Tribunal Superior Eleitoral em sessão administrativa. Foto: Nelson Jr/TSE

Caça a candidaturas ‘fantasmas’ é pauta central do TSE pelo acesso das mulheres à política em 2018

Justiça Eleitoral tem desafio de punir partidos pelo descumprimento das leis que visam ampliar participação política feminina, como a que exige mínimo de 30% de candidaturas para elas e a que reserva parte do fundo partidário para campanhas de candidatas; especialistas defendem cassação de mandatos de partidos e coligações que não cumprem exigências

*Por Mariana Muniz

Carolina de Assis

  • Partidos em observação

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  • Debate sobre contestação de candidaturas

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  • Temos 30%, e agora?

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  • Fundo inconstitucional

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Hoje, o tema mais importante na pauta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) relativo às mulheres é o da admissão de ações que levem à cassação de mandatos quando há a ocorrência das chamadas “candidaturas laranja”. São candidatas que não recebem sequer um voto, usadas por partidos ou coligações para completar a cota mínima de 30% de candidaturas de mulheres, como mostrou a Gênero e Número em reportagem.

“Eu comecei a investigar, a tentar entender por que o Brasil, com uma democracia tão consolidada, é o país com a menor representação feminina da América Latina. No continente americano, estamos à frente apenas de Belize e Haiti. E me perguntei: por que a gente está nessa situação?”, conta a advogada e ex-ministra do TSE Luciana Lóssio.

Primeira mulher a ocupar as cadeiras destinadas à advocacia do tribunal superior, Lóssio pediu à Justiça Eleitoral que fizesse o levantamento de quantos e quem eram os candidatos que não tiveram sequer um voto nas eleições municipais de 2016. Visualizou 14.417 mulheres, quase 90% do total dos candidatos com votação zerada.

 

 

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No julgamento de um Recurso Especial Eleitoral em agosto de 2016, o TSE entendeu que a existência de candidatas sem voto é “simulação de candidaturas”, uma fraude eleitoral.

No momento, as ações para investigar estas fraudes esbarram em um problema de ordem processual. Como não há previsão em lei sobre qual é o instrumento adequado para contestar as candidaturas fictícias de mulheres, o entendimento no Judiciário sobre estes casos ainda está em fase de construção.

“Temos algumas ações que não estão sendo conhecidas [quando a ação não tem os requisitos mínimos para começar a ser julgada], porque os juízes consideram que quem entrou com a ação não tinha legitimidade [condição para propor a ação], por exemplo. Mas temos tribunais mais avançados, como os Tribunais Regionais Eleitorais do Piauí e de São Paulo, que já têm decisão cassando todo mundo”, afirma a advogada Tailaine Costa, membro do conselho financeiro do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (IPRADE) e diretora administrativa do Instituto Política de.para.por Mulheres.

Partidos em observação

A Lei 12.034, de 2009, estabeleceu que “cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”. Na prática, esse mínimo de 30% diz respeito às mulheres, já que os homens dominam as listas de candidaturas e são maioria nos partidos políticos (veja box).

Segundo a ex-ministra Lóssio, a partir de 2016, “a Justiça Eleitoral passou a ser provocada para se manifestar sobre os partidos fingirem que estavam observando a reserva de 30% quando na verdade estavam apenas colocando candidatas para que seus verdadeiros candidatos não fossem indeferidos”.

A advogada e ex-ministra do TSE Luciana Lóssio. Foto: Nelson Jr / TSE

Em abril de 2017, em seguida às últimas eleições, a Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo (PRE-SP) contabilizou 236 procedimentos para investigar candidaturas fictícias de mulheres, subterfúgio usado por muitos partidos que apresentam candidatas para cumprir a cota mínima sem de fato investir em sua elegibilidade.

“A análise dos 30% é superficial”, acredita a advogada Costa, já que muitos partidos e coligações cumprem esse requisito mínimo apenas para garantir a participação nas urnas. “Por isso, a questão das candidaturas fraudulentas é o principal debate que temos hoje na Justiça Eleitoral”, afirma.

 

 

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Com um posicionamento firme sobre o preenchimento mínimo de vagas nos partidos por candidaturas de mulheres e ações administrativas de promoção à participação delas nas eleições, a Justiça Eleitoral tem tentado dar efetividade às leis que visam o acesso de mulheres aos cargos eletivos.

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"A Justiça Eleitoral precisa cumprir o papel de possibilitar a contestação das candidaturas laranja. Enquanto os outros candidatos não sofrem consequência alguma, as candidaturas fraudulentas vão continuar. A partir do momento em que todo mundo tiver que pagar o preço, todo mundo presta atenção."

— Marilda Silveira, professora de Direito Eleitoral do IDP

No Judiciário, o campo de disputas é pela concretização das duas principais leis eleitorais que podem contribuir de alguma forma para que mais mulheres sejam eleitas: a Lei 12.034/2009, que determina as cotas de candidaturas, e a Lei 13.165/2015, que obriga os partidos a destinarem no mínimo 5% e no máximo 15% do fundo partidário para financiar candidatas.

