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s Jornadas de Junho de 2013 completam 10 anos e muito se tem falado sobre esse levante popular e seus desdobramentos. Mas poucas vozes de mulheres negras são consideradas nesse emaranhado de reconstituição e avaliação dos eventos que, depois de uma década, nos ajudam a compreender a engenharia política do Brasil.
Em geral, o enquadramento dos veículos de maior audiência do país ainda deslegitima os sujeitos políticos que ocuparam as ruas em 2013 e minimiza a capacidade organizativa dos setores populares que estavam ali lutando pelos direitos civis. Por isso, convidamos três lideranças das regiões Nordeste, Sudeste e Sul do país para falar sobre as jornadas em seus territórios, suas avaliações daquele momento e o cenário que se montou posteriormente.
Qual foi o impacto das Jornadas de Junho de 2013 na vida da população brasileira, em especial das pessoas negras e periféricas brasileiras? A deputada estadual Dani Portela (PSOL/PE), a vereadora de Curitiba Giorgia Prates (PT) e a ativista Rafaela Albergaria (Observatório dos Trens/ Rio de Janeiro) falam sobre suas atuações no período e analisam as implicações daquele junho de forma crítica e, obviamente, coletiva.
Mas antes de ouvir as lideranças, vamos recapitular o que foram as Jornadas de Junho de 2013.
Não era mesmo só por 20 centavos!
No primeiro momento, a mobilização para os atos de junho de 2013 foi fomentada pelo Movimento Passe Livre (MPL), devido ao aumento de 20 centavos na tarifa de ônibus em São Paulo, anunciado por Fernando Haddad (PT), então prefeito da cidade. Mas logo se espalhou pelo país – porque o aumento da passagem é uma prática anual comum em todo o Brasil – e manifestantes foram às ruas em Goiânia, Natal, Rio de Janeiro, Recife, Curitiba, Salvador, Brasília, Belo Horizonte, entre outras capitais. A polícia, como de costume, reagiu de forma violenta e os atos foram duramente rechaçados pela imprensa, que acusou os manifestantes de “vândalos”.
As manifestações tomaram novos rumos, houve a ampliação de pautas e ficou ainda mais explícito que não era só pelos 20 centavos. Aliás, nunca foi! A população reivindicava gratuidade, qualidade e ampliação do transporte público. Mas, sobretudo, o direito de ir e vir, que está diretamente ligado ao acesso à educação e à saúde, bem como à segurança e ao emprego digno “padrão Fifa”. Ficou evidente que o que estava em jogo era um projeto político.
A direita e extrema-direita invadiram as ruas com caras novas e bandeiras velhas. Com a ajuda dos jornalões, dos programas sensacionalistas e dos veículos de grande audiência, que a partir daí se reposicionaram e passaram a apoiar os atos, o clamor popular de uma “nova política” foi subvertido.
Emerge então o antipetismo mais explícito, que na verdade era o antinegro e o antipobre. Até ali o PT, através do presidente Lula e da ex-presidenta Dilma, era o partido que tentava implementar ações afirmativas no país, como o programa Minha Casa, Minha Vida, em 2009, e as cotas raciais nas universidades públicas, em 2012.
O reenquadramento das jornadas de junho de 2013 respingou, claro, na então presidenta Dilma Rousseff e sua aprovação começou a cair nas pesquisas de opinião, apesar de o Brasil ter atingido naquele ano a menor taxa de desemprego desde 2002 – quando se iniciou a série de pesquisa -, com 4,3%, segundo dados do IBGE.
O resultado das manifestações sentimos logo depois, com o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016, com a perseguição e a prisão do presidente Lula, em abril de 2018, e com a eleição de Bolsonaro, em novembro de 2018. Em contraponto, as jornadas de junho de 2013 deixaram como legado o inegável fortalecimento dos movimentos sociais no país, com o surgimento de inúmeros coletivos e de novas lideranças políticas oriundas de favelas e periferias, e o apoio de organizações nacionais e internacionais comprometidas com os Direitos Humanos.
Direito de se mover, direito de existir
A ativista Rafaela Albergaria, idealizadora do Observatório dos Trens, projeto de pesquisa, mobilização e incidência sobre mortes e atropelamentos ferroviários na região metropolitana do Rio de Janeiro, e co-organizadora do livro Mobilidade Antirracista (2021), avalia as jornadas de junho de 2013 como um acontecimento fundamental na história política do Brasil por revelar a projeção do lugar social de quem ocupava as ruas.
“Os atos eram majoritariamente negros e femininos nas ruas. Por mais que quem estivesse com o microfone na mão fossem homens, em sua maioria brancos, eram as mulheres negras e suas famílias que avolumavam as manifestações e lutavam por seus direitos”, afirma.
Albergaria era moradora da Baixada Fluminense e, três anos antes, havia entrado para o curso de Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela conta que os R$16 diários que precisava gastar para ir à universidade dificultavam sua permanência na academia, assim como a de muitos outros alunos que conseguiram ingressar após a implementação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), em 2007, e da Lei N° 12.711, de 2012, que garante a reserva de 50% das vagas nas universidades e instituições federais de ensino técnico de nível médio para pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e estudantes de escola pública. Albergaria afirma que, ao participar dos atos como liderança, percebeu que não foi a ideia de tarifa zero que levou as pessoas às ruas.
