O trabalho com dados e design não é neutro, ele reflete uma visão da realidade. Na Gênero e Número, olhamos para os dados para falar sobre iniquidades e sobre garantia de direitos para pessoas negras, mulheres, população LGBTQIA+ e outras minorias políticas.
O que escolhemos mostrar nos nossos gráficos ajuda a ampliar o alcance das nossas histórias. As visualizações que aparecem em nossas reportagens, artigos e projetos especiais não representam somente uma base de dados, mas sim a análise que fazemos dela.
O papel do design de dados comprometido com a equidade é redesenhar as hierarquias. Se o cânone da visualização de dados nos diz que é preciso ordenar um conjunto de dados numericamente, partindo do maior para o menor, nós vamos rever essa regra e criar uma nova ordem, que nos ajude a mostrar quem ficaria no fim da história.
É muito comum nos deparamos com bases de dados que não levam em conta o contexto da coleta, o que pode gerar análises enviesadas ou que não contemplam perguntas para identificar se aquelas pessoas fazem parte de uma minoria política. Um exemplo: até 2016, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não divulgava informações de raça/cor de candidaturas e pessoas eleitas.
Nas eleições municipais de 2020, mostramos a importância do acesso a esses dados. Com eles, foi possível produzir uma visualização que deixa em evidência a sub-representatividade de mulheres negras na política institucional brasileira: somente em seis municípios o maior grupo demográfico do país foi maioria entre os eleitos para Câmaras Municipais.
Com um mapa, mostramos onde elas estavam e também onde não estavam. Os espaços vazios denunciaram sua ausência sem tirar delas o protagonismo.
Além de apontar iniquidades e identificar padrões que denunciam o racismo estrutural na nossa sociedade, buscamos produzir conteúdos que mostram potência e força de grupos historicamente sub-representados nas narrativas dominantes ou representados numa perspectiva de tragédia.
Para isso, identificamos as bases das quais podemos extrair informações ou formulamos perguntas para construir uma base própria, que seja capaz de suprir a ausência de dados.
Como poderíamos falar de alimentação sem cair nas narrativas de déficit, a partir de uma perspectiva afirmativa, que mostra possibilidades de acesso à comida de verdade?
Pedimos a quatro mulheres negras que fizessem um diário de seu cotidiano. Ao longo de uma semana, elas anotaram todos os detalhes de sua rotina alimentar. Com essa pequena base de dados foi possível entender quais fatores atravessavam a aquisição e o consumo de alimentos de verdade.
O resultado se traduziu em gráficos, ilustrações e outros componentes visuais que, juntos, nos ajudaram a humanizar os dados alarmantes e aprofundar em questões que uma base de dados oficial não seria capaz de abordar.
Quando não é possível construir uma base própria, trabalhamos também com a ausência de dados em bases disponibilizadas pelo Estado, para apontar que o preenchimento da variável raça ainda é ruim no Brasil.
Em março de 2024, o Distrito Federal era líder de casos durante a epidemia de dengue no país. Mostramos que 66% dos mortos pela doença eram pessoas negras, ainda que elas representem 59% da população da capital. Mas também mostramos que não sabemos a raça de uma de cada quatro vítimas de dengue no DF.
Outro exemplo de construção de base própria para mostrar o racismo estrutural é a reportagem visual vencedora do Prêmio Cláudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados 2023, que desenhou a demografia histórica do Supremo Tribunal Federal (STF).
Levantamos manualmente o histórico de ministros da Suprema Corte brasileira e o tempo que ocuparam o cargo. O resultado é uma linha do tempo em que é possível visualizar a predominância de homens brancos no debate constitucional, uma “cascata de homens brancos”. Para falar de racismo, é preciso falar de quem se beneficia dele.
E para entender por que ele persiste, é preciso também visualizar sua construção ao longo dos anos. No especial do Dia da Consciência Negra de 2023, abrimos a reportagem visual com uma linha do tempo em que é possível ver que ⅔ da história brasileira transcorreram sob regime escravocrata.
Nela, localizamos as primeiras leis de reparação e mostramos que somente um século após a abolição o Brasil passou a criminalizar o racismo.
Ainda há muito a ser feito. Se as bases oficiais trouxessem dados mais completos e de qualidade, poderíamos explorar novas histórias, aprofundar análises e inspirar formas inovadoras de usar dados para fortalecer a equidade.
O trabalho da Gênero e Número reafirma que dados e design são ferramentas poderosas para questionar estruturas de poder, denunciar desigualdades e imaginar futuros mais justos. Nosso compromisso é com a construção de narrativas que humanizem os dados e promovam direitos para pessoas negras, especialmente mulheres negras cis e trans, ampliando acessos e ocupando espaços de poder, enquanto trabalhamos por menos violência e desigualdades sociais.
Em oito anos de atuação, aprendemos que o ecossistema de dados e design precisa assumir um compromisso claro com a justiça social. Isso requer uma leitura crítica dos números, coragem para transformar narrativas e ousadia para redesenhar o status quo.
Acreditamos no potencial de dados e design como ferramentas de inclusão e transformação. Por isso, seguiremos criando visualizações que não apenas informam, mas provocam reflexões e apontam novos caminhos para uma sociedade verdadeiramente equitativa, diversa e representativa.
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por Gênero e Número
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Arquiteta e urbanista formada pela Universidade de São Paulo (FAU-USP), trabalha na Gênero e Número desde 2017, onde hoje atua como vice-presidente e diretora de design e inovação. Fascinada por criar sistemas, acumula projetos de comunicação visual para organizações do terceiro setor e movimentos sociais.
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