As mulheres na divisão racial do trabalho

Ilustração mostra uma mulher negra servindo café a uma mulher branca que fala ao telefone em frente ao computador
Ilustração: Victória Sacagami/ Gênero e Número

Natalia Leão

Débora Lirio

Durante mais de três séculos, a escravidão foi a base da economia brasileira. A abolição, em 1888, não foi acompanhada de políticas de inclusão que pudessem proporcionar igualdade de oportunidades para as pessoas escravizadas libertas. Essa lacuna histórica perpetua um ciclo de desigualdade que afeta a população negra, especialmente as mulheres.

Assim, quando debatemos o trabalho de cuidado precisamos falar também da divisão racial do trabalho e seus impactos na formação social brasileira, do passado escravista colonial até os dias atuais, de formas perceptíveis ou não.

A população feminina ocupa, majoritariamente, cargos informais, estruturalmente inferiores e com menores remunerações. Existe uma aura de subalternidade que circunda as profissões comumente praticadas por pessoas negras.

ler Assine a nossa newsletter semanal

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE, as desigualdades raciais no mercado de trabalho brasileiro são evidentes. As mulheres negras estão desproporcionalmente representadas em trabalhos informais e de baixa remuneração. Os dados revelam que no 4º trimestre de 2023, entre as mulheres ocupadas com inserção informal no mercado de trabalho, 41% eram negras e 31% não negras. A PNAD aponta também que 91% das trabalhadoras domésticas no Brasil são mulheres e 67% delas são negras.

A predominância de mulheres negras no trabalho doméstico não é coincidência, mas um reflexo das barreiras sistêmicas que limitam suas opções de emprego. A falta de acesso à educação de qualidade e a discriminação racial no mercado de trabalho são fatores que contribuem para essa realidade.

O trabalho doméstico é uma das profissões mais precarizadas no Brasil. Muitas trabalhadoras enfrentam longas jornadas, baixos salários e falta de direitos garantidos. A PEC das Domésticas, aprovada em 2013, foi um marco importante ao garantir a jornada de trabalho definida, pagamento de horas extras e FGTS. No entanto, a implementação dessas medidas ainda encontra resistência e desafios práticos.

Além das questões econômicas, as trabalhadoras domésticas enfrentam situações de desrespeito e discriminação. Casos de empregadores que impedem suas empregadas de usar partes da casa ou de comer a mesma comida que a família são exemplos de práticas abusivas que refletem o racismo estrutural.

ler Teias do cuidado: um espaço de divulgação científica na Gênero e Número

Racismo estrutural e divisão do trabalho

A divisão racial do trabalho diz respeito à distribuição desigual de oportunidades entre pessoas, de acordo com sua identidade racial, seja por discriminação evidente ou pelos processos sociais que dificultam o acesso a determinados lugares.

Segundo Silvio Almeida, o racismo estrutural transcende os níveis individual e institucional, onde as práticas corriqueiras já possuem um cunho racista, reproduzido de forma quase inconsciente pela sociedade. No mercado de trabalho, isso se traduz na segregação ocupacional, quando as mulheres negras são direcionadas para empregos de menor prestígio e remuneração, enquanto as mulheres brancas têm maior acesso a posições mais qualificadas e bem remuneradas.

A divisão racial do trabalho tem impactos profundos na vida das mulheres negras no Brasil. A concentração em empregos precarizados não apenas afeta suas condições econômicas, mas também limita suas oportunidades de ascensão social. A falta de estabilidade financeira dificulta o acesso à educação e à formação profissional, o que perpetua o ciclo de pobreza e exclusão.

ler Tarefas domésticas e cuidado de pessoas afastam jovens negras do mercado de trabalho

Além disso, a sobrecarga de trabalho e a falta de reconhecimento têm impactos negativos na saúde física e mental dessas mulheres. A pressão constante para equilibrar o trabalho doméstico remunerado com as responsabilidades familiares cria um ambiente de estresse e exaustão.

A naturalização da subalternidade é um aspecto crucial na perpetuação da divisão racial do trabalho. Frases como “ela é como se fosse da família” são frequentemente usadas para mascarar a exploração e a desumanização das trabalhadoras domésticas. Essa narrativa paternalista impede o reconhecimento dos direitos dessas trabalhadoras e perpetua a desigualdade.

Apesar dos avanços significativos com a aprovação da PEC das Domésticas, ainda há desafios na luta por direitos. A fiscalização inadequada e a resistência de alguns empregadores são obstáculos importantes que precisam ser superados. Além disso, é necessário promover a conscientização e combater o racismo estrutural que sustenta a divisão racial do trabalho.

ler Preta Rara: “O trabalho doméstico é hereditário para as mulheres pretas”

Para romper o ciclo de desigualdade é fundamental investir em políticas públicas que promovam a inclusão social e econômica das mulheres negras. Programas de educação e capacitação profissional são essenciais para ampliar suas oportunidades de emprego e melhorar suas condições de vida.

Essas políticas precisam ser acompanhadas de medidas de fiscalização rigorosas para garantir que os direitos trabalhistas sejam respeitados. A implementação de programas de sensibilização e combate ao racismo no ambiente de trabalho também é vital para promover a igualdade racial.

A divisão racial do trabalho entre mulheres no Brasil é uma questão complexa que exige uma abordagem multidimensional para ser compreendida e enfrentada. A predominância de mulheres negras no trabalho doméstico é um reflexo das desigualdades raciais profundamente enraizadas na sociedade brasileira.

O caminho para a justiça social e a equidade racial no Brasil é longo e desafiador, mas é um objetivo fundamental que deve ser perseguido com determinação e compromisso. Ao enfrentar e superar as barreiras impostas pelo racismo estrutural, poderemos construir uma sociedade onde a dignidade e os direitos de todas as mulheres sejam plenamente respeitados e valorizados.

Quem leu essa Artigo também viu:

Natalia Leão

Natália Leão é doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Licenciada e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Foi e diretora de pesquisa e projetos da Associação Gênero e Número até fevereiro de 2024. Também já atuou como pesquisadora do CERES - Centro para o Estudo da Riqueza e Estratificação Social e do GEMAA - Grupo de Estudos Multidiciplinares da Ação Afirmativa. Tem experiência com estudos sobre desigualdade e estratificação social, gênero, raça, mercado de trabalho, políticas públicas e produção de dados.

Débora Lirio

Graduanda em Serviço Social pela UFRJ e atua como extensionista no projeto de pesquisa Teias do Cuidado

Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.

Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.

Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.

A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.

Quero apoiar ver mais