“O transporte é uma máquina de controle. No primeiro momento, as pessoas foram às ruas contra o aumento da passagem. Depois, era sobre a superlotação, demora nos pontos de ônibus, demora do trem e falta de transporte em algumas localidades. Vale dizer que, até então, as pessoas só saíam das favelas e das periferias para trabalhar. Mas quando elas passam a ir aos espaços de formação e educação, surge uma demanda para a qual a política de mobilidade do Rio de Janeiro, por exemplo, não estava preparada. Porque a política de mobilidade é política de interdição”, diz.
Vigília pela esperança
Naquele junho de 2013, a vereadora de Curitiba – Mandata Preta Giorgia Prates (PT) atuava como fotojornalista e começava a militar pelos Direitos Humanos. Depois que os atos eclodiram, viajou para São Paulo para fazer a cobertura. Quando chegou, já era um percentual grande da turma do verde e amarelo que estava nas ruas. E, como muitas pessoas que participaram das manifestações, somente hoje ela consegue ler melhor o que estava acontecendo.
“Foi um golpe a todas as pessoas marginalizadas. Um projeto bem executado porque, sem dúvida, eles estavam mais estruturados que nós”, avalia. Prates considera que a avalanche de fake news e a prisão arbitrária do presidente Lula, em 2018, reforçou o que estava realmente orquestrado pela direita e pela extrema-direita brasileira em 2013. “Foi o segundo golpe que levamos e daí foi só retrocesso”.
Prates esteve todos os dias na Vigília Lula Livre, por muitas horas. A vereadora diz que, somente com a soltura do presidente, a esperança de ter ao menos uma eleição justa acalentou os corações ansiosos por dignidade.
Atualmente na Câmara Municipal de Curitiba, ela acredita que ainda há muito a ser feito para recuperar os duros golpes que a população brasileira, em especial negra, periférica e LGBTQIA+ sofreu nos últimos anos. No entanto, considera que a mudança real só é possível com muito diálogo e diplomacia. “É uma arena difícil, mas a gente sente que há mais abertura ao diálogo em algumas situações”.
Pauta negra não tem apoio
A deputada estadual Dani Portela (PSOL/PE), que é professora de História, advogada, militante e integrante do movimento negro e feminista, participou das manifestações como advogada popular, junto a outras pessoas, para dar suporte aos manifestantes em caso de violações.
“Eu lembro que a gente tinha medo da violência policial, como estava acontecendo em outras cidades do país, porque os atos em Recife costumam ser acompanhados pelos agentes de trânsito para organizar as vias. Nós não temos a prática de ter atos com presença ostensiva da polícia militar, mas naquele 2013 tivemos e, por conta disso, a equipe jurídica foi reforçada”, conta.
Segundo a deputada, muitas pessoas foram presas durante as manifestações. Como advogada, ela confessa ter se assustado com o arsenal da polícia para lidar com os manifestantes.
“Eu fiquei muito impressionada com o aparato do Estado para criminalizar pessoas muito jovens, que estavam colocando para fora uma série de insatisfações com o governo. No final, com muito apelo popular, as pessoas presas foram liberadas, mas responderam a um longo processo judicial”, diz. E denuncia, “a delegada que acompanhou os casos dos manifestantes presos, assim como o coronel que reprimiu os atos, depois entraram para a política com o bolsonarismo. Alguma relação há de ter”.
Ainda de acordo com a deputada, as jornadas de junho de 2013 na capital pernambucana foram essencialmente formadas por centrais sindicais, partidos políticos, movimentos sociais, universitários e secundaristas. E tinham como pano de fundo o aumento da tarifa, mas havia outras insatisfações da população.
“Pensava-se no usuário do transporte, mas também nos trabalhadores dos transportes, motoristas e cobradores, devido à qualidade do trabalho e ao salário. Também havia muitas insatisfações com os gastos excessivos e indícios de corrupção com a Copa do Mundo, em paralelo às necessidades de melhoria nos serviços públicos. A cidade era um verdadeiro canteiro de obras, enquanto faltava água nas comunidades”.
Com o distanciamento do fato histórico, a deputada acredita que a direita se apropriou das ruas e pintou um quadro, com a ajuda da mídia, que resultou em uma série de golpes políticos. Ao mesmo tempo, o movimento feminista ganhou experiência e se consolidou de forma mais ampliada, como o Feminismo para os 99%. Para a população negra, avalia, houve um apagamento da sua participação na jornada de junho de 2013.
“Pelo fato de o racismo estruturar de forma tão profunda as desigualdades no nosso país, nossas pautas são absorvidas. Sempre que são pautas maiores, sejam elas quais forem, o movimento negro, em especial de mulheres negras, se incorporam, somam e têm protagonismo. Toda vez que os movimentos negros chamam a sociedade como um todo para se manifestar acerca das nossas pautas, como a defesa da vida da juventude negra, aí você só vê as pessoas negras. Então a gente reforça os movimentos dos outros. Mas os movimentos, no sentido geral, não reforçam os nossos”, lamenta.