um futuro melhor para sociedade brasileira.

Neste mês de Julho, em especial nesta semana que celebramos o dia da mulher negra latino-americana e caribenha, convido vocês a dizerem não a todo projeto de morte e destruição que desde 2018 tem crescido em nosso país, e dizerem sim aos projetos de vida liderados por mulheres negras.

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Anielle é jornalista, educadora, diretora-executiva do Instituto Marielle Franco e assina coluna mensal na Gênero e Número.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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