Trans pode tudo, só não pode ser cis

Foto de Maite Schneider, uma mulher trans loira de olhos claros, que olha diretamente para a câmera.
Maite Schneider escreve sobre diversidade e inclusão nas empresas

Maite Schneider

Começo a primeira coluna do ano neste espaço lindo que me foi concedido pedindo desculpas pelo tom informal. Não falarei de universo corporativo, dicas de empregabilidade e nem caminhos a serem aprendidos.

Quero e preciso falar um pouco mais sobre mim, um ser humano que a sociedade colocou na caixinha de trans, com 52 anos, sem deficiências (mas com muitas dentro de mim), cheia de medos, inseguranças e lacunas. Talvez seja desse lugar de vazios imensos que eu queira transbordar hoje com você que me lê e chegou até aqui.

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Estou em Salvador, onde passei o Natal e a entrada do novo ano. Meu primeiro ano sem estar perto da família de sangue que me colocou no mundo. Um novo parimento, entre os muitos que já tive.  E é justamente nesse momento da minha vida, quando consegui cortar um pouco do cordão umbilical, que pude, de modo mais intenso, chegar mais perto de quem sou, sabe?

Pouco me recordo de minha infância. Quando me aparece, surge como flashs, como momentos, que muitas vezes não correspondem aos flashs vividos por meu irmão, Guilherme, e minha irmã, Sabrina. Algumas vezes, minha história parece paralela à história deles. Será assim para mais pessoas?

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Da juventude, que consigo recordar e que a cada ano novo comemoro, faz sumir do meu corpo (por mais que eu tente controlar) potências de disposição, de colágeno, de elasticidade, de plasticidade e de algumas outras coisas. É onde começo e reconheço meus maiores aprendizados e encontros comigo mesma. Aprendi a ter meus prazeres, minhas dores, meus amores, meus devaneios e meus anseios.

Mas foi a juventude que tantas disforias me trouxe também. Ela me cobrava a toda hora um perfeccionismo que não existe por fora, mesmo eu estando tão plena internamente. E como é estranho você TER que buscar para fora algo que está tão bem dentro de você. É uma cobrança de virar do avesso a todo momento, de ter que se enquadrar numa normativa, num padrão qualquer ou até num lugar utópico que te colocam, como a tal felicidade.

E como busquei este lugar. Creio até ter chegado nele algumas vezes nesses meus 52 anos. E hoje, aqui te escrevendo, quero te dizer algumas coisas que chegam no meu sentir.

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LIBERTE-SE de qualquer desejo que não seja seu

Pode parecer simples, mas não é. Somos um amontoado de desejos dos outros, de expectativas dos outros, de frustrações dos outros. A análise real de quais são os seus desejos é fundamental para que você encontre forças para seguir.

Vá PARIR a pessoa que você nasceu para ser

Você nasce muitas vezes na vida, é um processo contínuo. Estamos sempre morrendo e nascendo. Mas é algo ÚNICO poder parir quem você é e somente pode ser feito por você. Não pense que será fácil. O parto é doído, rasga as entranhas, apaga nossas certezas e anula nosso ego. O parto é o caminho do encontro com sua verdadeira essência. Permita-se parir. A maioria das pessoas só nasce, vive (ou sobrevive), algumas se reproduzem e morrem. Poucas são as que conseguem parir-se.

Durante muito tempo, ser trans foi algo que eu considerava sujo, pecaminoso e maldito. Hoje, entendendo o processo que vivo, percebo que foi fundamental para meu parimento. E eu ainda estou me parindo.

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Você precisa se encontrar com outro alguém

O processo contínuo de encontrar consigo é muito importante. Mas o parimento tem de ser algo compartilhado. Não nascemos para nos bastar. Nascemos para nos completar, para somar, para nos multiplicar. E isso só se faz com o outro.

Encontre seu cais, seu porto seguro. Alguém que será sua casa quando o caos se instaurar, pois o caos vem sempre. Amar é esse lugar, que vai além do sangue ou do que está em seus documentos. Encontre esse lugar, permita-se ter esse lugar. Tudo fará mais sentido durante a jornada.

Sei que, por tantas dores que passamos, queremos acreditar que não precisamos de ninguém, pois parece que precisar de alguém é sinal de fraqueza. Mas não se trata de precisar de alguém, mas de ser com alguém.

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Não perca sua capacidade de sonhar 

Vivemos numa sociedade que nos castra a todo momento, a cada ação nossa. Não somente com pessoas trans, mas para pessoas trans e outras pessoas excluídas e com mais dificuldades de acesso, a castração não só arranca a nossa capacidade inata de sonhar, mas também nos leva a deixar de acreditar nos sonhos, de saber o que significa sonhar.

E quando deixamos de sonhar, deixamos de desejar. E assim deixamos de querer, de acreditar e de ter motivos para continuar.

Se a capacidade de sonhar te foi arrancada, cultive-a numa parte ao menos do seu dia. No início, vai parecer exercício de autoajuda, algo forçado e até besteira. Insista, eu te peço!  Acredite em mim, valerá a pena. Foi quando eu consegui voltar a sonhar que minha existência e encontro comigo mesma fez cada vez mais sentido.

Por fim, e essa é para você, pessoa trans que me lê, e até para você que sente que não se enquadra nesse mundão: NÃO SEJA O QUE VOCÊ NÃO NASCEU PARA SER.

Vi um vídeo recente de uma mulher trans falando do quanto sua cirurgia de redesignação genital ficou perfeita e imperceptível para médicos e para a pessoa com quem ela se relaciona afetivamente. Isso me trouxe uma tristeza tão grande, pois já fiz muita coisa para buscar essa tal perfeição cisgênera. Uma perfeição que não existe nem na cisgeneridade, entende?

Pare com essa busca, com esse devaneio. Trans nunca será cis, por mais cirurgias que faça, por mais hormônios que tome, por mais que deseje e sonhe fortemente. Não permita essa crueldade com você.

Você pode tudo. E pode lindamente. Só não pode ser algo que não é.

E não falo como trans, pois como disse no começo, fui feita trans pela sociedade. Falo como um ser humano e espero que você também me compreenda desse lugar.

Por um mundo onde a liberdade de sermos na plenitude de quem somos seja nossa maior conquista como humanidade. Esse é meu maior desejo para o ano que se inicia.

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Maite Schneider

Maite Schneider trabalha com Direitos Humanos desde 1990. Com MBA em Gestão Estratégica, Inovação e Conhecimento. é Linkedln Top Voice e coautora do livro “Diversidade, Equidade e Inclusão – Tornar simples o que parece complexo”. Cofundadora do projeto TRANSEMPREGOS (2013) e embaixadora da RME. Consultora e Mentora sobre Inclusão, Diversidade e Humanização. Cofundadora da Integra Diversidade – uma consultoria especializada em Inclusão e Diversidade - e da SOMOS Diversidade, é parte do Comitê Consultivo do Programa Municipal de DST/Aids e da Frente Parlamentar pelos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Estado de São Paulo.

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