Lola Ferreira
C
omo as desigualdades de gênero, raça e classe impactam as relações de cuidado e afazeres domésticos no Brasil? Para responder a essa pergunta, pesquisadores e organizações – como a Gênero e Número – têm se debruçado sobre a análise histórica e social do país, em diferentes regiões.
Na sexta-feira (20), o seminário “Teias do Cuidado” reuniu pesquisas que lançam luz sobre como o exercício do cuidado e a sobrecarga feminina se manifestam em diferentes contextos, nas regiões Nordeste, Sul e Sudeste do país. O evento foi organizado pelo Laboratório de Estudos sobre Diferença, Desigualdade e Estratificação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte do projeto Teias do Cuidado, realizado pela Gênero e Número em parceria com o grupo de pesquisa Trabalho Doméstico e de Cuidados. O objetivo é investigar e divulgar resultados sobre disparidades de gênero, distribuição de tarefas domésticas e suas interseções com o trabalho no contexto pós-COVID-19.
Vitória Régia da Silva, presidente e diretora de conteúdo da Gênero e Número, abriu o evento destacando o papel da organização na divulgação científica de pesquisas sobre cuidado. “Para nós, sempre foi importante trabalhar com dados e com uma cobertura interseccional de gênero, raça e sexualidade no Brasil”, afirmou, mencionando outros trabalhos desenvolvidos pela Gênero e Número que ampliam o alcance da divulgação científica.
Ela destacou que, nesse projeto, uma iniciativa de pesquisa e divulgação científica, a organização já publicou, em menos de um ano, um vídeo estilo povo fala, uma série de verbetes sobre o tema e sete artigos que abordam paternidade, divisão racial do trabalho, trabalhadoras domésticas, maternidade e juventude. Além disso, lançou duas reportagens: uma sobre o crescimento de 83% nos partos de mulheres com mais de 40 anos e outra sobre como um casal de mulheres divide as tarefas domésticas e de cuidado. “Queremos continuar em 2025, porque discutir cuidado e trabalho doméstico é um tema urgente tanto na comunicação quanto na pesquisa”, enfatizou Silva.
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Na primeira mesa do seminário, intitulada “Cuidado e Trabalho Doméstico”, os pesquisadores Jurema Brites (UFSM) e Pedro Nascimento (UFPB) abordaram a relação entre cuidado, trabalho doméstico, o Estado e as comunidades.
Nascimento apresentou reflexões sobre como a burocracia estatal impacta o acesso a direitos em comunidades vulneráveis, a partir da história de uma família. Ele explicou que essas reflexões resultam de uma pesquisa de sete anos que investiga as dinâmicas sociais e institucionais em populações de baixa renda.
O caso relatado por Nascimento aconteceu em Timbó, uma localidade pobre de João Pessoa. Sandra, uma mulher negra de 64 anos, era a cuidadora principal de seu filho Michel, de 34 anos, com deficiência. Ela enfrentou inúmeros obstáculos para garantir os direitos de Michel, tanto na área jurídica quanto na saúde, devido à distância geográfica e à complexidade da burocracia. Após o falecimento de Sandra, o pai de Michel assumiu o papel de cuidador, contando com o apoio de uma rede ampliada – o que possibilitou acesso a direitos anteriormente inacessíveis. “O que Sandra fazia sozinha antes, muitas pessoas passaram a fazer juntas”, destacou Nascimento, evidenciando a sobrecarga feminina no cuidado.
Já Brites compartilhou resultados de uma pesquisa realizada no Rio Grande do Sul, marcada pelas enchentes de maio. Durante o desastre, 38 coletivos foram identificados atuando nas comunidades afetadas, dos quais 16 eram liderados por mulheres.
A pesquisadora destacou a importância do Cuidado Comunitário, que vai além da esfera familiar e é, muitas vezes, organizado por mulheres. Durante as enchentes em Santa Maria, elas mobilizaram recursos como roupas e alimentos para ajudar outras famílias. “Essas mulheres conheciam de cor os tamanhos de roupas, calçados e as necessidades alimentares das casas atendidas. Esse trabalho comunitário é uma forma de cuidado pouco explorada na literatura”, observou Brites.
Não era amor, era trabalho não remunerado
Na mesa “Cuidados e Trabalho Doméstico”, as pesquisadoras Anna Bárbara Araújo (UFRN) e Thays Monticelli (UFRJ) avaliaram os impactos das desigualdades em contextos regionais e sociais distintos.
Araújo apresentou uma pesquisa sobre o bairro de Ponta Negra, em Natal (RN), destacando como famílias de classe média recorrem à contratação de serviços de cuidado, enquanto famílias de classes baixas enfrentam dificuldades devido à ausência de equipamentos públicos e à fragilidade das redes de apoio familiar. Já Monticelli explorou os resultados de uma pesquisa nos bairros de Laranjeiras e Gávea, no Rio de Janeiro (RJ), analisando as mudanças na composição familiar e na divisão sexual do trabalho em famílias de classe média carioca no contexto pós-pandemia de COVID-19.
Felícia Picanço, professora do Departamento de Sociologia da UFRJ, finalizou o seminário avaliando que o volume de pesquisas apresentadas inspira e provoca novos debates: “O temos de material dá espaço para outros encontros, acho que a gente aqui expõe num primeiro momento essa capacidade de sistematizar, refletir e somar as questões Estado, burocracia, divisão do trabalho doméstico, grupos socioeconômicos. [Pensaremos] como articular toda essa gama de trabalho de campo que temos, nesses atravessamentos comuns e diferentes.”