“A jurisprudência do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] evoluiu muito no sentido de preservar e fazer uma ação afirmativa da participação feminina. Acho que a primeira decisão que a Justiça Eleitoral tomou nesse sentido, e essa decisão vem se agravando, foi a de dizer que a participação mínima de 30% é obrigatória, sob pena de derrubar a chapa toda”, afirma a advogada Marilda Silveira, professora de Direito Eleitoral do Instituto de Direito Público de Brasília (IDP).

O TSE – responsável por uniformizar as decisões de caráter eleitoral no país – é claro ao dizer, em seus julgados, que a Lei 12.034/2009 é obrigatória e gera consequências graves para os partidos políticos. Para a corte, o descumprimento dos percentuais previstos em lei leva ao indeferimento do demonstrativo de regularidade dos atos partidários, o DRAP, espécie de nada consta das legendas que habilita as coligações a concorrerem às eleições.

Senadoras e deputadas em café da manhã de trabalho (01/03/2018). Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Em 2010, uma decisão do então ministro Arnaldo Versiani já falava no “caráter imperativo” do preenchimento de vagas de acordo com os percentuais mínimo e máximo de cada sexo. O processo envolvia o PDT no Pará e acabou se tornando um leading case do assunto. É que o partido indicou candidatos para o cargo de deputado estadual na seguinte proporção: 22 candidatos homens e apenas sete mulheres, do total de 29 candidaturas. Para cumprir as cotas de gênero estabelecidas em lei, deveriam ter sido reservadas, no mínimo, 9 vagas para candidatas, o que não ocorreu. O ministro então determinou o retorno do processo ao Tribunal Regional Eleitoral paraense para que a legenda fizesse os ajustes.

Em outra situação analisada pelo TSE, o desrespeito à reserva de vagas para candidaturas de mulheres levou ao indeferimento do registro de uma coligação da cidade de Jataúba, no interior de Pernambuco, nas eleições municipais de 2012. Dos 12 candidatos apresentados pela coligação “Frente Renovadora pela Decência Política e Justiça Social” (PRTB/PCdoB), 11 eram homens.

“Não cabe a partido ou coligação pretender o preenchimento de vagas destinadas a um sexo por candidatos de outro sexo, a pretexto de ausência de candidatas do sexo feminino na circunscrição eleitoral, pois se tornaria inócua a previsão legal de reforço da participação feminina nas eleições, com reiterado descumprimento da lei”, diz a decisão do ministro Versiani sobre o caso.

 

 

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Debate sobre contestação de candidaturas

Cabe ao TSE dar a palavra final sobre como deve ser feita a contestação das candidaturas laranja – apenas pela impugnação do registro do partido, o DRAP, ou por meio das ações eleitorais, Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) ou Ação de Investigação de Mandato Eletivo (AIME). A discussão entre o DRAP e as ações eleitorais existe porque, em tese, AIME e AIJE só cabem se houver algum tipo de abuso de poder.

E abuso de poder, de acordo com a professora Marilda Silveira, “é de quem tem autoridade, e autoridade é lido como autoridade pública. E quem escolhe as pessoas para se candidatarem, e, portanto, trariam essas candidatas laranjas, não é uma autoridade pública”.

Como o registro do partido tem que ser impugnado sete dias após ser concedido, o caminho do DRAP acaba não tendo qualquer efeito sobre as candidaturas fraudulentas, que só podem ser apuradas após o período eleitoral.

 

 

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A tese que será defendida no TSE – e que pode ser acolhida ou não – é de que, embora os dirigentes dos partidos não tenham título de autoridade pública, devam ser considerados como tais para essa finalidade, já que têm o monopólio das candidaturas.

“A Justiça Eleitoral precisa cumprir o papel de possibilitar a contestação das candidaturas laranja. Enquanto os outros candidatos não sofrem consequência alguma, as candidaturas fraudulentas vão continuar. A partir do momento que todo mundo tiver que pagar o preço, todo mundo presta atenção”, defende Silveira, que recentemente foi ao TSE dar uma palestra sobre o assunto.

Temos 30%, e agora?

Embora importantes, sozinhas as decisões dos tribunais não são capazes de alavancar o aumento da presença de representantes.

Atualmente, apenas 55 das 513 cadeiras da Câmara (10,7%) e 13 dos 81 assentos do Senado são ocupados por mulheres (16,1%). Um estudo feito pela ONU Mulheres em 2017 coloca o Brasil na 154.ª posição de participação delas no Congresso, em um universo de 174 países.

Para Eneida Desirée Salgado, professora de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral na Universidade Federal do Paraná (UFPR), este é o resultado esperado da lei de cotas de candidaturas: 30% de mulheres candidatas em uma lista que tem 150% do total de cadeiras. Isto porque, de acordo com a Lei 13.165, de 2015, cada partido pode registrar para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais um número de candidatos equivalente a até 150% do total de cadeiras em disputa. A cota mínima para mulheres é de 30% do total de vagas, não de candidatos apresentados por coligação ou partido.

“Ou seja, somos candidatas naqueles espaços que se sabe que não serão ocupados. Da maneira como foi pensada a reserva de cotas é para dar este resultado que temos hoje”, observa a professora, que organiza o Curso de Iniciação à Formação Política para Mulheres, em Curitiba.

