O que não tem nome não existe

Foto mostra uma mulher trans sentada sobre uma bandeira do Orgulho Trans na qual escreve
Foto: Tatiana Reis/Gênero e Número

Maite Schneider

O nome é uma das primeiras atribuições que recebemos, algumas vezes muito antes de nascer, e sua importância é maior que a de simplesmente servir como uma forma de nos identificar. Ele acaba ligando-se profundamente à nossa identidade, à maneira como nos percebemos e somos percebidos pelo mundo. Ao refletirmos sobre temas como identidade de gênero, orientação sexual e a vasta diversidade humana, a escolha e uso do nome ganham uma relevância ainda maior.

A identidade de gênero, por exemplo, é a percepção íntima e intrínseca que alguém tem sobre seu próprio gênero, que pode não corresponder ao sexo imposto ao nascimento. Para pessoas transgêneras, o nome dado ao nascer muitas vezes não reflete sua verdadeira identidade. Assim, escolher um novo nome pode ser um ato de empoderamento e afirmação.

O nome escolhido acaba sendo a expressão mais autêntica da pessoa, ajudando-a a se sentir reconhecida e respeitada em sua essência. Claro que também conheço muitas pessoas cisgêneras que não se identificam com o nome imposto. Em algumas empresas onde trabalho como consultora de diversidade, o direito de ter esse desejo respeitado no crachá e no e-mail corporativo é estendido a todas as pessoas colaboradoras. Um nome que não nos representa é um nome de um fantasma que não existe.

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Da mesma forma, a orientação sexual de uma pessoa pode influenciar na sua relação com o nome. Em sociedades onde a heterossexualidade é predominante e normatizada, pessoas LGBTQIAPN+ frequentemente enfrentam discriminação e invisibilidade. Nesse contexto, o nome pode se tornar uma ferramenta de afirmação e resistência.

Para indivíduos cuja orientação sexual desafia as normas sociais, o nome pode ser uma maneira de expressar orgulho e pertencimento à comunidade LGBTQIAPN+, além de ajudar a construir uma identidade autêntica. Uma orientação não nomeada é uma orientação invisível.

Além disso, é crucial reconhecer que a diversidade humana vai além das categorias tradicionais de gênero e sexualidade. Identidades não binárias, fluidez de gênero e diversas orientações sexuais desafiam as noções binárias e heteronormativas que predominam em nossa sociedade. Para essas pessoas, o nome pode ser uma forma de rejeitar as limitações impostas pelos rótulos convencionais e afirmar sua singularidade.

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Nomear é importante para darmos força a quem detém o nome, mas também para que os acessos e possibilidades de políticas públicas sejam verdadeiramente includentes, como sempre devemos construir.

Sou uma mulher trans de 52 anos de idade e lembro que em minhas descobertas, no início dos anos 80, falava-se somente em GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Eu, durante muito tempo, me identificava como uma pessoa simpatizante, pois sabia não ter orientação gay ou lésbica.

Foi somente com o surgimento da sigla GLBT (como era inicialmente) que descobri existirem pessoas travestis e transexuais. E pude me identificar. E foi me identificando que pude finalmente começar a encontrar um pouco de paz nas muitas guerras que eu travava dentro de mim por conta dos vários bloqueios que eram colocados e dos padrões nos quais eu tentava, mas não conseguia me encaixar.

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Por isso, fico imensamente feliz quando vejo letras e palavras sendo acrescentadas em nossa vida e práticas. Sei que muitas pessoas acham que isso dificulta mais do que ajuda, mas peço um pouco de empatia. Se seu nome e o que te identifica funciona para você, fico feliz, mas negar isso a um grupo de pessoas é cruel e desumano. Desde 2018, o Brasil permite a alteração tanto do nome quanto do sexo, sem necessidade de apresentação de laudos médicos de espécie alguma.

No entanto, é importante ressaltar que escolher um novo nome nem sempre é uma opção acessível para todos. Muitas pessoas enfrentam barreiras legais, sociais e financeiras ao tentar mudar seu nome. Isso é especialmente verdadeiro para pessoas transgêneras e não binárias, cujas identidades frequentemente não são reconhecidas ou respeitadas pelas instituições. Portanto, é fundamental trabalharmos para criar sociedades mais inclusivas e acolhedoras, onde todas as pessoas tenham o direito de escolher e usar o nome que melhor reflita sua identidade/orientação/diversidade.

Todo nome é uma criação, seja de pessoas, orientações, identidades, objetos e tudo que compõe nosso vocabulário. Nada foi dado de maneira natural e muito menos veio do divino. Somos seres criadores em potencial.

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Sempre que surge algo novo, uma nova palavra é criada. O próprio PIX, uma das palavras mais usadas atualmente, foi lançado oficialmente somente em novembro de 2020. Antes não fazia parte do nosso cotidiano. E por que todo mundo, inclusive você, aprendeu fácil e sem dificuldades essa recente palavra? Eu te conto: Porque interessa, convém e importa em sua vida.

Nós aprendemos, sim, nomes e palavras que nos importam. Não é por dificuldade que não respeitamos nomes de outras pessoas e suas identificações, é por não querermos e não nos importarmos.

Ao reconhecer e respeitar a importância do nome na vida das pessoas, podemos contribuir para a construção de um mundo mais inclusivo para e pertencente a todos. E creio ser isso que desejamos, certo?

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Maite Schneider

Maite Schneider trabalha com Direitos Humanos desde 1990. Com MBA em Gestão Estratégica, Inovação e Conhecimento. é Linkedln Top Voice e coautora do livro “Diversidade, Equidade e Inclusão – Tornar simples o que parece complexo”. Cofundadora do projeto TRANSEMPREGOS (2013) e embaixadora da RME. Consultora e Mentora sobre Inclusão, Diversidade e Humanização. Cofundadora da Integra Diversidade – uma consultoria especializada em Inclusão e Diversidade - e da SOMOS Diversidade, é parte do Comitê Consultivo do Programa Municipal de DST/Aids e da Frente Parlamentar pelos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Estado de São Paulo.

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