O CEP do racismo ambiental

Moradores e comerciantes de Rio da Pedras, zona oeste do Rio de Janeiro, sofrem com alagamentos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Escrever sobre racismo ambiental e justiça climática sempre foi desafiador para mim. Estudo o tema há pelo menos 15 anos, mas, antes de mim, lideranças do movimento negro e indígenas já haviam formulado sobre esses assuntos. Unir o passado e o futuro também é fundamental para pensar a transformação de políticas públicas e das pessoas, para uma sociedade antirracista e um planeta que funcione sem desigualdade social.

No Brasil, 56% da população é negra, segundo o IBGE. O racismo ambiental diz respeito às pessoas que moram nas favelas, morros, nas beiras dos rios e nas beiras de trilhos, nas beiras de represas e em grandes cidades. Qual é a cor dos corpos levados pelas enchentes, soterrados pelos deslizamentos e que são afetados pela escassez de alimentos nas cidades.

Há alguns anos, eu e meu amigo e jornalista Pedro Borges, do Alma Preta Jornalismo, ouvimos de um homem, branco e ambientalista, que o movimento negro não estava inserido no debate ambiental brasileiro, como se fosse uma escolha. As pessoas mais atingidas por crimes ambientais, por desastres, pelas ações do clima, são ignorantes do debate? Um erro, mais uma violência contra a população negra. Afinal, depois da tempestade, as pessoas tentam se reerguer em luta, cobrando e formulando para que novas gerações sobrevivam.

Foi aí que fizemos consultas com lideranças mais velhas do movimento negro, algumas que estiveram na Conferência de Durban contra o Racismo, em 2001. A Declaração e Plano de Ação de Durban faz referência direta ao meio ambiente. Vale a leitura atenta do documento da Conferência, que completou 30 anos em 2021.

O debate ambiental estava diretamente relacionado à saúde das populações negras e ao processo de tomada de decisão. Naquela época, o documento marco de referência era aquele acordado, negociado e aprovado durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento, que aconteceu no Rio de Janeiro, em 1992 (Rio 92). O termo “mudanças climáticas” ainda não fazia parte dos debates. Finalmente, para o bem da história e do ativismo, o conceito racismo ambiental no Brasil entrou na pauta, justamente após ausências de debate específico no processo de preparação da Rio 92.

As abordagens podem parecer recentes, o burburinho nas redes sociais nos provoca a falar sobre o tema. E, ainda que poucas, referências jovens têm levantado o tema nacional e internacionalmente. Mas o racismo ambiental tem relação com o processo histórico de vulnerabilização da população nos territórios, para não dizer esquecimento, até que a política de remoção chega e gentrifica aquele lugar, o embranquece com grandes condomínios.

A crise ecológica global é, simultaneamente, uma crise de justiça racial. Não abordá-la dessa forma é negacionismo e racismo. Os efeitos devastadores da crise são desproporcionalmente suportados pela população negra. No Brasil, esses grupos são os moradores das áreas mais atingidas pela poluição, pela perda de biodiversidade e pelas mudanças climáticas.

O relatório sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, da relatora especial para o tema na ONU, E. Tendayi Achiume, aponta que o mundo vai continuar perpetuando o racismo se adotar soluções ambientais sem considerar justiça racial.

O documento afirma que a população negra está desproporcionalmente concentrada em “zonas de sacrifício” globais – regiões que se tornaram perigosas e até mesmo inabitáveis ​​devido a problemas estruturais. Considerando que as zonas de sacrifício estão concentradas no território anteriormente colonizado e em territórios do sul global,  o norte global é o grande culpado por essas condições.

O racismo serviu como um princípio organizador fundamental para sistemas e processos no centro das crises climáticas e ambientais. Compreender e abordar o clima contemporâneo e a injustiça ambiental em um cenário racialmente discriminatório requer uma abordagem histórica sobre como o racismo moldou a economia, a política e as realidades climáticas e ambientais. E, claro, as estruturas jurídicas.

Eu escrevo de São Paulo, mas a realidade se estende por todo o país, em situações graves, de mortes em números absurdos, pessoas que perdem recursos materiais e imateriais. Dos bens que nos formam como indivíduos, nossas histórias, a uma geladeira comprada em 12 vezes em alguma loja de departamento, que ainda não foi paga.

O volume de chuvas na região de São Sebastião, litoral norte do Estado de São Paulo, chamou atenção do país, em especial da mídia, que apontou o desastre como uma prioridade de pauta, porque casas de alto padrão foram atingidas, mas as mortes da população negra do outro lado da BR 101 (Rio – Santos) não foram visibilizadas. Assim como as vítimas das chuvas em Bahia, Maranhão, Pernambuco e Rio de Janeiro. Violação de direitos também é racismo ambiental, como no caso do território quilombola de Alcântara no Maranhão.

Teremos tempo e colunas para falar, com fôlego, sobre um tema urgente, que deveria tomar as páginas de jornais, não só pequenos espaços em cadernos especiais. Uma conversa séria com os ambientalistas brancos no Brasil, que ainda não consideram as questões raciais centrais nas negociações e nos debates sobre clima, aqui ou em qualquer lugar do mundo.

Chego aqui de fininho, espero que as conversas ampliem as vozes do debate sobre racismo ambiental, apresentem questões já formuladas pelo movimento negro, pelo movimento indígena, por mulheres e crianças, e tragam o questionamento sobre esse modelo convencional e capitalista de produção e consumo, baseado na exploração intensiva da vida e dos recursos naturais, que distribui de forma desigual. E afeta, principalmente, a população negra.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da GN

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Mariana Belmont

Mariana Belmont é jornalista, nascida em Parelheiros (extremo sul da cidade de São Paulo), trabalha com articulação e comunicação para políticas públicas. Atuou em cargos no governo sobre questões ambientais e de habitação na Prefeitura da cidade de São Paulo. Trabalhou como coordenadora de comunicação e articulação do Mosaico Bocaina de Áreas Protegidas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Foi Superintendente de Programas e Diretora de Clima e Cidade no Instituto de Referência Negra Peregum. Foi colunista do UOL e agora escreve mensalmente para a Gênero e Número. Também é ativista, parte de movimentos ambientalistas e periféricos. Recentemente foi editora convidada da Revista "Diálogos Socioambientais: Racismo Ambiental" da Universidade Federal do ABCD. É organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023). Atualmente é Assessora sobre Clima e Racismo Ambiental de Geledés - Instituto da Mulher Negra.

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