A professora Eneida Salgado. Foto: Samira Neves / UFPR

“Não é que as cotas não funcionem. Elas funcionam, mas nossa ilusão é achar que 30% de reserva de candidatura é 30% de vagas no parlamento. Não é. Porque a reserva de vagas não vem acompanhada da reserva de fundo partidário, da reserva do fundo especial para financiamento de campanha [Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC)] que nós teremos agora pela primeira vez, e o horário eleitoral gratuito”, argumenta.

A percepção de que não basta determinar o preenchimento de um percentual das vagas pelas mulheres teve impactos legislativos. A Lei 13.165, de 29 de setembro de 2015, por exemplo, reserva montantes do fundo partidário para financiamento de campanhas de candidatas pelo período de três eleições, no mínimo 5% e no máximo 15%.

Já a Reforma Política – Leis n° 13.487 e nº 13.488 – aprovada pelo Congresso Nacional em outubro de 2017 determinou que o TSE deverá promover, entre 1º de abril e 30 de julho dos anos eleitorais, “em até cinco minutos diários, contínuos ou não, requisitados às emissoras de rádio e televisão, propaganda institucional, em rádio e televisão, destinada a incentivar a participação feminina”.

Fundo inconstitucional

Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta em fevereiro de 2017 pela Procuradoria-Geral da República (PGR) questiona no Supremo Tribunal Federal (STF) o artigo 9º da Lei nº 13.165, que trata do teto para o fundo de financiamento das campanhas das candidatas. É a ADI 5617, que está com o ministro Edson Fachin.

Na peça assinada pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, o dispositivo legal é classificado como contrário ao princípio fundamental da igualdade, previsto na Constituição Federal, falho na proteção do pluralismo político, da cidadania e do princípio democrático, no atingimento do objetivo fundamental de construir de uma sociedade livre, justa e solidária e prejudicial os princípios da eficiência e da finalidade, e da autonomia de partidos políticos.

A subprocuradora-geral da República, Ela Wiecko. Foto: CNJ

No entendimento da PGR, o sistema de cotas eleitorais para mulheres deve ser financiado pelo Fundo Partidário, “sob pena de inefetividade e frustração das expectativas de aprimoramento da igualdade entre homens e mulheres”.

“A fim de compatibilizar a norma com a Constituição da República, o mínimo de recursos do fundo deve ser equiparado ao patamar legal mínimo de candidaturas femininas (art. 10, § 3 o , da Lei 9.504/1997), de forma que 30% das candidatas tenham direito a, no mínimo, 30% dos recursos, devendo tal proporção manter se caso haja percentual superior de candidatas mulheres”, diz a manifestação da PGR ao STF.

O posicionamento foi endossado pela atual procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Em manifestação enviada ao STF em outubro de 2017, a PGR defende que o percentual previsto em lei para o financiamento público de campanhas eleitorais de candidatas é insuficiente para proteger o direito político das mulheres. A expectativa é que a matéria seja analisada ainda este ano pela Suprema Corte.

A subprocuradora-geral da República Ela Wiecko concorda que a regra do limite máximo de 15% dos recursos destinados às candidatas mulheres gera uma distorção. “Em vez de estabelecer discriminação positiva suficiente para garantir igualdade, a lei impede que partidos políticos distribuam os recursos do Fundo Partidário para financiamento das campanhas de forma igualitária entre candidatos e candidatas.”

Nos 10 maiores partidos políticos – que somam cerca de 145 dirigentes partidários – as mulheres não chegam a representar 10% da composição dos órgãos de direção. Foi o que mostrou um levantamento feito em 2015 pela Clínica de Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) para embasar uma consulta pública levada pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA) ao TSE.

A consulta pergunta se a previsão de reserva de vagas para candidaturas de mulheres não deve ser aplicada, por analogia, na composição das comissões executivas nacionais, estaduais e municipais dos partidos políticos. A relatora é a ministra Rosa Weber, e ainda não há previsão para a consulta ser examinada.

Gleisi Hoffman, senadora pelo Paraná e presidenta do PT. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

“As mulheres representam cerca de 45% das filiações dos partidos, enquanto os homens são 55%. Então há o interesse da mulher pela política. Elas já estão nos partidos políticos, mas não estão dentro dos órgãos de direção, de deliberação dessas agremiações”, aponta o advogado e professor do IDP Rafael Carneiro, coordenador do grupo de estudos que elaborou a consulta.

Para Carneiro, a disparidade entre o número de filiadas e de dirigentes confirma a necessidade de que as mulheres precisam de empoderamento dentro das estruturas partidárias.

“Estou convencido de que muito se fala sobre a necessidade de maior participação das mulheres na política, mas pouco se faz efetivamente. Essa consulta é um gesto concreto, com fundamento legal. Nós não estamos pedindo que o TSE legisle”, afirma o advogado. Segundo ele, a reserva de 30% das vagas nas direções das legendas é uma “consequência lógica” do que é estabelecido pelo Congresso.

*Mariana Muniz é jornalista, repórter no site JOTA e colaboradora da Gênero e Número.

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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