Peregum nos protege e sempre há de nos trazer sorte

Estou de saída do Instituto de Referência Negra Peregum depois de quase cinco anos a serviço de um dos projetos coletivos e políticos dos quais participei em meus 35 anos de vida. Uma entrega de vida pessoal, profissional e política. Não me arrependo de nada, só agradeço nossos avanços e o quanto se ouve, se lê os mais velhos, se constrói junto com quem veio antes.

A população negra sempre esteve envolvida em lutas por liberdade, sobrevivência, bem viver, participação política e direitos sociais. A construção a partir das bases, em organizações associativas e comunitárias, é uma tecnologia conhecida e transmitida. Nesse sentido, o Peregum se soma a uma longa e resiliente tradição. A área de Clima e Cidade do instituto é formulada para dar respostas a desafios que se arrastam há séculos, mas demandam estratégias pouco permitidas à comunidade negra.

Apenas 24% da população sabe o que é ou já ouviu falar sobre racismo ambiental e apenas 14% das pessoas indicam o racismo ambiental como uma razão para desastres ambientais, como alagamentos, enchentes, desmoronamentos, queimadas e contaminação por poluentes. Os dados são parte da pesquisa inédita Percepções sobre Racismo no Brasil,  uma iniciativa do Peregum e do Projeto SETA – Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista.

O racismo ambiental é uma das características da colonização e, historicamente, deixa a população negra vulnerável. Nos últimos anos, o agravamento da crise ambiental, produzido pelas mudanças climáticas, tem mobilizado cada vez mais atores no Brasil e no mundo. No entanto, é evidente que seus impactos e os custos de seu enfrentamento não serão distribuídos igualmente. A população negra novamente sofre mais e sofre primeiro.

Pisando devagarinho. Fizemos consultas com lideranças mais velhas do movimento negro, algumas que estiveram na Conferência de Durban contra o Racismo, em 2001. A Declaração e Plano de Ação de Durban faz referência direta ao meio ambiente. Vale a leitura atenta do documento da Conferência.

O debate ambiental estava diretamente relacionado à saúde das populações negras e ao processo de tomada de decisão. Naquela época, o documento macro de referência era aquele acordado, negociado e aprovado durante Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que aconteceu no Rio de Janeiro, em 1992 (Rio 92). Ou seja, ainda não havia entrado em uso o termo “mudanças climáticas”.

Finalmente, para o bem da história e do ativismo, o conceito de racismo ambiental no Brasil entrou na pauta, justamente após a ausência de um debate específico no processo de preparação da Rio 92.

“O trabalho de Peregum para trazer o racismo ambiental para o centro do debate político tem sido muito eficiente. Sobretudo, tem avançado em termos de agregar conteúdo, porque um dos grandes problemas é que as ciências ambientais, sejam elas ciências sociais ou as chamadas ciências duras, ou as aplicadas, têm pouco acúmulo no que se refere ao racismo ambiental, e às vezes o que nós discutimos é mais uma cartografia ambiental do racismo do que propriamente o racismo ambiental. O melhor exemplo foi o esforço feito na COP-27, realizada no Egito”, diz Dulce Pereira, liderança do Movimento Negro Unificado, arquiteta, ambientalista, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde coordena o Laboratório de Educação Ambiental.

Apesar do reconhecimento da crise habitacional e urbana por diversos intelectuais e da evidência empírica da relação dela com a questão racial, há poucos estudos que façam essa conexão. A manutenção do mito da democracia racial persiste no pensamento urbano brasileiro e produz consequências sociais e políticas profundas. Mesmo os movimentos de moradia, certamente os mais expressivos movimentos de massa urbanos pós-ditadura, de maioria negra, liderados por pessoas negras, não colocaram no centro de suas agendas o racismo, as políticas antinegro, o embranquecimento de bairros e a segregação racial como chaves explicativas da desigualdade urbana.

Estratégias de enfrentamento. Participação em audiências públicas e espaços de debate para afirmar: a desigualdade racial precisa ser considerada e enfrentada.

Logo percebemos que se nós não apresentássemos dados e análises para explicitar essa obviedade e incidir em espaços institucionais, os atores tradicionais desse debate não o fariam. Na coordenadoria de Racismo Ambiental, adotamos a estratégia de formação e articulação de base, incidência no âmbito do governo federal e articulação nacional. Já em Direito a Cidades Antirracistas, a incidência principal tem sido na articulação e formação da base e incidência e articulação local, com foco em São Paulo.

O maior acesso à universidade e à especialização permitiu que profissionais negros e afrodescendentes interessados em contribuir com a luta antirracista transitem em círculos universitários privilegiados. Também chegam ao Peregum com bagagem técnica e profissional, além daquela forjada na luta popular. A presença desses profissionais permite a incidência em espaços de produção acadêmica, audiências públicas, reuniões com membros do executivo e elaboração de textos e de duas emendas debatidas no âmbito da revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo.

A atuação sempre teve como objetivo subsidiar a luta de movimentos populares, especialmente do movimento negro, racializando narrativas e dados para fortalecer a incidência antirracista em espaços institucionalizados, onde são definadas políticas urbanas e ambientais. As ações estratégicas miram o enfrentamento do racismo ambiental, as mudanças climáticas, o embranquecimento das cidades e a segregação e desigualdade raciais, que têm como consequencia o genocídio da população negra.

Peregum tem atuado tanto na denúncia do racismo nas políticas urbanas e ambientais, como na proposição de outras políticas para soluções antirracistas, operando por meio da produção de conhecimento racializado, da participação popular nos espaços de debate, da formação e da incidência política. Dessa maneira, o instituto contribui para a construção de um lastro robusto da racialização desses temas e torna-se mais uma referência na agenda de clima e cidade.

Vou usar esse espaço da minha coluna mensal para agradecer às referências mais velhas, que me possibilitaram escrever, ler e apoiar essa construção. Agradeço pela equipe incrível que esteve ao meu lado nos últimos anos, com sonhos loucos de cidades melhores. Obrigada Gisele Brito, Fernanda Pinheiro da Silva, Izabela Santos e Pedro Rezende Mendonça.

O papel das organizações negras na construção do país, na formulação, em pensar à frente e estar à frente na construção política e científica é coisa fina e sofisticada. Nosso Estado não está preparado para soluções tão sofisticadas e pensamentos que vão além deste tempo. Os pensamentos velhos e a política genocida estão em toda parte do Estado e muitas vezes se fazem presentes em práticas de organizações brancas que se dizem antirracistas, mas só reforçam o plano de extermínio.

Sigo por aqui, perto. Temos muito trabalho.

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Mariana Belmont

Mariana Belmont é jornalista, nascida em Parelheiros (extremo sul da cidade de São Paulo), trabalha com articulação e comunicação para políticas públicas. Atuou em cargos no governo sobre questões ambientais e de habitação na Prefeitura da cidade de São Paulo. Trabalhou como coordenadora de comunicação e articulação do Mosaico Bocaina de Áreas Protegidas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Foi Superintendente de Programas e Diretora de Clima e Cidade no Instituto de Referência Negra Peregum. Foi colunista do UOL e agora escreve mensalmente para a Gênero e Número. Também é ativista, parte de movimentos ambientalistas e periféricos. Recentemente foi editora convidada da Revista "Diálogos Socioambientais: Racismo Ambiental" da Universidade Federal do ABCD. É organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023). Atualmente é Assessora sobre Clima e Racismo Ambiental de Geledés - Instituto da Mulher Negra.

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